Tubarão não seria o que é sem a música de John Williams. Aqueles acordes gravíssimos, soturnos, abafados, opressivos, que precedem cada ataque do monstro, definem todo o clima de medo, de pavor que permeia o filme.
Foi a segunda das dezenas de colaborações entre John Williams e Steven Spielberg – uma das uniões mais duradouras e prolíferas entre um cineasta e um compositor. Trabalharam juntos mais vezes que Federico Fellini & Nino Rota, Alfred Hitchcock & Bernard Herrmann, François Truffaut & Georges Delerue, Brian De Palma & Pino Donaggio.
John Williams só não compôs para os primeiros filmes dirigidos por Spielberg para a TV, que incluem Encurralado/Duel (1971) e A Força do Mal/Something Evil (1972). O primeiro filme do realizador feito para exibição nos cinemas, Louca Escapada/The Sugarland Express (1974), tinha já trilha assinada pelo compositor.
Neste que foi o segundo filme para cinema de Spielberg – e seu primeiro gigantesco sucesso de bilheteria –, John Williams brilha. Brilha e espalha medo na platéia.
Essa constatação óbvia sobre a importância da trilha de John Williams para o filme foi a primeira que me ocorreu ao rever Tubarão agora, 42 anos após seu lançamento.
A segunda constatação veio nas várias tomadas das multidões chegando à ilha de Amity para passar o feriado de 4 de Julho, a data nacional americana, e logo em seguida na sequência das praias lotadas de turistas, sem que, durante um bom tempo, ninguém se atrevesse a entrar no mar: que imenso talento, que domínio pleno do ofício o cara já exibia em seu segundo longa-metragem para os cinemas, com apenas ridículos 29 anos de idade!
Em Encurralado, o sujeito tinha feito uma pequena obra-prima em que praticamente há em cena um único ator, Dennis Weaver, o motorista que é perseguido por um caminhão com apetite assassino. Aqui, ele dirige sequências com multidões de extras – dezenas, dezenas, dezenas de extras – com a segurança, a firmeza, a tranquilidade de um veterano.
Aos 29 anos ridículos anos de idade!
Ah, vai…
O xerife é um homem que não gosta de mar, mas foi morar justamente numa ilha
A terceira constatação foi: que fascinantes são os três personagens centrais, interpretados por Roy Scheider, Richard Dreyfuss e Robert Shaw, que ocupam, sozinhos (e mais o tubarão, claro), toda a segunda metade do filme. Como são bem desenhadas, bem delineadas, límpidas, claras, aquelas personalidades.
O xerife Martin Brody, o papel de Roy Scheider, é um nova-iorquino que fugiu da loucura, da insensatez da gigantesca metrópole com a mulher, Ellen (Lorraine Gary) e os filhos garotos Michael e Sean (Chris Rebello e Jay Mello) para um lugar tranquilo, pacífico, sossegado. Só que, em vez de ter escolhido o interiorzão, onde seguramente teria encontrado o sossego que queria, foi morar justamente numa ilha – ele, um sujeito que não gosta de praia, nem de nadar.
É uma delícia ver o pavor que ele tem do mar, ao longo dos 94 minutos finais do filme, passados no barco do capitão Quint.
O capitão Quint (um desempenho memorável de Robert Shaw) é uma figuraça, daqueles tipos que mereceriam figurar na seção Meu Tipo Inesquecível da revista Reader’s Digest. Especialista em caçar tubarões, veterano, vivido, se acha o homem mais fantástico da Terra, o maior super-herói do planeta. É grosseiro, e cultiva essa característica como se fosse a maior qualidade que existe, assim como cultiva o linguajar mais vulgar que se pode imaginar.
A sequência no barco, à noite, num momento de relaxamento entre duas sequências de ação assustadoras, poderosas, em que ele e Matt Hooper comparam as feridas que cada um colecionou ao longo da vida é um achado. Uma ridícula exibição de força, coisa típica de macho, esse ser tão capaz do ridículo mais absurdo.
Nessa mesma sequência, o capitão Quint-Robert Shaw narra em detalhes como foi o naufrágio do navio que levou para perto do Japão, nos estertores da Segunda Guerra Mundial, a que viria a ser a primeira bomba atômica a ser disparada sobre um alvo civil, a de Hiroshima.
Na seqüência fabulosa, antológica, a frase perfeita: “You’re gonna need a bigger boat”
A bomba atômica de Hiroshima é uma fixação de Steven Spielberg, nascido um ano e meio depois que ela foi lançada. Ele disse uma vez que foi naquele dia 5 de agosto de 1945 que acabou a inocência. Volta e meia cita o evento. Em Império do Sol (1987), há uma sequência filmada em superexposição, com uma claridade fortíssima que praticamente apaga as cores. Uma personagem, a sra. Victor (Miranda Richardson), está morrendo. O garotinho Jim (Christian Bale), o protagonista da história, diz, sobre a claridade absurda: “Eu pensei que era Deus tirando uma foto. Ou que era a alma da senhora Victor subindo para o céu.” Era o clarão da bomba atômica lançada pelos americanos.
Matt Hooper, o papel de Richard Dreyfuss, também é um personagem interessante.
É um cientista, um estudioso dos tubarões. O xerife Brady pede a ajuda do Instituto Oceanográfico, e a instituição envia Matt Hooper para a ilha Amity. Assim como o capitão Quint, é um apaixonado pelo tema tubarão – mas, bem diferentemente do outro, seu conhecimento veio do estudo. Sabe tudo – mas aprendeu tudo na academia, em salas confortáveis com ar condicionado, enquanto o outro aprendeu diretamente no mar, lutando contra os bichos.
Quando os três – o xerife Brody, o capitão Quint e Hooper – vêem pela primeira vez o tubarão que perseguem, em alto mar, o cientista fica de boca aberta e queixo caído, e exclama que o monstro deve ter cinco metros. Quint o corrige de imediato: sete.
É a sequência absolutamente antológica, essa, a sequência da frase que acabou definindo o filme.
Brody, que não gosta de água, não gosta de mar, não gosta de peixe, detesta cheiro de peixe, está jogando peixes na água, na tentativa de atrair o tubarão. Está reclamando da vida, olhando para dentro do barco, e não para o mar. A câmara está no barco, focalizando Brody, mostrando o mar atrás dele – e o tubarão dá como se fosse um pulo para fora da água. Pela primeira vez o espectador vê a bocarra aberta do monstro, os dentões, as mandíbulas, os maxilares do monstro – as jaws do título original.
Brody leva um tempinho para ver o que o espectador viu antes dele.
Dá um passo para trás, instintivamente, uma expressão do mais absoluto terror no rosto. Vai andando para trás, incapaz de fazer qualquer outra coisa. Vai andando para trás, até chegar perto do capitão Quint, e aí tudo o que consegue dizer é a frase perfeita:
– “You’re gonna need a bigger boat”.
Você vai precisar de um barco maior.
A maior bilheteria do ano de lançamento, recordista nas locadoras
Tubarão foi o filme de maior bilheteria nos Estados Unidos em 1975, o ano de seu lançamento. O livro Box Office Hits, de Susan Sackett, diz que ele rendeu US$ 129 milhões: “O filme teve a honra de ser o primeiro a quebrar a marca de U$$ 100 milhões em aluguéis (era o tempo dos videocassetes), tornando-se o filme de maior bilheteria até então, ultrapassando os recordistas anteriores O Poderoso Chefão/The Godfather, Noviça Rebelde/The Sound of Music e … E o Vento Levou/Gone With the Wind (em números sem levar em conta a inflação).”
A autora conta que o livro de Peter Benchley já tinha vendido 5,5 milhões de cópias quando Richard Zanuck e seu sócio David Brown compraram os direitos de filmagens pela bagatela de US$ 175 mil. O próprio escritor foi contratado para escrever o roteiro – que acabou passando por diversas revisões e depois uma polida final dada por Carl Gottlieb. Benchley fez também uma rápida aparição no filme, como um repórter de TV.
Quando foi escolhido para dirigir o filme que teria um orçamento de US$ 12 milhões, diz ainda Susan Sackett, Steven Spielberg tinha apenas 26 anos. Como já havia provado aos chefões da Universal que tinha talento, em filmes feitos para a TV, ele pôde exigir que as filmagens fossem feitas de fato numa praia e no mar, e não num tanque no estúdio (como Alfred Hitchcock havia feito, por exemplo, em Lifeboat, no Brasil Um Barco e Nove Destinos, um filme inteiramente passado em um bote salva-vidas). “Eu poderia ter rodado o filme em um tanque, ou mesmo em um lago protegido, mas ele não teria o mesmo visual”, disse o diretor em entrevista à revista Time.
A lendária Martha’s Vineyard, o balneário elegante junto do litoral de Massachusetts, local preferido de muitos milionários, artistas e músicos, foi escolhido para fazer as vezes da fictícia ilha de Amity da história, para desgosto de seus habitantes, segundo Susan Sackett escreve em seu livro, que não ficaram nada empolgados em ver os 150 membros da equipe atrapalhando a vida da bela ilha.
Um especialista em efeitos especiais, Robert A. Mattey, que já havia feito o polvo gigante para 20 Mil Léguas Submarinas (1954), foi contratado para construir um tubarão mecânico. Construiu três deles, idênticos, que eram operados por uma dúzia de técnicos – e volta e meia quebravam.
O filme ficou pronto a tempo de estrear no verão americano de 1975. Em diversas grandes cidades, formaram-se filas de dar a volta nas quadras dos cinemas que exibiam Tubarão.
Ainda segundo o livro Box Office Hits, Richard Dreyfuss dizia ter certeza de que o filme seria a bomba do ano – bomba no sentido de porcaria. Robert Shaw, com uma boca suja como a do seu personagem, dizia que a história era “a piece of shit” – merda pura.
John Williams ganhou seu segundo Oscar pela trilha impressionante
Roy Scheider – que quatro anos mais tarde faria o inesquecível Joe Giddeon de All That Jazz, o alter-ego de seu criador Bob Fosse – repetiria o papel do xerife Martin Brody em Tubarão 2 (1978), ao lado de Lorraine Garry no papel de Ellen Brody.
E Richard Dreyfuss voltaria a trabalhar duas vezes com Spielberg, em Contatos Imediatos do Terceiro Grau (1977) e Além da Eternidade/Always (1989).
“Uma estrela pouco usual nasceu com este filme, mas nunca foi visto na tela”, diz Susan Sackett. “O compositor John Williams, que tinha sido indicado para um Oscar pela trilha de Inferno na Torre (1974), ganhou seu primeiro prêmio da Academia pela música dinamizadora de Tubarão. O tema que foi parodiado várias vezes realça brilhantemente o perigo que a audiência sente bem antes que o tubarão apareça.”
O Oscar que John Williams levou pela trilha de Tubarão foi o segundo, e não o primeiro. Susan Sackett cometeu aí um errinho. Ele já havia ganho um por Um Violinista no Telhado (1971). Depois ainda levaria os prêmios da academia por Guerra nas Estrelas, o primeiro da série, o de 1977, E.T. – O Extraterrestre (1982) e A Lista de Schindler (1993). Cinco prêmios – e um total de 41 indicações!
Tubarão teve quatro indicações ao Oscar. Perdeu na categoria principal de melhor filme (que ficou com Um Estranho no Ninho, de Milos Forman), mas levou os outros três: além do para a trilha sonora, os de montagem e som.
John Williams também ganhou o Globo de Ouro de melhor trilha. As três outras indicações ao Globo de Ouro foram para melhor filme, melhor direção e melhor roteiro adaptado.
O filme teve três sequências – mas Spielberg não teve nada a ver com elas
Leonard Maltin deu ao filme a cotação máxima de 4 estrelas: “Um caso raro de uma história boba (por Peter Benchley) que vira um excelente filme. A história: comunidade praiana da Nova Inglaterra é aterrorizada por ataques de tubarão; o policial local (Scheider), o ictiologista (Dreyfuss) e expert (Shaw) se empenham para matar o animal. Segurem-se em suas cadeiras. Três Oscars incluem a trilha agora clássica de John Williams e a sensacional montagem de Verna Fields. Benchley tem uma participação especial como um repórter na praia. Seguida por três sequências.”
Três sequências, é? Ah, sim. Além do já citado Tubarão 2, cometeram ainda Tubarão 3/Jaws 3-D (1983) e Tubarão 4: A Vingança/Jaws: The Revenge (1987). Spielberg não teve nada a ver com elas.
Só gozou o fato de que houve tantas sequências. Em um dos filmes da trilogia De Volta para o Futuro – de que Spielberg foi um dos produtores executivos –, o cinema da praça principal da cidadezinha em que mora Marty McFly, o personagem de Michael J. Fox, está passando um fictício Tubarão 10 – ou 15, ou 20, não me lembro mais. (Eis aí três filmes que eu gostaria de rever…)
“É aventura pura, sem a violência gratuita de tantos filmes de ação”
Roger Ebert também deu a cotação máxima de 4 estrelas. Ele começa seu texto assim:
“Jaws de Steven Spielberg é um filme de ação sensacionalmente eficaz – um thriller apavorante que funciona muito bem porque é povoado por personagens que foram desenvolvidos como seres humanos que ficamos conhecendo e passamos a nos importar com eles. É um filme que dá medo como O Exorcista, e no entanto é um tipo de medo mais gostoso, de alguma forma mais divertido, porque estamos sendo assustados por uma saga de aventura ao ar livre, em vez de por um demônio de enxofre e vômito”.
E ele conclui: “Jaws é um grande filme de aventura, de um tipo que não se vê muito nos dias de hoje. É aventura pura, sem a violência gratuita de tantos filmes de ação. Tem a quantidade necessária de sangue – e não mais que isso. E é uma danada de uma boa história, brilhantemente contada.”
O livro 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer diz: “Essencialmente uma ficção pulp sobre um tubarão assassino que aterroriza a cidade de veraneio de Amity Island, na Costa Leste, o filme se tornou, nas mãos de Spielberg (e com a ajuda de muito dinheiro em propaganda) o primeiro grande ‘filme-evento’ de verão. Campanhas publicitárias antes do lançamento atiçaram o boca-a-boca e, quando o filme estreou, as filas davam voltas no quarteirão; conforme as pessoas assistiam, contavam aos amigos e voltavam para assistir de novo”.
O texto do livro editado por Steven Jay Schneider diz que Spielberg é um mestre em adaptar romances para o cinema, seja com Parque de Dinossauros, de Michael Crichton, seja com A Lista de Schindler, de Thomas Keneally, mas “nenhuma dessas adaptações foi mais impressionante do que o seu primeiro sucesso”. E conclui assim: “Seus truques, dignos de Hitchcock, obviamente funcionaram, já que esta história com um roteiro inteligente e dirigida com pulso firme permanece até hoje o mais assustador dos filmes passados no mar.”
Anotação em maio de 2017
Tubarão/Jaws
De Steven Spielberg, EUA, 1975
Com Roy Scheider (Martin Brody, o chefe da polícia), Robert Shaw (Quint), Richard Dreyfuss (Matt Hooper)
e Lorraine Gary (Ellen Brody), Murray Hamilton (Larry Vaughn, o prefeito), Carl Gottlieb (Meadows), Jeffrey Kramer (o policial Hendricks), Susan Backlinie (Chrissie Watkins), Jonathan Filley (Cassidy), Ted Grossman (a vítima no estuário), Chris Rebello (Michael Brody), Jay Mello (Sean Brody), Lee Fierro (Mrs. Kintner), Jeffrey Voorhees (Alex Kintner), Craig Kingsbury (Ben Gardner), Dr. Robert Nevin (o médico), Peter Benchley (entrevistador), Robert Chambers (Charlie)
Roteiro Peter Benchley e Carl Gottlieb, com Howard Sackler (não creditado)
Baseado no livro de Peter Benchley
Música John Williams
Fotografia Bill Butler
Montagem Verna Fields
Desenho de produção Joe Alves
Efeitos especiais Robert A. Mattey
Produção Richard D. Zanuck, David Brown, Universal Pictures.
Cor, 124 min (2h04)
R, ****
Acho que esse filme é o melhor (ou um dos melhores) na filmografia de todo mundo que trabalhou nele.
Acho que os 4 pontos atribuídos estão certíssimos, Tubarão é mesmo um grande filme. Foi o primeiro DVD que comprei e bem caro que foi.
A música é de facto primordial na eficácia deste filme.
John Williams compôs outra banda sonora fabulosa para o Spielberg – A Lista de Schindler que é o meu filme favorito deste realizador.