Destry Rides Again, no Brasil Atire a Primeira Pedra, de 1939, é unanimemente incensado. E, além de elogiado, é reconhecido como de importância histórica por ter reacendido o brilho da carreira de Marlene Dietrich, num período em que ela era considerada “veneno de bilheteria” e justamente no momento em que começava a Segunda Guerra Mundial, durante a qual ela trabalharia com os soldados aliados contra as tropas de seu país natal, a Alemanha.
Às vezes acontece de eu não concordar com unanimidades.
Ao ver Destry Rides Again agora, pela primeira vez, minha sensação foi de que é um daqueles filmes tão dolorosamente ruins que o espectador fica incomodado, com vergonha pelas pessoas que o fizeram. Tive vergonha por Marlene Dietrich e pelo jovem, muito jovem James Stewart. Vergonha por eles – e pena.
Claro, pensei algumas vezes em apertar a tecla stop e me ver livre daquilo. Mas sou apaixonado por filmes, até tenho um site sobre filmes, e então me dispus a ver até o fim. Vi – mas com profundo desgosto.
A base da trama deste western não é ruim – bem ao contrário. O personagem de James Stewart, o Destry do título original, chega a uma cidade sem lei lei e sem alma, dominada por um empresário corrupto e assassino e sua companheira, uma poderosa e fascinante cantora e showwoman de saloon, e luta para impor lei e ordem – sem usar cinturão, coldre e pistolas.
A questão não é a base da trama. É tudo o mais – é o jeito com que o diretor George Marshall escolheu para contar a história. Ele pretendeu fazer um western cômico – e conseguiu fazer um dos filmes mais ridículos da época de ouro de Hollywood.
Na minha opinião, é claro – e é sempre bom repetir que minha opinião vale no máximo uns três guaranis furados.
Uma grotesca luta livre entre uma pura dona de casa e a cantora de saloon
Só para se ter uma idéia: pouco depois que Tom Destry Jr. chega à cidade de Bottleneck, vai fazer sua primeira visita ao imenso saloon de propriedade do bandidão Kent (o papel de Brian Donlevy, à direita na foto acima), onde este surrupia o dinheiro dos cidadãos de forma honesta (vendendo bebida a rodo) e também de forma desonesta (trapaceando no pôquer e extorquindo dos moradores todas as suas posses).
Então Tom Destry Jr. adentra o saloon. O bandidão Kent o ridiculariza pelo fato de ele não andar armado e ter uma cara e um jeito meio de bobo, de simplório. A companheira dele, a beldade Frenchy (uma Marlene Dietrich com toneladas de maquiagem para parecer mesmo estar maquiada demais, e umas roupas que deveriam parecer provocantes, sexy, mas só conseguem só risíveis), também goza a cara do forasteiro recém-chegado.
E aí chega também Lilly Belle Callahan (Una Merkel), fula da vida, furiosérrima, porque Kent e Frenchy acabaram de tosquiar o marido dela, o russo Boris (Misha Auer) no pôquer, roubando-lhe até mesmo as calças.
Lilly Belle, a representante das mulheres boas, distintas, que desbravaram o Oeste bravio, vai tirar satisfação com Frenchy, a dançarina de saloon.
(Uma das características básicas do western, à época, era que as mulheres se dividiam entre as puras desbravadoras, pioneiras, perfeitas donas de casa e as putas e/ou dançarinas e cantoras de saloon.)
E então Lilly Belle e Frenchy partem para o que os antigos locutores esportivos chamavam de desforço físico: atracam-se e começam a brigar no meio do saloon. Puxam o cabelo uma da outra, caem no chão, rolam no chão, levantam-se, estapeiam-se – um espetáculo dantescamente feio, horroroso, pavoroso, de dar vergonha de se estar vendo aquilo.
Aí então o forasteiro Destry some um pouquinho e reaparece com um gigantesco balde de água – que joga sobre as contendoras num momento em que elas se engalfinham no chão.
Francamente: Marlene Dietrich, então uma das maiores atrizes do cinema mundial, não merecia passar por esse vexame.
O guia de filmes mais vendido do mundo dá cotação máxima
Foi para mim chocante ler, após ter iniciado esta anotação com os parágrafos acima, as loas que foram feitas ao filme.
Leonard Maltin dá a este abacaxi azedo a cotação máxima de 4 estrelas: “Sátira cheia de ação, com Stewart domando uma cidade arruaceira sem violência e se envolvendo com a tempestuosa garota de dance-hall Dietrich. Marlene canta ‘See What the Boys in the Back Room Will Have’ nesta história de Max Brand.”
A autoria da história é apresentada nos créditos iniciais de uma forma que me pareceu confusa – ou, no mínimo, peculiar: “Roteiro de Felix Jackson, Gertrude Purcell e Henry Myers. História original por Felix Jackson. Sugerida pela novela Destry Rides Again, de Max Brand.”
Se a história foi sugerida por uma novela, então não se pode qualificá-la como original, certo?
O CineBooks’ Motion Picture Guide dá 3.5 estrelas em 5 e começa seu longo texto assim: “Neste western em velocidade máxima, Marlene Dietrich e James Stewart, um dos mais improváveis pares de amantes do cinema, trabalham esplendidamente juntos”.
“This hell-for-leather Western.” Não conhecia essa expressão. Significa at full speed, ensina o Merriam-Webster versão digital.
Segue-se uma detalhada sinopse, que lá pelas tantas relata a grotesca sequência da briga no saloon assim:
“Lily Belle (Uma Merkel), mulher de um homem depenado por Frenchy, chega cuspindo raiva. As duas se metem em uma das mais selvagens lutas entre mulheres jamais filmadas. Elas se socam, lutam, chutam, roem, mordem e rolam pelo chão durante dois minutos de ação no celulóide (a cena levou cinco dias para ser filmada).”
Bem mais adiante, o CineBooks’ faz a apreciação da obra:
“A carreira de Dietrich estava em rápido declínio antes deste filme. Ela havia deixado as asas protetoras de seu mentor Josef von Sternberg em 1935, e muitos dos seus filmes posteriores não fizeram sucesso. Depois de aparecer em Angel (1937), um incomum fracasso de Ernst Lubitsch (um filme fascinante, digo eu), Dietrich foi considerada ‘veneno de bilheteria’ pelos exibidores. Por três anos, não fez filmes de alguma importância e, quando a Paramount desfez seu contrato em 1937, foi considerada como acabada. Viajou a Paris para aparecer em The Image, de Julien Duvivier, acreditando que as audiências americanas estavam cheias dela.
“Então ela recebeu uma ligação transatlântica no meio da noite do produtor Joe Pasternak. Ele a queria no filme que estava fazendo na Universal. (Pasternak não contou para ela que Paulette Goddard era a primeira escolha do estúdio, e que ele teve que lutar desesperadamente com os chefões da Universal para contratar Dietrich.) Ela ficou chocadíssima quando ele disse que queria que ela fizesse um western e que ganharia apenas US$ 75 mil. Uma das mulheres mais glamourosas do mundo, que tinha sido associada a dramas pesados ou papéis sofisticados, iria interpretar uma safada de saloon num bangue-bangue? Mas Dietrich aceitou o desafio. Ela foi indecente, tempestuosa e má, mas com um coração de ouro, e (aqui o Cinebooks’ revela o final do filme). Nunca antes Dietrich havia sido tão maravilhosa num filme, e o público respondeu prontamente a ela. Sua estrela voltou a subir, mais alto ainda que antes.
“Destry Rides Again se tornou um western de ritmo ágil sob a mão firme do diretor George Marshall, um veterano do gênero, mas o filme tinha um tom tão vigoroso, duro, que muitas falas tiveram que ser cortadas. Em uma cena, depois de ganhar no pôquer, Frenchy coloca algumas moedas de ouro em seu vestido. Bugs Watson berra: “Tem ouro naquelas colinas!” A fala jamais passaria pelos censores. Dietrich também canta algumas canções memoráveis de Hollander e Loesser: ‘Little Joe the Wrangler’, ‘You’ve Got That Look (That Leaves Me Weak)’ e ‘See What The Boys in the Back Room Will Have’.
“A atuação de Stewart era no seu usual tom menor, e fornecia o contraponto perfeito ao personagem corajoso e barulhento de Dietrich.”
E o Cinebooks’ elogia então todo o elenco.
James Stewart se salva. Marlene, bem, Marlene é Marlene
Dou aqui minha opinião sobre o elenco: James Stewart faz o James Stewart de sempre, e então se salva. Não dá para dizer que James Stewart está mal. Nem mesmo quando ele diz a seguinte patacoada:
– “Eu tinha um amigo que coleciona selos do Correio. Ele costumava dizer que havia uma coisa boa sobre os selos do Correio: o fato de ficarem grudados numa coisa até chegarem onde deviam chegar. Eu também sou assim.”
Essa filosofada seria extremamente grotesca se dita por qualquer outro ator. Dita por aquele James Stewart com cara de bebê (ele estava com 31 anos, mas parecia ter uns 19), a frase fica apenas bobinha.
Sobre a atuação de Marlene, não sei bem o que dizer. Sei lá. Diante de uma câmara, Marlene é uma força da natureza tão forte, tão vigorosa, que mesmo neste papel grotesco, ridículo, patético, ela consegue não apenas se sair bem, como brilhar.
O resto do elenco, na minha opinião, está abaixo de qualquer crítica. Todos os atores coadjuvantes parecem ter recebido ordem para agir da forma mais exagerada e pastelônica possível. Qualquer programa humorístico da pior qualidade da televisão mexicana ou da colombiana ou da brasileira tem interpretações menos bisonhas do que as de Mischa Auer, Charles Winninger, Allen Jenkins, Warren Hymer, Una Merkel, Tom Fadden, Samuel S. Hinds. Até mesmo Brian Donlevy, bom ator em tantos e tantos filmes, está exagerado, careteiro, ruim.
O tal de Mischa Auer, que faz o russo casado com a veneranda senhora Lily Belle Callahan… Meu Deus, o que que é aquilo? Comparado a ele, o pessoal de Renato Aragão é exímio e experiente ator da melhor companhia shakespereana do West End londrino. Mussum é Sir Laurence Olivier, Sir John Gielgud.
A história já havia sido filmada uma vez e voltaria a ser mais tarde
Mas a minha opinião não vale coisa alguma, e até mesmo Dame Pauline Kael, a primeira-dama da crítica americana, elogia Destry Rides Again. “Ao levar suas lantejoulas e plumas para o Velho Oeste, e soltar sua voz escaldante num barítono uivante, Dietrich revitalizou sua própria carreira. James Stewart é charmoso e até mesmo um pouco sexy como o ameno Destry. Com um grande grupo de pessoas que contribuíram para o sabor, alguns com papéis importantes – Mischa Auer, Brian Donlevy, Charles Winninger, Una Merkel, Samuel Hinds— e outros em papéis menores —Jack Carson, Allen Jenkins, Irene Hervey, Warren Hymer e Billy Gilbert.”
Pauline Kael, assim como Leonard Maltin e os redatores do Cinebooks’, observa que a mesma história já havia sido filmada em 1932, com Tom Mix, e seria refilmada – pelo próprio diretor George Marshall – em 1954, com Audie Murphy e Mari Blanchard, com o título de Destry (no Brasil, Antro de Perdição).
Houve também um filme que reproduz parcialmente a história, Franchie, de 1950, com Joel McCrea e Shelley Winters, no Brasil Anjo de Vingança.
Os autores das canções acompanharam Marlene desde o início da carreira
O livro 1001 Filmes para Ver Antes de Morrer diz que, “como a maioria das comédias do faroeste, Atire a Primeira Pedra, de George Marshall, é uma sátira às convenções do heroísmo masculino”; lembra que o personagem de Marlene é bem parecido com o que ela interpretou em O Anjo Azul, e conclui: “Uma história divertida, conduzida por mãos habilidosas e com um espírito bastante diferente do romance original de Max Brand – o mais prolífico dos escritores de faroeste”.
Até mesmo o Guide des Films de Jean Tulard elogia o filme, que na França teve o título de Femme ou Démon, mulher ou demônio: “Com este western, o gênero parece, enfim, chegar à idade adulta. Stewart excelente. Fotografia sublime. Marlene se iguala a ela mesma.”
Definitivamente, minha opinião não vale sequer três guaranis furados. Então, aí vai uma informação:
Os autores das canções interpretadas por Marlene Dietrich, citados no texto do Cinebooks, são Frederick Hollander e Frank Loesser. É fantástico como esses compositores, em especial o primeiro, acompanharam Marlene Dietrich ao longo de sua carreira – tanto de atriz quanto de cantora. Holllander (1896-1978), nascido na Inglaterra, filho de alemães, foi o autor de canções que Marlene cantou em O Anjo Azul (1930), o filme em que Josef von Sternberg fez dela uma estrela mundial. “Ich bin von Kopf bis Fuß auf Liebe eingestellt” (literalmente, segundo a Wikipedia, da cabeça aos pés, estou pronta para amar), depois vertida para o inglês como “Falling in love again” se tornaria assim uma espécie de marca registrada de Marlene.
Hollander faria também as canções que Marlene cantaria em Desire (1936), Angel (1937) e A Mundana/A Foreign Affair (1948).
“Foi divertido fazer o filme e nos alegramos muito pelo seu grande sucesso”
E, finalmente, o que diz sobre o filme a própria Marlene?
Em sua deliciosa autobiografia, ela fala sobre o epíteto de “box office poison”, veneno na bilheteria. Conta que foi “um tal de Brandt, proprietário de uma cadeia de cinemas”, que publicou um anúncio em diversos jornais americanos dizendo que eram box office poison “Garbo, Hepburn, Crawford, Dietrich etc”.
Uau! Em que augusta companhia estava ela! Greta Garbo, Katharine Hepburn, Joan Crawford!
“O anúncio publicado sacudiu a indústria cinematográfica. A MGM comportou-se com lealdade em relação a seus astros e continuou pagando-os, mas não quis mais investir em filmes com eles. A Paramount não foi assim tão generosa: despediu-me. (…) Portanto, fiz minha trouxa e voltei para a companhia do meu marido e dos meus amigos na Europa. Seria exagero se dissesse que fiquei desesperada, mas necessitava de um bom conselho, de alguém que me desse a mão. E tive a sorte de encontrar o que procurava.”
Marlene conta então que viajou para Paris, e de lá para Antibes, na Côte d’Azur.
“Cercada pelo meu marido, minha filha, Erich Maria Remarque, Josef von Sternberg e alguns amigos, perguntava-me com frequência: ‘A que mundo pertenço? Sou uma estrela ruim, uma estrela acabada ou simplesmente uma nulidade?”
“Passávamos férias estupendas. A família Kennedy estava conosco e vivíamos realmente num paraíso. Minha filha nadava com Jack Kennedy até uma ilha próxima, seguravam suas roupas fora da água, de modo que, do outro lado, podiam se vestir e almoçar.”
Marlene Dietrich relata como sua filha brincava com o jovem John Fitzgerald Kennedy como eu relataria que Fernanda brincou na praia com a filha de uma vizinha…
“No decorrer desse verão de 1939, recebi inesperadamente um telefonema do produtor Joe Pasternak, de Hollywood. ‘Apesar de todos os riscos, quero fazer um filme com você’, disse ele. ‘Jimmy Stewart já aceitou e gostaria de tê-la como parceira dele no faroeste Der Grosse Bluff.’ Respondi: ‘Não, por nada deste mundo’. Mas Sternberg aconselhou-me a aceitar o convite. Portanto, deixei Antibes e viajei para Hollywood.
“Foi divertido fazer o filme e nos alegramos muito pelo seu grande sucesso. Joe Pasternak ficou especialmente feliz por ter desafiado a indústria cinematográfica e ver compensados seus esforços. Depois de Atire a Primeira Pedra, ele fez outros filmes comigo: A Pecadora/Seven Sinners (1940), A Indomóvel/The Spoilers (1942) e Ódio e Paixão/Pittsburgh (1942) renderam muito dinheiro à Universal. Joe Pasternak possuía um talento para fazer todas as pessoas felizes. Diretores como George Marshall e Tay Garnett o apoiavam nisso. Os atores, em contrapartida, não eram de grande ajuda. Gente desagradável, os atores.”
Anotação em janeiro de 2016
Atire a Primeira Pedra/Destry Rides Again
De George Marshall, EUA, 1939
Com Marlene Dietrich (Frenchy), James Stewart (Tom Destry Jr.)
e Brian Donlevy (Kent), Mischa Auer (Boris), Charles Winninger (Washington Dimsdale), Allen Jenkins (Bugs Watson), Warren Hymer (Gyp Watson), Irene Hervey (Janice Tyndall), Una Merkel (Lily Belle Callahan), Tom Fadden (Lem Claggett), Samuel S. Hinds (juiz Slade), Lillian Yarbo (Clara), Edmund MacDonald (Rockwell), Billy Gilbert (Loupqerou, o homem do bar), Virginia Brissac (Sophie Claggett)
Roteiro de Felix Jackson, Gertrude Purcell e Henry Myers
“História original por Felix Jackson. Sugerida pela novela Destry Rides Again, de Max Brand.”
Fotografia Hal Mohr
Música Frank Skinner
Canções de Frederick Hollander-Frank Loesser
Montagem Milton Carruth
Produção Joe Pasternak, Universal Pictures Company. DVD Colecione Clássicos.
P&B, 94 min
1/2
Título na França: Femme ou Démon. Em Portugal: A Cidade Turbulenta.
Às vezes a gente coloca os melhores ingredientes na forma e o bolo não fica bom.
Mischa Auer era fantástico…
Para as gerações que não conheceram o terror da Segunda Grande Guerra… mas são filhos de pós-guerra… fica aqui um registro de uma das mais maravilhosas atrizes e cantoras vividas nesse contexto miserável desses duros tempos. Uma mulher revolucionária… à frente de seu tempo… que carregou com desenvoltura e muito talento… no mais alto estado da arte… O que seria o novo perfil da nova mulher nos novos tempos do admirável mundo novo…
Viva sempre Marlene Dietrich… Lilli Marlene…