O Tesouro / Comoara

3.0 out of 5.0 stars

Desconcertante. Desconcertante. O adjetivo ficou pipocando na minha cabeça, quando terminamos de ver O Tesouro, o filme de 2015 do romeno Corneliu Porumboiu.

Desconcertante: que deixa atordoado ou sem jeito, diz aqui o Dicionário Unesp do Português Contemporâneo.

É bem isso. O Tesouro me deixou atordoado e sem jeito. Pelo conteúdo e pela forma.

O estilo de Corneliu Porumboiu é muito pessoal – o que é uma maravilha. Depois que o filme terminou, fui ler minhas anotações sobre os dois outros filmes do realizador que já vi, A Leste de Bucareste (2006), uma arrasadora, cáustica, virulenta sátira política que não deixa pedra sobre pedra, e Polícia, Adjetivo (2009), drama denso, sério, que mostra uma Romênia, 20 anos após o fim da ditadura comunista comandada por Nikolai Ceauscescu, ainda afundada numa atmosfera claustrofóbica, castradora, do estado policial, em que a burocracia paquidérmica e anti-meritocracia herdada do Estado todo-poderoso emperra o funcionamento das instituições, e a vida dos cidadãos é vigiada constantemente.

O estilo que ele usa neste O Tesouro é exatamente o que notei e anotei ao ver Polícia, Adjetivo. O que escrevi na época vale também, sem tirar nem pôr, para este filme de agora.

Em primeiro lugar: em geral, a câmara fica absolutamente estática. Ao contrário do que se vê em 99% dos filmes, em que a câmara anda, se movimenta, segue os personagens, se aproxima do rosto deles, se afasta, a de Corneliu Porumboiu é estática. Fica confortavelmente plantada em cima de um tripé, e pronto. Não se mexe, não se movimenta. Fica paradona.

Segundo: os planos são longos, extremamente longos. As gerações acostumadas aos planos curtinhos, à montagem rápida, à la linguagem da MTV de meados dos anos 80, e de todos os filmes de ação feitos depois disso, seguramente ficarão bastante nervosas com os planos tão longos.

Planos longos requerem dos atores experiência, perícia, talento. Têm que ensaiar bastante, decorar bem seus textos. Não podem errar. Quer dizer, claro que podem errar, mas dá um trabalho muito maior refazer várias vezes a mesma cena longas até que tudo fique a contento.

Terceiro: como nos filmes do Dogma 95 dos dinamarqueses, não há música. Ouvimos os ruídos naturais, as vozes – quando há vozes, porque na maior parte das seqüências não se fala nada –, e ouvimos o silêncio. Só. Especificamente em O Tesouro, há loooongas tomadas em que um personagem está escavando um buraco no chão atrás do tesouro, e não há diálogos, nem música – o espectador fica ouvindo os ruídos da natureza, grilos, insetos.

Quarto: não há close-ups de nada, de ninguém. Jamais vemos de perto o rosto dos atores, ou qualquer objeto. São sempre tomadas amplas – planos gerais, ou no máximo de conjunto.

O bisavô do vizinho havia escondido um tesouro no quintal

Então: a forma é desse jeito, diferente do que vemos na imensa maioria dos filmes. Um estilo diferenciado, pessoal, únic o.

E a trama de O Tesouro é tão desconcertante quanto o estilo de Corneliu Porumboiu.

É assim:

Costi (Toma Cuzin) é um homem comum, uma pessoa igual a tantas e tantas outras. Trabalha num escritório, o espectador não fica sabendo muito bem exatamente de que área de atividade. É casado, sua mulher se chama Raluca (Cristina Cuzina Toma, mulher do ator na vida real). Têm um filho, um garoto aí de uns 6 anos, Alin (Nicodim Toma, que é de fato filho do casal).

Costi trata bem o filho – mas o garoto se ressente do fato de que o pai às vezes chega atrasado para pegá-lo na escola.

O pai gosta de ler para o filho a história de Robin Hood.

Um dia qualquer, um vizinho da família toca a campainha. Raluca atende, o vizinho pede para falar com Costi. Pede dinheiro emprestado: precisa de 800 euros. Está numa situação muito difícil, apertada. Costi diz que não tem. O vizinho insiste. E conta que precisa daquele dinheiro para alugar um detector de metais para descobrir em que trecho do quintal da casa da família, numa pequena cidade a duas horas de carro de Bucareste, está enterrado um tesouro.

Um tesouro?

Sim, o vizinho explica para Costi. O bisavô do vizinho era uma homem riquíssimo. Quando os comunistas chegaram, depois da Segunda Guerra, em 1947, o bisavô dele pegou sua fortuna e enterrou no quintal da propriedade da família. A propriedade é grande, muitos metros quadrados. Os comnistas tomaram a casa. Depois que o comunismo acabou, foi instalado ali um bar. Agora a família dele havia recuperado o terreno, as duas casas construídas lá.

E o vizinho queria os 800 euros para alugar um detector de metais e descobrir onde estava o tesouro.

O trabalho de busca do tesouro no quintal dura metade do filme

Costi não apenas acredita piamente na história do vizinho, como decide que vai arranjar o dinheiro para procurar o tesouro com o vizinho e depois dividi-lo meio a meio.

Ele não tem os 800 euros, mas calcula que, se não pagar as contas do mês, tirar mais um pouco ali, pedir ao sogro mais algum emprestado, deverá conseguir juntar.

Costi vai a uma empresa de detectores de metal. O aluguel de fato custa 800 euros. Ele diz que vai pensar. Na saída, um funcionário o interpela; diz que pode fazer o serviço, sem que o dono da empresa fique sabendo, pela metade do preço, 400 euros.

E, num sabadão, vão para a tal cidadezinha Costi e o vizinho, no carro do primeiro, e depois o funcionário, munido de duas máquinas detectoras de metal.

O nome do funcionário o espectador fica sabendo – ele se apresenta para Costi, chama-se Cornel (Corneliu Cozmei).

O nome do vizinho, só ficamos sabendo quando o filme está quase terminando. É Adrian, o mesmo nome do ator que o interpreta, Adrian Purcarescu. Durante todo o filme, ele é tratado apenas como o vizinho.

A busca pelo tesouro, primeiro com os dois detectores, e depois com uma pá e uma picareta, dura quase metade deste filme de 89 minutos.

O final da história é bastante surpreendente – e, portanto, obviamente não será revelado aqui.

Às vezes há sequências de dois minutos em que não acontece propriamente nada

“É só isso o meu baião, e não tem mais nada, não”, dizia João Gilberto, na sua composição “Bim Bom”. O eventual leitor não se lembra da letra de “Bim Bom”? Transcrevo aqui: “Bim bom bim bim bom bom / Bim bom bim bim bom bim bom / Bim bom bim bim bom bom / Bim bom bim bim bom bim bim / É só isso o meu baião / E não tem mais nada, não / O meu coração pediu assim, só / Bim bom bim bim bom bom / Bim bom bim bim bom bom / Bim bom bim bim bom bom / É só isso o meu baião / E não tem mais nada, não”.

O Tesouro é assim. É só isso a trama dele, e não tem mais nada, não.

Fiquei pensando: se fosse um texto, O Tesouro seria um conto. Não um romance. Um conto.

Poderia perfeitamente ser um curta-metragem. Em 30 minutos dava para contar essa história, até mesmo com muitos detalhes.

Corneliu Porumboiu leva 89 minutos para contar o fiapinho de história, com aquele estilo que é bem dele, que é bastante incomum – e, com aquele estilo dele, contar uma pequena história detalhadissimamente num filme de uma hora e meia tem sentido – e até bastante encanto.

É assim uma coisa minimalista.

Há tomadas que duram aí, digamos, uns dois minutos, em que não acontece absolutamente nada. Por exemplo: Cornel, o do detector de metais, está passando o detector de metais pelo chão gramado do quintal da propriedade da família do vizinho. Anda para um lado, depois volta, vira, anda para o outro lado, enquanto Costi e o vizinho observam.

Durante dois minutos.

Se fosse num filme de James Bond, daria tempo de matar uns 36 bandidos.

Depois tem mais uma sequência igual a essa. E mais outra.

É mais parecido com a vida real do que com um filme.

É minimalista. É assim meio Jim Jarmusch dos primeiros tempos, a época de Estranhos no Paraíso/Stranger Than Paradise (1984) e Daounbailó/Down by Law (1986).

É uma comédia minimalista, que não é feita para provocar risadas, nem muito menos gargalhadas – e sim sorrisos. Me peguei sorrindo do filme, e fazendo exclamações, que saíam naturalmente, quase contra a minha vontade: “Nossa mãe!” “Mas que coisa!” “Mas que loucura!” “Mas…”

A graça vem tanto do inusitado da situação em si – a procura por um tesouro que não se sabe se existe, que não se tem idéia do que pode ser – quanto exatamente da forma com que a história é contada, de um jeito paciente, sem qualquer pressa, que mostra os personagens muitas vezes não fazendo coisa alguma.

Uma história bastante insólita, inusitada, contada de forma muito peculiar        

O Tesouro foi exibido em diversos festivais ao redor do mundo, inclusive em Cannes, onde foi programado na prestigiada mostra paralela Un Certain Regard, e lá recebeu um dos prêmios, “pela narrativa magistral”. Ao todo, recebeu mundo afora 5 prêmios, fora outras 12 indicações.

Corneliu Porumboiu não é o único realizador romeno que tem apresentado belos filmes. Da Romênia têm saído, nos últimos 10 anos, talvez um pouquinho mais, gratas surpresas. Tive, felizmente, a oportunidade de ver algumas delas, como Contos da Era Dourada (2009), com episódios assinados por vários realizadores, Louco Amor (2006), de Tudor Giurgiu, Como eu Festejei o Fim do Mundo (2006), de Catalin Mitulescu, e Casamento Silencioso (2008), de Horatiu Malaele, todos muito bons, sendo que este último é uma obra-prima.

É preciso dizer com toda clareza: nada do que eu afirmei acima deve ser entendido como uma crítica ao filme, uma reclamação, uma queixa. Não, de forma alguma. É apenas uma descrição objetiva.

É um bom filme, um filme que vale a pena ver, uma história insólita, inusitada, contada de uma forma muito peculiar, muito específica desse sujeito que realizou pelo menos dois belos filmes, aqueles que citei lá em cima, um sujeito que domina com perfeição a arte de fazer cinema.

Fala-se abaixo do que o filme parece querer dizer. Pode ser spoiler

Um filme – repito – danado de desconcertante.

É um tanto difícil falar do que o filme afinal parece querer dizer sem, ao mesmo tempo, dar spoiler, revelar o que só deve ser revelado ao espectador quando ele assiste ao filme. Vou tentar – mas, a rigor, se o eventual leitor ainda não viu o filme, melhor ir atrás dele e parar de ler por aqui.

Ao fim e ao cabo, O Tesouro faz uma ousada defesa dos valores corretos da vida: o entendimento de que juntar posses materiais, coisas, teréns, dinheiro no banco, jóias, propriedades, iates, aviões, seja o que for – isso que é a razão da vida de tantas, tantas pessoas, neste planeta – não significa nada. Não é caminho para a felicidade, o contentamento, a paz de espírito.

Não é propriamente uma moral da história nova. As religiões repetem isso. Milhares de obras de arte já disseram isso. “O que se leva desta vida é que o se come, é o que se bebe, é o que se brinca, ai, ai.” “… Porque sei que, além de flores, nada mais vai no caixão” – para dar apenas dois exemplos da música brasileira, esta que é talvez nossa arte mais perfeita.

O baixinho Danny DeVito demonstrou essa mesma verdade num filme em que os protagonistas praticam o inverso, exatamente o ato de perder a vida na ânsia maluca de garantir que se juntou uma quantidade pavorosamente grande de bens materiais: em A Guerra dos Roses (1989), os dois seres que jovens eram belíssimos, apaixonados e felizes – interpretados por Michael Douglas e Kathleen Maravilha Turner – vão ao inferno quando o casamento acaba e eles passam a disputar a posse das coisas, os símbolos de riqueza material que haviam acumulado até ali.

Corneliu Porumboiu, nascido em 1975, aprendeu a ler e chegou à adolescência num regime que teoricamente defendia o oposto da sociedade em que Oliver e Barbara Rose – e todos nós – sempre viveram, o mundo capitalista. Teoricamente, no regime que vigia na União Soviética e em todos os seus países satélites do Leste Europeu até ruir como um castelo de cartas, por volta de 1990, os valores a serem considerados eram outros, e não a soma da quantidade de dinheiro que se conseguiu juntar.

Em Queridas Amigas, lançado em 1992, quando a poeira do desmoronamento do Muro de Berlim e do Império Soviético mal tinha baixado, o húngaro István Szabó criou um dos diálogos a meu ver mais belos da História do cinema. A ação se passa na Hungria logo após a queda do comunismo, no momento tumultuadíssimo da passagem de volta para o capitalismo. Uma das duas amigas do título, a querida Böbe do título original, pergunta à outra, a doce Emma; o que ela quer da vida, e ela diz: “Uma sociedade fraterna; que apreciem o que eu faço”. E Böbe responde: “Isso não vale mais nada. O que vale agora é o dinheiro e as coisas materiais que você possui.”

Em A Leste de Bucareste e Polícia, Adjetivo, Corneliu Porumboiu, como seus colegas e contemporâneos do cinema romeno das últimas décadas, escancara o horror que foi a ditadura de Nikolai Ceauscescu. Neste estranho, desconcertante O Tesouro aqui, ele parece agora ter um pouco de nostalgia do sonho que prometeram entregar e não cumpriram – a utopia de uma sociedade mais justa, mais fraterna, do que as que a humanidade soube criar até hoje.

O Tesouro parece, ao fim e ao cabo (perdão por repetir a expressão), um filme que tem nostalgia de um mundo fraterno em que as pessoas apreciassem o que cada um tem o talento de fazer.

Saudade é coisa ruim, e há saudades mais terríveis que outras. Creio que a mais cruel de todas é a saudade de algo que nunca existiu.

Anotação em outubro de 2016

O Tesouro/Comoara

De Corneliu Porumboiu, Romênia-França, 2015.

Com Toma Cuzin (Costi), Adrian Purcarescu (Adrian, o vizinho), Corneliu Cozmei (Cornel, o do detector), Cristina Cuzina Toma (Raluca, a mulher de Costi), Nicodim Toma (Alin, o filho), Dan Chiriac (Lica, o ladrão)

Argumento e roteiro Corneliu Porumboiu

Fotografia Tudor Mircea

Montagem Roxana Szel

Produção .

Cor, 89 min

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