O jovem diretor argentino Juan Taratuto vinha de duas gostosas, simpáticas, agradáveis, despretensiosas comedinhas românticas. Em 2013, lançou este A Reconstrução, um drama sério, pesado. Em vez de em Buenos Aires, a bela cidade em que nasceu em 1971, foi filmar na paisagem também bela, porém gélida, dura, inóspita, do extremo Sul argentino, na região de Ushuaia, a cidade importante mais próxima do Pólo Sul.
E optou por um tom, um clima, um estilo que é exatamente igual à paisagem: gélido, duro, inóspito.
Os personagens falam pouquíssimo – e, quando falam, são econômicos, secos. Há apenas um diálogo, ao longo de todos os 90 minutos de duração do filme, em que as pessoas revelam um pouco de seus sentimentos, abrem um pouco de sua alma, tentam chegar perto um do outro.
Todos os demais diálogos – poucos – são curtos, quase monossilábicos.
Todo o tom do filme, a forma com que o roteiro foi elaborado, a forma com que os personagens são apresentados, sem que haja alguma explicação sobre quem eles são, de onde vêm, tudo é tão absolutamente gélido – como o clima de Ushuaia – que o espectador acaba não entrando muito na história. Porque de fato parece que os personagens, todos fechados em si mesmos, encarcerados em seus dramas, não querem se abrir, não querem que ninguém chegue perto.
Eu, pelo menos, fiquei de longe, observando à distância. Até porque não me senti convidado a chegar perto.
Se, em seu primeiro drama, Juan Taratuto e seu colaborador na autoria do argumento e do roteiro Daniel Peretti, pretendiam obter o tal do distanciamento brechtiano, conseguiram. Com louvor.
Uma mulher desesperada pede ajuda – e o motorista não pára
Na primeira sequência do filme, um homem dirige numa estrada no meio do nada, uma dessas estradas simples, de apenas duas faixas, mão e contramão. O homem tem uma aparência desleixada – barba por fazer, de vários dias, cabelos longos, com aparência de que não vêm um pente, nem água de chuveiro, faz bastante tempo.
De repente, surge à esquerda da estrada a visão de um carro virado, pegando fogo, e de uma mulher que, desesperada, pede ajuda.
O motorista não pára para ajudar. Segue em frente, expressão nenhum no rosto a não ser cansaço, um imenso cansaço de tudo.
Quando termina esta primeira sequência, há o fade out – desaparece a última imagem da última tomada, e a tela fica negra. Fade out, seguido do fade in – o negro vai desaparecendo, surge a primeira imagem da nova tomada – é algo absolutamente normal, tão normal que o espectador em geral nem percebe. O espectador sequer precisa saber dessas expressões técnicas.
Mas o diretor Juan Taratuto e seu montador Pablo Barbieri Carrera optaram por prolongar aquele fade out. A tela fica negra, logo após o homem ter ignorado o pedido de ajuda da mulher desesperada, por um tempinho maior do que seria o normal. Portanto, aí vai uma mensagem. O diretor quer realçar aquele momento, quer chamar a atenção do espectador para aquele minuto em que o motorista se negou a ajudar uma pessoa que precisava desesperadamente de ajuda. Com aquele fade out prolongado, o diretor está berrando no ouvido do espectador: preste toda a atenção, isso aqui é importantíssimo.
E de fato é. Claro que é.
“Un hombre que vive por pura inercia, un robot de sangre caliente”
O motorista é interpretado por Diego Peretti, que colaborou com Juan Taratuto no argumento e no roteiro, e que foi também o principal ator da primeira das duas gostosas comédias do diretor, Não é Você, Sou Eu (2004) e Um Namorado para Minha Esposa (2009).
Chama-se Eduardo, e trabalha numa empresa petrolífera. Parece ser um experiente engenheiro que trabalha no campo, no operacional, junto das jazidas – nada de um ser do escritório. Muito ao contrário: um técnico especializado que enfia a mão na massa.
Mora numa casa não muito distante do campo em que está trabalhando, no interiorzão bravo, longe de qualquer centro urbano. E sua casa é tão desleixada quanto sua aparência. Vemos Eduardo em casa, em algumas sequências, no início do filme, e o quadro é o mais desolador possível. O sujeito não tem a mínima preocupação com organização, limpeza, asseio. Quando se alimenta – parecendo um animal –, sente dor num dente, mas não se trata, não procura um dentista. Obviamente não por falta de dinheiro, mas de interesse.
Parece de fato um robô, um autômato, um sujeito que só trabalha, e, de resto, não tem vida, não procura organizar nada, melhorar nada.
Esse Eduardo é – como muito bem descreveu Enrique Campos, no site Cinedivergente, ao qual cheguei através do IMDb –, “un grandísimo depresivo que ha desconectado del mundo y de todos los seres que lo habitan”, “un hombre que vive por pura inercia, un robot de sangre caliente”.
Eduardo é tão pura inércia, tão autômato, tão pouco interessado em organizar a vida, melhorar, que, quando o chefe do campo petrolífero (Ariel Pérez), se despede dele, no momento em que ele está saindo de férias, e diz “Boas férias. Descanse”, ele retruca, com a expressão de cansaço extremo que não o abandona: – “Eu não estou cansado”.
Chegou a um ponto tal de alienação de si próprio, de sua própria vida, que não reconhece sequer a coisa mais óbvia que há – seu imenso cansaço.
O sujeito só tem um amigo no mundo, e este amigo pede ajuda a ele
Como, por que foi que Eduardo chegou a este estado, o espectador não sabe, não tem idéia. Só vai saber quando o filme já passa bem da metade, quando ele finalmente tem aquele único diálogo em que diz um pouco do que sente. O diálogo é com Andrea (Claudia Fontán), a mulher de Mario (Alfredo Casero, na foto).
E Mario, por sua vez, é o motivo pelo qual Eduardo – sem na verdade sentir qualquer vontade – pede para gozar um período de férias.
Pelo que o espectador pode depreender, imaginar, conjecturar (porque o roteiro muito intencionalmente não revela muito, deixa para que o espectador conclua por si só), esse Mario é o único amigo que Eduardo tem na vida. Só quase no fim da narrativa surgirá a informação de que os dois haviam trabalhado juntos numa plataforma marítima de exploração de petróleo.
A única pessoa, no mundo inteiro, que tem algum laço de amizade com o pobre coitado.
E então esse Mario liga insistentemente para Eduardo, pedindo que ele passe alguns dias cuidando da lojinha de bugigangas que possui em Ushuaia. Ele, Mario, precisa fazer uma pequena cirurgia, terá que se afastar da loja durante uns dias.
E finalmente Eduardo aceita, e dirige até Ushuaia.
Andrea, a mulher do amigo, já o conhecia de muitos anos antes. As duas filhas adolescentes do casal – Ana (María Casali) e Cata (Eugenia Aguilar) – acham o sujeito esquisito, meio nojento.
Mario se interna no hospital para o que havia dito que seria uma pequena cirurgia – e morre. Estamos, então, com 30 minutos de filme, e Mario morre, deixando órfãs as duas adolescentes e a mulher Andrea completamente, absolutamente perdida, inconformada, sem força, sem ânimo algum para tocar a vida.
Eduardo fica com as três mulheres durante alguns dias, tenta ajudá-las naqueles primeiros momentos. Mas, alguns poucos dias depois do enterro, entra em seu carro e pega estrada rumo Norte, de volta para sua vida de autômato, de robô de sangue quente, para repetir a expressão de Enrique Campos no site Cinedivergente.
De longe, em plano geral, a câmara vai mostrando o carro de Eduardo numa estrada. De novo Eduardo está se afastando de uma pessoa que desesperada pede ajuda.
Desta vez ele diminui a marcha, pára o carro, faz meia volta.
Eis o motivo pelo qual, naquele iniciozinho de filme, a tela ficou negra por mais tempo do que o normal: o diretor queria enfatizar que ali, naquele momento, aconteceu algo importante, fundamental.
Eduardo se arrependeu de ter abandonado a mulher e as filhas do amigo morto, e naquele instante resolveu voltar para tentar ajudá-las. Ser útil. Reconstruir-se.
O jovem Juan Taratuto comprova que também sabe fazer drama
Um detalhe que para mim é muito importante: em dois momentos em que Eduardo está dirigindo seu carro nas estradas daquela imensidão de terra gélida, ouvimos uma voz que eu desconhecia cantando belas canções folk. Os créditos finais esclarecem que o cantor e compositor chama-se Alexi Murdoch – eu de fato não conhecia, e vou agora atrás, porque é exatamente o tipo de música de que mais gosto na vida.
Alexi Murdoch nasceu em Londres em 1973, filho de um pai grego e uma mãe de origem escocesa-francesa; passou os primeiros anos da infância na Grécia, estudou nos Estados Unidos, teve ofertas de grandes gravadoras mas preferiu lançar seus discos de forma independente. As canções que Juan Taratuto e/ou o autor da trilha sonora original, Iván Wyszogrod, escolheu para aparecer no filme se chamam “Wait” e “Towards the Sun”. Esta segunda dá o título do segundo álbum que o cantor e compositor lançou, em 2011.
Os créditos finais trazem a dedicatória do diretor: “A mis padres, que se fueron”.
O filme teve 4 premiações, fora outras 11 indicações. Na internet há boas críticas a ele – merecidas. Tem talento, o jovem Juan Taratuto, e com este A Reconstrução comprovou que sabe fazer drama, e não apenas comedinhas românticas leves e gostosas.
Depois deste filme aqui, já lançou dois outros, Papéis ao Vento, uma mistura de comédia e drama, de 2015, e Roteiro de Casamento/Me Casé com un Boludo, de 2016. Dá vontade de vê-los.
Anotação em outubro de 2016
A Reconstrução/La Reconstrucción
De Juan Taratuto, Argentina, 2013
Com Diego Peretti (Eduardo)
e Claudia Fontán (Andrea), Alfredo Casero (Mario), María Casali (Ana), Eugenia Aguilar (Cata), Ariel Pérez (chefe do campo petrolífero), Rafael Solano (policial rodoviário)
Argumento e roteiro Juan Taratuto, com a colaboração de Diego Peretti
Fotografia Nico Hardy
Música Iván Wyszogrod
Canções “Wait” e “Towards the Sun” de e com Alexi Murdoch
Montagem Pablo Barbieri Carrera
Produção Cine.Ar, Concreto Films, Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisualesm, Televisión Federal.
Cor, 90 min
**1/2