Praticamente toda a ação deste Venuto al Mondo, que o italiano Sergio Castellitto lançou em 2012, se passa em Sarajevo e seus arredores, antes, durante e depois da sangrenta guerra civil que destroçou a ex-Iugoslávia, numa das mais óbvias comprovações de que a humanidade é uma invenção que não deu certo.
Belos filmes já foram feitos feitos sobre as atrocidades, a barbárie absurda, indizível, que tomou conta dos Bálcãs nos anos 90 – como, para citar apenas o que já foram comentados neste site, A Vida Secreta das Palavras (2005), Em Segredo (2006), A Informante (2010), Cirkus Columbia (2010), Na Terra de Amor e Ódio (2011), Rua da Redenção (2012). E são sempre bem-vindos os filmes que denunciam essa barbárie – são, afinal de contas, no mínimo uma tentativa de nos fazer evitar que tragédia assim se repita.
No entanto, tive um problema com o filme do diretor Castellitto. É um problema meu, pessoal – vou logo admitindo. Fiquei com a estranha, desagradável sensação de que o filme, ao mesmo tempo em que existe para denunciar a barbárie, usa a própria barbárie para atrair público.
Porque, a rigor, a rigor, não é um filme sobre a guerra da Bósnia: é a história de uma mulher que quer ter um filho. Poderia acontecer em qualquer lugar do mundo, em qualquer época. Acontece num dos períodos mais infames da história da humanidade para ter maior peso dramático. A Bósnia é um acidente na história de Gemma, a protagonista – o papel de Penélope Cruz, lindérrima como sempre.
Insisto: foi essa a sensação que tive – íntima, particular, só minha, que nem dor de dente. Pode ter sido uma implicância besta. Não significa que o filme seja ruim, de forma alguma. Mary, ali a meu lado, não teve essa sensação, essa visão, essa impressão.
Depois de 20 anos, Gemma viaja de volta a Sarajevo
A ação começa nos dias de hoje, da época da produção, início da segunda década deste século. Gemma – uma Penélope Cruz muito bem maquiada para parecer mais velha, com fios brancos na bela cabeleira negra – recebe um telefone internacional. É Gojko (Adnan Haskovic). “Meu Gojko?”, pergunta ela, surpresa. É nítido que os dois não se falavam havia muitos, muitos anos.
Gojko a convida para voltar a Sarajevo. Vai haver uma exposição de fotos de Diego – e então é a oportunidade ideal para ela rever os velhos amigos.
Gemma conta do telefonema para o marido, Giuliano (o papel do próprio diretor Sergio Castellitto), que, veremos em seguida, é alto official dos carabinieri, a polícia militar italiana. Fica absolutamente claro que o telefonema, o convite, a existência de Gojko incomodam Giuliano – mas ele engole em seco o incômodo. Respeita a mulher, não fará nada para impedi-la de fazer o que ela bem entender.
E Gemma logo em seguida está desembarcando em Sarajevo com o filho, Pietro.
(Pietro, um rapaz aí de uns 17 anos, de fulgurantes olhos azuis, é interpretado por Pietro Castellitto, filho do diretor Sergio e de Margaret Mazzantini, que vem a ser a autora do romance Venuto al Mondo, publicado em 2008. A adaptação do romance para o cinema foi feita a quatro mãos pelo diretor e pela escritora, marido e mulher.)
Gemma e Pietro são recebidos por um Gojko exultante, maravilhado por estar revendo a velha amiga que não via há quase 20 anos.
E, a partir daí, a narrativa vai alternar fatos passados nos dias de hoje – os dias da visita de mãe e filho à Sarajevo de 2012 – com fatos ocorridos entre 1984 e 1992. Em 1984, a então jovem Gemma havia viajado pela primeira vez a Sarajevo, para estudar sobre a vida de Andric para sua tese na universidade. (Não se diz o prenome da personalidade, mas é possível que seja Ivo Andrić, 1892–1975, novelista e vencedor do Nobel.)
Foi naquele ano de 1984 – em que a Iugoslávia sediou os Jogos Olímpicos de Inverno – que Gemma e Gojko se conheceram. Ficaram amicíssimos, mas, ao contrário do que o espectador poderia pensar (assim como Mary e eu chegamos a pensar), não tiveram um caso. Gojko ficou bastante apaixonado pela italiana linda – mas ela se apaixonou por um dos muitos amigos a quem foi apresentado por Gjojko, Diego, um fotógrafo americano jovem, aventureiro, alegre, cheio de vida.
No livro de Margaret Mazzantini, Diego é um genovês. No filme, é americano – e vem na pele de Emile Hirsch.
A escolha do garotão americano Emile Hirsch para o principal papel masculino é, no mínimo, no mínimo, uma esperteza de marketing, por abrir para o filme boas portas do mercado americano, o maior do mundo. E deixa mais natural o fato de a italiana Gemma e os bósnios de Sarajevo conversarem em inglês, a língua que é assim o mínimo múltiplo comum.
Nessa questão de línguas, o filme se sai com perfeição. É absolutamente natural que Gemma e Gotko falem em inglês; quando conversam entre si, os bósnios falam na língua deles, e Gemma conversa com o marido em italiano.
Gemma quer desesperadamente ter um filho de Diego
Além de Diego, Gemma fica conhecendo, já naquela sua primeira estada em Sarajevo, vários amigos de Gotko. Como ele é poeta, seus amigos são um bando de malucos beleza, em geral ligados à arte. Há um mímico, um casal mais idoso de intelectuais, ele judeu, ela muçulmana. Surgirá depois no grupo uma saxofonista de beleza absolutamente estranha e faiscantes olhos azuis; chama-se Aska (Saadet Aksoy, na foto abaixo), e terá importância imensa na trama.
Gemma e Diego apaixonam-se perdidamente, de cara. Vão voltar a se encontrar mais tarde em Roma, onde ela vive. Terão uma história de amor intenso, fortissimo – e aí, finalmente, quando o filme já está se aproximando da metade de seus longos 127 minutos, a narrativa passa a se concentrar na questão de Gemma querer desesperadamente um filho de Diego.
Esse desejo gigantesco estará no auge quando os dois voltarão para Sarajevo no início dos anos 90, em meio à loucura da guerra civil.
A trama a partir daí terá tons absolutamente trágicos – e surpresas, e uma imensa reviravolta.
“A expressão fácil de Penépole Cruz ao longo do filme é emocionante”
Venuto al Mondo teve no Brasil o título de Prova de Redenção. Foi exibido no canal Max, no entanto, com o título de Bem-Vindo ao Mundo. Nos países de língua inglesa, chamou-se Twice Born, nascido duas vezes. Na França foi Venir au Monde, na Espanha Volver a Nacer, em Portugal Voltar a Nascer.
Sergio Castellitto (na foto abaixo) é um romano da minha geração – nasceu em 1953. Tem mais de 70 títulos como ator em sua filmografia, iniciada em 1981. Este aqui foi o quinto filme que dirigiu – e, aparentemente, apenas o segundo a ser lançado no Brasil, depois de Não se Mova, de 2004 – também baseado em livro de sua mulher Margaret Mazzantini, também com roteiro do casal e também com Penélope Cruz no elenco.
Uma leitora do IMDb que vive na Califórnia escreveu o seguinte: “Fantástica atuação de Penélope Cruz. Ela mostra os reais sentimentos de ser uma mãe. O desejo de uma mulher de ser mãe foi muito bem ilustrado. Sua expressão facial ao longo do filme é emocionante e faz você ficar pensando sobre este filme durante um bom tempo.”
Eu não entrei em sintonia com o filme. Isso acontece, e não há o que possa ser feito.
Anotação em abril de 2015
Prova de Redenção ou Bem-Vindo ao Mundo/Venuto al Mondo
De Sergio Castellitto, Itália-Espanha, 2012
Com Penélope Cruz (Gemma), Emile Hirsch (Diego), Adnan Haskovic (Gojko), Saadet Aksoy (Aska), Pietro Castellitto (Pietro), Sergio Castellitto (Giuliano), Mira Furlan (Velida), Jane Birkin (a psicóloga), Luca De Filippo (Armando)
Baseado no romance Venuto al Mondo, de Margaret Mazzantini
Roteiro de Sergio Castellitto e Margaret Mazzantini
Fotografia Gianfilippo Corticelli
Música Eduardo Cruz
Montagem Patrizio Marone
Produção Medusa Film, Alien Produzioni, Mod Producciones, Picomedia, Telecinco Cinema.
Cor, 127 min.
**1/2
2 Comentários para “Prova de Redenção / Venuto al Mondo”