O Sonho de Wadjda é um filme maravilhoso, feito com talento, esmero e imensa sensibilidade. Mas, além disso, além de ser belíssimo cinema, é também daquele tipo de obra de arte que é necessária, imprescindível. Que faz avançar – ainda que um pouquinho – a civilização.
É um libelo contra as tiranias, especificamente contra a tirania da religião, contra as regras rígidas que interferem na vida das pessoas a cada momento, a cada pequeno gesto, as proibições, a quantidade absurda de proibições que regem todas as atividades.
É também um libelo contra o machismo, a sociedade patriarcal em que a mulher é formalmente tida como inferior.
Como foi feito na Arábia Saudita, e a ação se passa na Arábia Saudita, é um filme especialmente corajoso, audacioso. Nem dá para compreender muito bem como a diretora Haifaa Al Mansour (ela também autora do argumento e do roteiro) conseguiu produzir e lançar a obra.
Para os padrões rígidos de necessária obediência aos princípios religiosos que a própria obra expõe, é um filme profundamente – bem-aventuradamente – subversivo.
Já logo na abertura do filme, um show de talento
Já começa com brilho – a abertura demonstra talento de sobra. A primeira tomada é de pés de uma criança, em close-up. São sapatinhos femininos bonitinhos, de lacinho. As meias que a garota usa são de renda. São cuidados femininos que ficam praticamente escondidos por uma espécie de batina negra que, em seguida veremos, é usada por todas as garotas naquela escola. O nome específico da vestimenta que cobre todo o corpo das mulheres na Arábia Saudita é abaya.
O grupo de meninas está cantando um cântico religioso. As legendas do DVD do filme traduzem as palavras do árabe assim:
“Eu me entrego a Alá, ele tem um lugar para mim na eternidade do céu. Com os mártires e os puros eu sempre estarei. Elevei meu coração com a luz da fé e minha paciência, quando me perco, me leva ao caminho certo de novo.”
Depois do close-up daqueles pezinhos com sapatos e meias bem femininas, a câmara se afasta um pouco, mostra os pés de várias meninas que estão de pé, próximas umas das outras. Elas se movimentam um pouco, e a professora as repreende com dureza: – “Parem. Fiquem quietas em seus lugares.”
Aquelas garotinhas de 11, 12 anos, são obrigadas a usar aquele manto negro sobre suas roupas, são obrigadas a recitar cânticos religiosos com frases que elas muito certamente não compreendem, e são obrigadas a ficar quietas, firmes, de pé, paradas onde estão – não podem sequer se mover, ainda que bem pouco.
A professor ordena que elas recomecem a cantar. Temos um plano entre o americano e o close-up: vemos os rostos e o os ombros de quarto das garotinhas do grupo. A terceira da esquerda para a direita, bonita, expressiva, bem morena, cabelos mais longos que os das demais, mostra no rosto que não está muito à vontade com aquilo tudo. Na verdade, sua expressão é de desagrado, de enfado por estar tendo que recitar aquilo.
Duas outras mocinhas entram na grande sala, e aquela garotinha acena para elas.
O gesto é percebido pela professora, que diz seu nome – Wadjda – e a manda ir para a frente do grupo.
Close-up nos pés de Wadjda: ela usa tênis (e veste jeans, por baixo da abaya). É a única do grupo que usa tênis, aquele tipo mais simples, mais comum, de tênis preto com cadarço branco.
A professora manda que ela cante os dois primeiros versos. Wadjda não sabe, ou se lembra, ou não faz esforço para se lembrar. A professora a bota para fora da classe. Wadjda terá que ficar no pátio da escola, sob um sol abrasador.
Começam os créditos iniciais – eles aparecem em árabe mas também em inglês; o filme, uma co-produção Arábia Saudita-Alemanha-EUA-Emirados Árabes-Holanda-Jordânia, foi feito para ser distribuído no mundo inteiro.
Enquanto vão rolando os créditos iniciais, vemos Wadjda em seu quarto, ouvindo música (ocidental) num rádio-gravador, mexendo com uma fita cassete, dançando um pouco ao ritmo da canção pop. O quarto é igualzinho ao de qualquer garota de 12 anos de idade de classe média dos países ocidentais – e, se não fosse pelo manto negro, a abaya, nada indicaria que estamos na Arábia Saudita, um país de costumes religiosos tão absolutamente rígidos.
No primeiro filme todo feito na Arábia Saudita, a garotinha dá show de interpretação
A diretora Haifaa Al-Mansour nos dá, nos cinco minutos iniciais de O Sonho de Wadjda, uma grande quantidade de informações sobre a personalidade, o jeito daquela garotinha. É uma abertura brilhante em forma e conteúdo: sem muitas palavras, basicamente pelo visual, com a sacada inteligente e elegante de realçar o detalhe dos pés das meninas, o filme nos diz que Wadjda é uma garota inteligente, viva, nada submissa, até um tanto rebelde, que não liga para a religião (ou ao menos não finge estar imersa em oração no momento dos cânticos religiosos na escola), é descontraída, mais para esportiva do que apegada a detalhinhos que realçam feminilidade.
Ao longo dos 98 minutos de bom cinema, o filme mostrará que Wadjda é também uma menina absolutamente determinada, de vontades férreas, disposta a todo esforço possível para atingir seus objetivos.
E é impossível para o espectador não se encantar por ela – e, para isso, é fundamental a interpretação da garotinha Waad Mohammed, a escolhida para o papel. Foi um achado, uma coisa espetacular, absolutamente inesperada num país sem qualquer tradição em artes dramáticas, interpretação – O Sonho de Wadjda foi o primeiro longa-metragem inteiramente filmado na Arábia Saudita!
E Waad Mohammed dá um show de interpretação; parece uma garota inglesa – o país de maior tradição de ter bons atores – fazendo o quinto filme de sua carreira.
Mais que a trama, o que importa são os pequenos detalhes
A trama do filme é absolutamente simples. Muito mais que a trama, a história, o que importa são os pequenos detalhes, as expressões, o comportamento das pessoas em seu dia-a-dia que nos abrem para esse mundo tão pouco conhecido que é a Arábia Saudita, que nos revelam como são os costumes, os hábitos, os modos daquele povo.
Detalhes. O Sonho de Wadjda é todo feito de pequenos detalhes, como aqueles do início – a menininha que usa sapatinhos e meias ultrafemininos, a nossa protagonista que usa tênis e jeans.
A mãe de Wadjda (interpretada por Reem Abdullah, mulher de forte beleza, nas fotos acima e abaixo) aparece pela primeira vez usando um secador elétrico com um dispositivo para alisar os cabelos negros e longos.
A mãe (o nome dela não é mencionado hora alguma) trabalha fora: dá aula numa escola distante da sua casa. É uma mulher vaidosa, que toma todos os cuidados com a aparência – mas, como todas as mulheres da Arábia Saudita, esconde toda a elegância embaixo dos trajes que a cobrem da cabeça aos pés sempre que ela sai de dentro de sua casa.
É uma situação bastante paradoxal, essa, de as mulheres se cuidarem, se enfeitarem, se vestirem bem – apenas para esconder tudo sob o manto negro.
Esse paradoxo é ainda mais realçado numa sequência lá pelo meio do filme, em que a mãe vai com Wadjda a um shopping center (elas moram em Riad, a capital do reino) e fica absolutamente fascinada com um vestido vermelho vivo. A loja não tem provador – a mãe tem que ir com o vestido até o banheiro do shopping center, e experimentá-lo ali.
Ao longo do filme, uma série de situações, uma série de detalhes vai nos revelando algumas das normas vigentes na Arábia Saudita:
* as mulheres não podem, jamais, em ocasião alguma, deixar um homem ver seu rosto, seus cabelos: na presença de homens, é obrigatório o uso do véu; isso vale para qualquer idade;
* as mulheres não podem ser vistas por outros homens nem mesmo dentro de suas casas; se o marido recebe amigos para conversar, a mulher deve levar a comida em bandeja até perto da porta da sala e em seguida se retirar;
* o Corão nunca deve ser deixado aberto, para que nada conspurque as páginas onde estão as palavras do Profeta;
* nas escolas, boa parte do tempo é tomada pelo ensino de preceitos religiosos e orações;
* entre as muitas, muitas, muitas coisas que as mulheres são proibidas de fazer está… andar de bicicleta.
Bicicleta é algo proibido para mulheres.
Andar de bicicleta, apostar corrida com seu amiguinho Abdullah (Abdullrahman Algohani), é o sonho de Wadjda que dá ao filme o seu título brasileiro. (No original, o título é apenas o nome da protagonista.)
Mulheres não podem andar de bicicleta – é proibido.
Wadjda encasqueta que quer comprar uma bicicleta. Fará de tudo para juntar o dinheiro – até mesmo, não gostando nada de cânticos religiosos, treinar para recitar o Corão em um concurso na escola, já que o prêmio é uma grande soma de dinheiro.
A diretora tinha que falar com seus técnicos de longe, via walkie-talkie
Para quem – como a imensa maioria das pessoas dos países ocidentais – não sabe nada dos costumes da Arábia Saudita, é bem difícil entender a relação entre o pai (interpretado por Sultan Al Assaf) e a mãe de Wadjda. Os dois não moram juntos: ele aparece na casa da mulher e da filha uma vez a cada semana. Aparentemente, ele é de família muito rica, e ela veio de família bem menos afortunada – embora agora ela viva com muito conforto, em uma bela casa. Há referências a um possível novo casamento dele – a poligamia é permitida no país –, mas não fica muito claro por que a mãe de Wadjda considera que um segundo casamento do marido significará o fim da união entre os dois. Bem, pelo menos não ficou claro para mim.
É difícil mesmo tentar compreender uma sociedade com modos tão diferentes dos que conhecemos.
O que pensar desta informação do IMDb?
“Por causa das restrições às mulheres na Arábia Saudita, a diretora Haifaa Al-Mansour não era autorizada a interagir com a sua equipe composta principalmente de homens. Ela teve que dirigir as cenas de rua de uma van estacionada nas proximidades, observando através de um monitor e dando instruções através de um walkie-talkie.”
Acho que o que dá para pensar é que O Sonho de Wajdja não é apenas um excelente filme, e uma obra necessária, imprescindível, além de corajosa, ousada. É também um milagre.
A equipe não apenas era formada, em sua maioria, por homens, mas também por não árabes. O diretor de fotografia Lutz Reitemeier é, como mostra o nome, alemão, assim como o compositor Max Richter e o montador Andreas Wodraschke.
Um filme para ser visto por todas as pessoas de bem
A bela Reem Abdullah, que interpreta a mãe de Wadjda, é extremamente jovem – nasceu em 1987! – e, segundo o IMDb, é a atriz mais conhecida de seu país. Embora este tenha sido seu primeiro filme, já que a rigor não existe cinema saudita, ela vem de uma carreira respeitável na televisão. Como comprovação de que aquele é um país de paradoxos, ela começou a carreira no show Tash Ma Tash, uma série cômica da TV saudita tida como liberal e bastante crítica da predominância dos costumes rígidos e intolerantes.
Reem Abdullah sempre viveu em seu país – diferentemente de outra atriz do filme, Ahd Kamel (na foto acima), que agora faz questão de assinar apenas o prenome. Ahd interpreta a rigorosa, rígida, quase fanática diretora da escola em que Wadjda estuda. Na vida real, ela parece ser o oposto de seu personagem: instalou-se em Nova York a partir de 1998, estudou Direito na Columbia University, comunicação na Parsons School of Design e depois direção na New York Film Academy. Ela já escreveu e dirigiu três curtas.
E, finalmente, Haifaa Al-Mansour. A primeira diretora de cinema da Arábia Saudita. A autora do primeiro longa-metragem inteiramente filmado naquele reino.
Nasceu em 1974 – estava, portanto, com 38 anos quando seu filme foi lançado, em 2012. Não nasceu em Riad, a capital em que se passa a ação de O Sonho de Wadjda, e sim numa pequena cidade do interior, a oitava filha de uma família de 12. O pai é poeta.
Estudou literatura inglesa na Universidade Americana do Cairo, no Egito; depois, na Austrália, estudou cinema na Universidade de Sidney. Escreveu e dirigiu três curtas e, em 2005, lançou um documentário, Women Without Shadows. Segundo a curta biografia dela no IMDb, a artista tornou-se uma figura controvertida na Arábia Saudita, com admiradores fiéis e também críticos ferozes.
Seu trabalho tem sido reconhecido. Ela já recebeu 18 prêmios e teve 12 outras indicações – inclusive uma para o Bafta de melhor filme em língua estrangeira.
Haifaa Al-Mansour é uma mulher para ser aplaudida de pé, para ser reverenciada, homenageada. E seu Wadjda deve ser visto por todos os que amam o bom cinema e preferem a luz e a liberdade às trevas e às tiranias.
Anotação em março de 2015
O Sonho de Wadjda/Wadjda
De Haifaa Al-Mansour, Arábia Saudita-Alemanha-EUA-Emirados Árabes-Holanda-Jordânia, 2012
Com Waad Mohammed (Wadjda),
e Reem Abdullah (a mãe), Abdullrahman Algohani (Abdullah), Ahd (sra. Hussa, a diretora da escola), Sultan Al Assaf (o pai), Alanoud Sajini (Fatin), Rafa Al Sanea (Fatima), Dana Abdullilah (Salma)
Argumento e roteiro Haifaa Al-Mansour
Fotografia Lutz Reitemeier
Música Max Richter
Montagem Andreas Wodraschke
Produção Razor Film, High Look Group, Rotana Studios,
Norddeutscher Rundfunk. DVD Imovision.
Cor, 98 min
***1/2
Graças a uma nova editora o filme chegou a Portugal em cinemas e em DVD. Adorei este filme, tão simples mas tão cheio de conteúdo. Às vezes parece que estamos a ver um filme de ficção-científica de tão estranho é o que se passa.
Haifaa Al-Mansour é uma mulher de grande coragem e grande talento.