É um luxo só a versão 2015 de Longe Deste Insensato Mundo, uma co-produção Inglaterra-EUA com o selo de garantia da BBC Films, um orçamento confortável, a direção segura do dinamarquês Thomas Vinterberg, um ótimo elenco e, nele, uma atriz mais que perfeita para o papel principal – Carey Mulligan.
Bathsheba Everdene – a protagonista do romance que Thomas Hardy começou a escrever em 1873 e foi publicada em capítulos, como um folhetim, anonimamente, na revista Cornhill Magazine em 1874 – é uma personagem absolutamente fascinante.
É tão absolutamente fascinante que chegou ao cinema pela primeira vez em 1915, quando o autor estava vivo, passando bem e escrevendo poesia. (Thomas Hardy morreu em 1928, aos 88 anos. Foi longevo como outros grandes, como Liev Tolstói.)
Já havia tido um belíssimo Longe Deste Insensato Mundo antes, em 1967
A primeira versão para o cinema de Far From the Madding Crowd, de 1915, foi roteirizada e dirigida por Laurence Trimble, um nome que não me diz nada. Também não conheço os atores que interpretam os principais papéis – nem mesmo Florence Turner, a atriz que interpretou a primeira Bathseba Everdine do cinema.
A segunda Bathseba veio na pele de uma das atrizes mais fascinantes da História, por quem as gerações nascidas aí digamos entre 1940 e 1955 se apaixonaram – Julie Christie. A mulher sobre quem François Truffaut escreveu: “Julie é um coquetel de imperfeições fascinantes: um rosto bem animal, de loba, sobre um corpo de menina. É preciso acrescentar sua voz, um pouco em contradição com seu físico. Como se ela tivesse bebido 1.800 uísques, o que não é verdade. Não fuma, não bebe, mas rói as unhas. Seu físico é feito de contradições.”
Aquela segunda versão de Far From the Madding Crowd para o cinema com Julie Christie como Bathseba Everdene, de 1967, foi uma produção totalmente britânica; o diretor foi John Schlesinger, que já havia dirigido Julie em Darling (1965), inglesérrimo assim como os outros três atores principais, Alan Bates, Peter Finch e Terence Stamp. Meu Deus, que elenco!
Em 1998, a Granada Television britânica fez uma minissérie de 4 capítulos de cerca de 50 minutos cada, com Paloma Baeza no papel central. Jamais tinha lido esse nome, e também não conheço os dos demais atores.
Já escrevi aqui algumas vezes que não tenho simpatia por refilmagens. Para que refilmar uma história que já foi contada num belíssimo filme? A rigor, dentro desse raciocínio esta nova versão do romance de Thomas Hardy, a quarta, não seria necessária.
Diante do luxo que é Longe Deste Insensato Mundo 2015, só dá para pensar assim: ainda bem que minha opinião não vale mais que uma moeda de 3 guaranis furados.
A protagonista é uma mulher forte, independente, à frente de seu tempo
Bathsheba Everdene – insisto – é uma mulher absolutamente fascinante.
Assim como acontecia até algumas décadas atrás na vida real, em todos os lugares do mundo, e também em muitos grandes clássicos da literatura, as mulheres eram casadoiras. O casamento era o alvo, o gol, o objetivo da vida delas.
As personagens de Jane Austen, por exemplo, são assim.
Mesmo personagens criadas bem mais recentemente, mas em histórias do passado, são casamentocêntricas. Um bom exemplo talvez seja Lady Mary, de Downton Abbey. Duas pessoas inteligentes, cultas, safas, que lêem meus textos aqui neste site, Jussara Ormond e José Luís Fino, comentaram que Lady Mary – uma personagem pela qual tive grande simpatia – era uma pessoa repugnante em muitos aspectos, inclusive pelo fato de que passa a maior parte do tempo pensando em como conseguir um marido, e que tipo de marido conseguir.
Bathsheba Everdene, muito ao contrário, não era uma dondoca, nem uma casadoira, nem passava a vida à espera de algum homem ou em função de algum homem.
Era uma mulher forte, de desejos poderosos, que se orgulhava de ser independente. Uma mulher trabalhadora, capaz de meter a mão na massa e ao mesmo tempo administrar o trabalho de várias dezenas de pessoas.
Uma mulher que atraiu as atenções e o amor não de um ou dois, mas de três homens. E foi capaz de dizer não a dois pedidos de casamento!
Isso tudo tendo sido criada em 1873, em plena Era Vitoriana, um tempo de muita moralidade rígida e muita censura a quem se desviava das regras. E criada por um homem que tinha então apenas 33 anos, e portanto sequer tinha tido muito tempo assim para conhecer as mulheres.
Thomas Hardy só viria a se casar em 1874, o ano em que Far From the Madding Crowd apareceu em forma de folhetim. A moça, Emma Lavinia Gifford, era cunhada do reitor de uma escola de Cornwall (perdão, mas tenho dificuldade com a palavra Cornualha), onde Hardy foi trabalhar como restaurador – filho de um construtor civil, ele se tornou um requisitado profissional nessa arte, a mesma do personagem central de seu romance maior, Judas, O Obscuro.
Esse grande escritor é uma das muitas provas de que a vida é mesmo cheia de surpresas. Seria extremamente difícil imaginar que um sujeito da classe média de Dorset, região do extremo Sul da Inglaterra, rural, sem cidade importante ou sequer média, pudesse vir a criar uma personagem que parece saída da imaginação de uma feminista nova-iorquina pós anos 1960.
Logo de cara, Batsheba avisa: há quem a ache independente demais
A versão 2015 do romance de 1873-1874 feita pelo dinamarquês Thomas Vinterberg começa com lindíssimas imagens do campo inglês e com a voz em off desta maravilha que é Carey Mulligan dizendo o seguinte:
– “Bathsheba Everdene. Bathsheba. O nome sempre me pareceu estranho. Não gosto de ouvi-lo dito em voz alta. Meus pais morreram quando eu era muito jovem, e então não há ninguém a quem eu possa perguntar de onde ele veio. Acabei me acostumando à idéia de que ele é mesmo o meu nome. Alguns dizem que fiquei acostumada demais. Independente demais.”
E então há um letreiro para situar o espectador: “Dorset, Inglaterra, 1870. A 200 milhas de Londres.”
A 200 milhas de Londres! E, portanto, far from the madding crowd. Longe da multidão louca. Ou, numa tradução mais bela, longe deste insensato mundo.
Thomas Hardy, que nasceu, cresceu e morreu no campo, em Dorset, parecia de fato acreditar que as cidades grandes, em especial a grande metrópole, a capital, era sinônimo de multidão louca, insensato mundo.
Ah, que distância existe entre as belas imagens que a arte cria e a realidade dos fatos, tão mais mesquinha… O IMDb tem lá um item que afirma que é um erro do filme dizer que Dorset fica a 200 milhas de Londres. Não está na página de Trivia, de informações interessantes, curiosas, sobre a produção, e sim na página de Goofs, erros, erros factuais:
“Nenhum lugar em Dorset é tão longe de Londres. A maior distância é de cerca de 155 milhas, com o lugar falado no livro/filme estando a cerca de 130 milhas de Londres.”
Meu Deus: o sujeito que anotou isso jamais ouviu falar de licença poética.
Fatos demais, fatos e mais fatos, uma história riquíssima
Confesso, envergonhado: não li Longe Deste Insensato Mundo, nem Tess of D’Urbervilles. O único romance de Thomas Hardy que li foi Judas, O Obscuro – e li jovem demais. Precisaria reler.
Vi a versão para o cinema feita por John Schlesinger de 1967 – uma vez só, pelo que mostra meu segundo caderno de filmes, em outubro de 1968, meu primeiro ano em São Paulo, no então Cine Majestic, o cinema da Rua Augusta que hoje é o Espaço Itaú de Cinema. Mas não me lembrava de quase nada da trama.
Não me lembrava que havia tantos fatos, e tantas surpresas, e mais fatos, e mais surpresas, neste Longe Deste Insensato Mundo.
Mais do que tantos outros grandes romances divulgados inicialmente em forma de folhetim, um capítulo a cada edição de jornal e/ou revista, este Far From the Madding Crowd tem fatos e mais fatos e mais fatos. Olhando para trás agora, com a perspectiva de hoje, fica parecendo que o autor criava tantos fatos para chamar a atenção dos leitores para a semana seguinte, ou o mês seguinte, quando sairia a continuação da história na revista…
Quando estamos aí com dez minutos de filme, já aconteceu que a) Bathsheba veio morar no campo com seus tios, após algum tempo estudando em uma cidade um pouco maior (não fica absolutamente claro que isso aconteceu, mas dá para o espectador imaginar a partir de alguns fatos); b) o dono de uma fazenda vizinha, Gabriel Oak (o papel do belga Matthias Schoenaerts), pede a moça em casamento, ela pede para pensar, e depois acaba recusando; c) Gabriel perde toda sua criação de ovelhas, que, loucamente, se encaminha para a morte num grande promontório; de repente reduzido à miséria, Gabriel passa a vagar pela região à procura de alguma oportunidade de emprego; d) o Exército real está à procura de novos soldados; e) do Exército participa um garotão bonitão, charmoso, um tal sargento Francis Troy (Tom Sturridge), que está noivo de uma garotinha da região, Fanny Robin (Juno Temple); f) um tio rico de Bathseba, sem filhos, morre e deixa para ela todas as suas posses – uma grande, muito grande, muito produtiva fazenda; g) um incêndio ameaça destruir boa parte do que há na fazenda que Bathseba acabou de herdar.
Isso tudo nos dez, no máximo 15 primeiros minutos do filme.
É muito fato demais da conta. Virão muitos, muitos, muitos mais.
Gabriel acabará sendo contratado por Bathseba, agora dona da grande fazenda, como pastor das ovelhas. Leal, e trabalhador, e competente, Gabriel se tornará o capataz da fazenda.
William Boldwood, um vizinho, dono de fazenda ainda maior que a herdada por Bathseba, acabará se apaixonando por ela. Boldwood é interpretado pelo ótimo e eclético Michael Sheen.
O terceiro homem que entrará na vida da moça é o tal sargento Francis Troy.
Trabalham muito bem, os atores que fazem os três homens da vida de Bathseda – Matthias Schoenaerts (Gabriel), Michael Sheen (Boldwood) e Tom Sturridge (o sargento).
Todo o elenco está simplesmente perfeito.
Carey Mulligan dá mais um show de interpretação. É um absoluto espanto, essa moça.
São deslumbrantes a fotografia, a trilha sonora, a direção de arte e os figurinos.
Especialmente para quem, como eu, gosta de música folk, ainda há o imenso prazer de ouvir várias canções tradicionais inglesas. Com suas próprias vozes, Carey Mulligan e Martin Sheen cantam uma deliciosa “Let no man steal your thyme”.
Um belo filme.
Anotação em maio de 2017
Longe Deste Insensato Mundo/Far From the Madding Crowd
De Thomas Vinterberg, Inglaterra-EUA, 2015
Com Carey Mulligan (Bathsheba Everdene)
e Matthias Schoenaerts (Gabriel Oak), Michael Sheen (William Boldwood), Tom Sturridge (sargento Francis Troy), Jessica Barden (Liddy), Juno Temple (Fanny Robbin), Bradley Hall (Joseph Poorgrass), Hilton McRae (Jacob Smallbury), Harry Peacock (Jan Coggan), Victor McGuire (Pennyways), Jody Halse (fazendeiro Stone)
Roteiro David Nicholls
Baseado no romance de Thomas Hardy
Fotografia Charlotte Bruus Christensen
Música Craig Armstrong
Montagem Claire Simpson
Casting Nina Gold e Theo Park
Produção Fox Searchlight, BBC Films, TSG Entertainment, DNA Films.
Cor, 119 min (1h59)
***1/2
Não vi nenhuma das versões pro cinema, mas dos livros que l ide Hardy – 4 – Longe Deste Insensato Mundo é o meu favorito. História linda, personagens fortes, inclusive a mulher principal – Hardy parece ter sido hábil para criar figuras femininas interessantes.
Pelo texto parece bom (mas seus textos fazem qualquer filme parecer bom); de todo modo, é o tipo de filme que me atrai. Só de ler o nome da Inglaterra na co-produção, meus olhos já brilham. E ainda tem Matthias Schoenaerts, hum… Esse ator tem feito ótimos filmes, com uma ou outra exceção.
Juro que quando estava lendo o parágrafo “Assim como acontecia até algumas décadas atrás na vida real…”, me lembrei imediatamente de “Downton Abbey”. Obrigadíssima pela parte que me toca e pela generosidade, afinal, não faço jus a todos esses adjetivos.
PS: Habemus computadorem! Então estou de volta às paradas de sucesso (mas ainda travando uma luta inglória com o Windows 10, que deixa as fontes borradas. É como se eu tivesse voltado a ter astigmatismo).
Voltei finalmente para fazer o comentário.
Gostei, mas não amei. Sei lá, a história parece uma mistura de vários filmes que já vi. Apesar dos acontecimentos, que como você bem disse, são muitos, para mim pareceu tudo meio previsível, com algumas exceções; às vezes beirando o dramalhão. Cinema feito para agradar a audiência. Eu estou pegando birra de super produções, que de tanto capricharem no visual, acabam errado a mão (já comentei isso antes, mas vi que depende do filme. “Aliados”, por exemplo, é uma super produção, mas o visual ultra caprichado não me incomodou; acho que vai muito de eu entrar na história também). Algumas das roupas de Bathsheba , por exemplo, são de um tipo de couro que nem existia naquela época, todo brilhante. Cabelo impecavelmente no lugar para alguém que trabalhava no campo?
Mas o que mais me incomodou foi a atuação de Carey Mulligan, e nisso discordo de você: consigo pensar em pelo menos cinco atrizes que poderiam fazer o papel. Na minha opinião, faltou mais presença para uma personagem tão forte e à frente de seu tempo. É fraca e não me convenceu. Em contrapartida, e apesar do papel pequeno, achei Jessica Barden excelente (e que rosto extremamente jovem ela tem, aparenta bem menos idade). Não sei há quanto tempo ela atua, nem quantos filmes já fez, mas tem futuro essa moça.
O que dizer de Matthias Schoenaerts? Continuo achando que ele tem ótima expressão facial. Depois de ver esse filme, cheguei à conclusão de que ele fala inglês melhor do que eu falo português. hehe
Vi algumas mini entrevistas com ele, aquelas que os atores são obrigados a dar sempre que um filme é lançado, respondendo às mesmas perguntas cem vezes, e o moço demonstra ser inteligente, pé no chão e sensível, além de educado. Vi poucos filmes com ele até agora, mas tem se tornado um de meus atores europeus preferidos. Espero que demore a se render ao cinemão de Hollywood.
Agora que botei reparo no nome do diretor, e vi que é o mesmo de “A Caça” (filme que achei muito bem feito e dirigido, e um dos poucos que consegui te indicar, diga-se de passagem). Isso dito, achei a direção totalmente diferente; claro, são histórias diferentes, mas essa pendeu muito para o brega e o exagero, talvez até pelo século em que foi escrita. Aquela coisa de tentar fazer o espectador chorar. Mas eu só fiquei realmente triste quando as ovelhas do Oak morreram, e mais ainda, com o que ele fez depois, como se o Young George tivesse tido culpa. Depois ainda deixa o Old George pra trás (os nomes desses cachorros me fizeram rir).
Para mim, valeu pela fotografia e pelo Matthias, cujo personagem é de um caráter que pouco se vê, e aguentou tanta coisa por tão poucas migalhas, coitado. Uma pena que a atriz não segure a personagem, que na mão de outra, teria ficado maravilhosa. Ela tornou Bathsheba muito chata, e de tão chata e senhora de si, acabou fazendo a pior escolha que poderia ter feito. Achei bem feito? Lógico que sim. Ficou fazendo doce o tempo todo com um cara educado, leal, trabalhador e ainda por cima lindo, e caiu nos braços do primeiro que apareceu fazendo um elogio barato. Acho que ela desprezou o Gabriel mais por preconceito do que por não querer se casar.
Outro ponto interessante é ver para onde se encaminhou a paixão/obsessão transformada loucura, do personagem de Michael Sheen (outro que está ótimo). Esse tipo de coisa sempre me assusta.
Achei Tom Sturridge over, tentando fazer um vilão que não é bem um vilão, apenas uma pessoa muito ambiciosa e desequilibrada.
Qualquer um que já tenha visto meia dúzia de filmes, não precisou de esforço para adivinhar o final, que poderia ter sido diferente. Ele deveria ter ido embora, e nem olhado pra trás, como fez na primeira vez.
Como faz uns meses que assisti, isso é tudo que tenho a dizer, hehehe, mas acho que não entrei em sintonia com o filme.
Conheço o livro intimamente e é um dos meus romances favoritos. Concordo completamente com sua crítica, essa adaptação é impecável e possui um elenco notável. Captura a essência do livro de Hardy. O filme é delicado, sabe misturar o realismo de Hardy com a beleza de seus diálogos e da presença constante da natureza e com os seus personagens inesquecíveis.