Os exibidores brasileiros deram o título de Entre Dois Mundos a essa co-produção de Canadá-África do Sul-Inglaterra de 2007, mistura de épico com melodrama romântico.
O título original, Partition, é a expressão pela qual ficaram conhecidos os acontecimentos históricos que o filme retrata: o fim do domínio britânico sobre o subcontinente indiano, em 1947, e a divisão, separação, partição da imensa e superpovoada região em dois países independentes, a Índia e o Paquistão.
Letreiros, antes do início da ação, procuram ajudar o espectador, tentam dar um resumo mínimo do contexto histórico:
“Em 1947, a Índia tornou-se independente do domínio colonial, encerrando quase 350 anos de presença britânica no subcontinente. Numa tentativa de evitar uma guerra divil, a Índia foi dividida em duas nações, o Paquistão islâmico e a Índia secular. Mais de 14 milhões de pessoas deixaram seus lugares natais, em uma migração de muçulmanos para o Paquistão e de sikhs e hindus para a Índia. Velhas animosidades ressurgiram e mais de um milhão morreram no caos e na violência que se instaram.”
Um milhão de mortos!
Índia e Paquistão ainda se estranham até hoje, a animosidade jamais foi superada – mas aqueles anos iniciais após a partição foram especialmente violentos, com essa absurda contagem de um milhão de mortos.
E é exatamente sobre esse período conturbado, caótico, sanguinário, que trata a trama – fictícia, é claro, mas baseada em dados da realidade – criada por Vic Sarin e Patricia Finn. Os dois autores do argumento e do roteiro de Partition pegaram um caso, uma história, o microcosmo, para usar como exemplo de tantas histórias semelhantes que seguramente aconteceram ali naquela época.
A questão que pode ficar dançando na cabeça do espectador – bem, ficou bastante na minha – é: mas por que raios esse drama ocorrido na Índia e no Paquistão é retratado numa co-produção Canadá-África do Sul-Inglaterra?
Essa questão tem a ver, é claro, com Vic Sarin, esse nome que aparece três vezes nos créditos iniciais: ele é, como já foi dito, o co-autor do argumento e roteiro, e também é o diretor de fotografia e o diretor, o realizador do filme!
A ação começa num elegante clube inglês, numa partida de pólo
E que fotografia! Uma das grandes qualidades deste Partition, talvez a maior de todas, seja a fotografia, soberba, brilhante, de uma beleza acachapante.
Depois do letreiro com aquelas informações que transcrevi acima, há um novo letreiro, com o onde e o quando: “Delhi Polo Club, 1941”.
O protagonista da história aparece de imediato: é um dos jogadores de um dos times de pólo, na partida disputada num clube inglês, com aquela limpeza e elegância inglesas. Chama-se, veremos, Gian, é interpretado por Jimi Mistry (à direita na foto acima) e é um sikh – a etnia fica clara, óbvia, pelo tipo de turbante que os sikhs usam, para cobrir os cabelos longos, que usam enrolados à semelhança dos rastafáris.
No mesmo time – que vence a partida, é claro, já que é o time dos heróis da história – jogam outro sikh, Avtar (Irrfan Khan), e um jovem inglês, Andrew Stilwell (Jesse Moss), filho de alto funcionário do governo. Os três são muito amigos, pertencem ao mesmo regimento do exército de Sua Majestade; Andrew é mais novo e mais inexperiente que Gian e Avtar, mas, porque é inglês, e filho de alto funcionário, ocupa posto superior ao dos dois soldados – é sargento.
Assistindo ao jogo de pólo ali no clube estão dois outros personagens que estarão presentes ao longo de toda a narrativa. Margaret é a irmã mais velha de Andrew, e já tem um cargo no governo. É interpretada pela belíssima Neve Campbell. E Walter Hankins (John Light) é amigo de todos os demais; também inglês, é jornalista, trabalha no Times de Nova Délhi e tem uma queda forte – o espectador nota desde o primeiro momento – pela bela, simpática, maravilhosa Margaret.
Os dois sikhs e os três ingleses estão juntos no clube de pólo quando Andrew recebe um telegrama: ele – assim como Gian e Avtar – deve se apresentar imediatamente ao seu regimento, que está sendo enviado para o front.
Margaret pede aos dois amigos sikhs que protejam seu irmão querido.
O sikh Gian vai depois da guerra visitar a bela Margaret, que perdeu o irmão
Corte no tempo, novo letreiro. Passaram-se cinco anos, estamos em 1946. A Segunda Guerra Mundial acabou, Mahatma Ghandi lidera o movimento de não-violência pela independência da Índia, os tempos são de mudança.
Gian visita Margaret em Nova Délhi. Ele e Avtar estavam com Andrew quando o rapaz foi morto, durante uma batalha. Walter Hankins havia escrito matéria no Times falando que o sargento morreu como herói.
Conversam um pouco; Margaret não gostaria de ir para a Inglaterra? Ela diz que não, já não sente mais a Inglaterra como sua pátria, prefere ficar. Já Gian vai para a sua terra, o Punjab, no extremo Norte da Índia, perto da fronteira com o outro país recém-criado, o Paquistão.
Despedem-se bem formalmente, a bela inglesa e o belo sikh. Assim que sai da casa da irmã do amigo morto, Gian pega na mão um apito que Margaret havia dado de presente para Andrew, para que ele chamasse os dois amigos sikhs para ajudá-lo se ficasse num situação delicada, numa emergência.
Gian pensa em voltar e devolver para Margaret o apito. Chega a voltar até junto da porta do apartamento dela – mas lá dentro ela está chorando pela falta do irmão morto na guerra. Bem inglesa: ao conversar com o amigo do irmão, foi formal e sorridente. Deixada sozinha, aí sim, se permite o choro, a expressão da dor.
Gian, sujeito bom em tudo por tudo, educado, percebe que não teria sentido tocar a campainha. E vai-se embora.
O filme não defende um dos lados: denuncia os erros de hindus e muçulmanos
Novo corte no tempo, novo letreiro, o terceiro indicando o onde e o quando neste iniciozinho de filme: “Punjab, Índia, 1947 – Migração muçulmana para o Paquistão”.
Uma longa fila de pessoas caminha levando tudo o que conseguiu juntar; pretendem chegar à fronteira recém-estabelecida entre Índia e Paquistão, e radicar-se no país criado para acolher os muçulmanos do subcontinente índico.
Sem que nem por quê, um grande grupo armado de soldados hindus e sikhs aparece e sai matando velhos, mulheres, crianças – dezenas, centenas, milhares de pessoas.
No meio do massacre, o filme destaca uma família, pai, mãe, dois filhos e uma filha. A moça é perseguida por um hindu, mas consegue chegar até um bosque próximo e fica escondida ali. O pai é assassinado. A mãe e os dois filhos homens conseguem escapar do massacre.
O massacre, veremos, acontece exatamente no local onde mora agora Gian. Ele vai, no dia seguinte, encontrar, sem querer, a moça muçulmana que escapou da morte – Naseem (Kristin Kreuk). Ele sabe que ela corre o risco de ser morta. Protege-a, leva-a para a sua casa, a esconde – salva a vida da moça, em suma.
Partition não é um filme pró-hindus e sikhs ou pró-muçulmanos. Muito ao contrário. É um filme que denuncia tanta violência, tanta mortandade absolutamente sem necessidade, sem sentido – e chora por ela.
Então, uma no cravo, outro na ferradura. Depois de mostrar aquele massacre de centenas de muçulmanos do qual escapa a moça Naseem, o filme mostra um ato tão brutal quanto o outro: o massacre de centenas de hindus e sikhs pelos muçulmanos do Paquistão.
Nessa altura, o filme está aí com uns 25, no máximo 30 minutos. Ainda haverá muito drama, muita desgraça, muita tragédia pela frente.
Todo o tom do filme é corretíssimo – mas ele não chega a ser grande
Partition não me pareceu um grande filme. No entanto, todo o seu tom é absolutamente correto: não foi feito para condenar nem um lado nem outro, nem fazer a defesa nem de um lado nem de outro. Mostra que os dois lados cometeram absurdas atrocidades – e mostra que existe, sim, a possibilidade de fugir dessa coisa absurda do olho por olho, dente por dente, de, em algum momento, parar o círculo viciado do eles mataram então nós matamos.
Essa coisa que o filme mostra é uma maravilha – sim, existe, é possível, dá para fazer, dá para parar o círculo viciado, não é uma enchente, não é uma avalanche, basta parar, raciocinar, e afinal ninguém aprende a odiar os outros na aula dominical da igreja, e ninguém nasce odiando o outro porque é preto, muçulmano, católico, judeu, hindu, ateu, gordo, feio, o que for.
Pois é. Apesar de ter qualidades, como a fotografia extraordinária e uma visão corretíssima das coisas do mundo, não me pareceu um grande filme. Eu disse assim que terminou, e Mary concordou mais do que depressa: não, repetiu ela, não é um grande filme. Mas também não é ruim, de jeito nenhum. E deve ser visto, por retratar eventos históricos importantes, marcantes.
Por que, então, não é um filme muito bom?
Não é algo muito fácil de exprimir. O que faz com que Partition não chegue a ser um filme muito bom não é algo muito óbvio, muito às claras. De forma alguma.
Creio que falta autenticidade. Creio que o roteiro avança por coisas que dizem respeito a uma civilização que é muito distante do universo de seus autores.
É algo que a gente nota perfeitamente em filmes feitos por americanos sobre realidades que eles não conhecem, não dominam, não compreendem, como as de países ao Sul do Rio Grande. Mestre John Ford não conseguiu fazer um bom filme ao mostrar uma realidade especificamente mexicana, em Domínio de Bárbaros/The Fugitive (1947). No Tempo das Borboletas/In the Time of the Butterflies (2001), uma co-produção EUA-México, é cheio de boas intenções em retratar parte da história da República Dominicana, na época da ditadura de Trujillo, mas é um filme muito ruim, atolado em clichês. A Guerra de um Homem Só/One Man’s War (1991), produção inglesa dirigida pelo brasileiro Sérgio Toledo, tem a nobre intenção de denunciar as crueldades da ditadura de Stroessner no Paraguai – mas é um filme fraco.
Não sou profundo conhecedor da realidade do México no início do século passado, ou da República Dominicana lá pelos anos 1950, 1960, ou do Paraguai nos 1970, e muitíssimo menos ainda da história da Índia na época da partição. Mas acontece é que a gente percebe que tem alguma coisa esquisita – falta autenticidade. Falta conhecimento de causa.
O realizador nasceu no lugar e na época dos fatos, mas cresceu longe dali
E aí é que está. A explicação para aquela questão – por que raios uma co-produção Canadá-África do Sul-Inglaterra sobre a partição Índia-Paquistão? – passa necessariamente por Vic Sarin.
Vic Sarin nasceu na Índia, em 1945, mais exatamente na província de Kashmir, a Caxemira, um autêntico barril de pólvora que faz fronteira com o Paquistão e a China e é objeto de disputa ferrenha entre as duas nações surgidas com a partição em 1947. Era uma criança, portanto, quando os trágicos eventos mostrados em seu filme ocorreram de fato.
Numa pesquisa rápida, não consegui obter informações sobre a nacionalidade e a origem dos pais de Vic Sarin. Na Caxemira, na época da partição, o pai dele tinha um cinema – e foi lá que começou a paixão do garoto pelos filmes. Depois da partição, o pai foi trabalhar no Ministério de Relações Exteriores na capital, Nova Délhi. E, quando Vic Sarin era adolescente, a família se mudou para a Austrália, onde ele começou sua carreira como auxiliar de fotografia, e depois diretor de fotografia. Nos anos 1960, emigrou para o Canadá e radicou-se lá.
Então, depois de trabalhar como diretor de fotografia, começou a dirigir documentários e depois filmes de ficção para a televisão. Seu primeiro longa-metragem para o cinema foi exatamente este Partition – para fazê-lo, contou com a ajuda de produtores sul-africanos e ingleses, e teve um orçamento confortável, de US$ 10 milhões. As filmagens foram no Canadá, na British Columbia, onde, parece, o diretor vive, e no próprio Norte da Índia, o local em que se passa a ação.
E o fato é que Vic Sarin quis, em seu primeiro longa, retratar uma época das mais turbulentas da história, exatamente a época em que ele nasceu, no lugar em que ele nasceu. Isso é uma maravilha, e isso seguramente explica as qualidades que o filme tem.
Da mesma forma, o fato de que ele foi criado longe, muito longe daquela realidade que retrata deve seguramente explicar por que o filme deixa essa sensação de que falta alguma coisa.
Tento dar três exemplos para explicar essa coisa que sinto mas de fato não é nada fácil de exprimir.
As roupas dos personagens estão sempre imaculadamente limpas. Mais saídas de um estúdio de cinema do que da realidade indiana. Os ambientes são todos muito limpos – não há sujeira alguma nas ruas.
A forma com que Naseem passa a ser amplamente aceita, após todos desejarem sua morte imediata, é algo muito rápido, e portanto estranho, meio inaceitável, ilógico.
E, terceiro, todo o trabalho de Gian na terra, ele arando a terra, jogando sementes, é muito idílico, perfeito demais, quase celestial. Difícil imaginar algo assim tão idílico num momento e num local tão atribulado, tumultuado, quanto Punjab na época da partição.
Não é fácil explicar essa sensação de que tem algo um tanto falso
A Índia tem mais de 1 bilhão de habitantes, e o cinema mais forte e poderoso do mundo. Tem portanto mais atrizes belíssimas do que qualquer outro país. A atriz escolhida para fazer o principal papel feminino, Kristin Kreuk (na foto acima), é uma canadense de Vancouver, British Columbia (nasceu em 1982), filha de mãe descendente de chineses e pai descendente de holandeses.
Jimi Mistry, o ator que interpreta o protagonista, Gian, tampouco é indiano. Nasceu em Yorkshire, Inglaterra, filho de um indiano e uma irlandesa; foi criado no catolicismo.
Não vai nisso nenhuma crítica. São apenas dados, informações. Mas talvez elas ajudem a formar aquilo que senti ao ver o filme: uma falta maior de autenticidade, de real conhecimento do que que se está falando.
É isso: não é um grande filme, mas de forma algum é ruim.
Anotação em junho de 2015
Entre Dois Mundos/Partition
De Vic Sarin, Canadá-África do Sul-Inglaterra, 2007
Com Jimi Mistry (Gian Singh), Kristin Kreuk (Naseem Khan)
e Neve Campbell (Margaret Stilwell), John Light (Walter Hankins), Irrfan Khan (Avtar Singh), Madhur Jaffrey (Shanti Singh), Arya Babbar (Akbar Khan), Lushin Dubey (Mumtaz Khan), Chenier Hundal (Zakir Khan), Jesse Moss (Andrew Stilwell), Jaden Rain (Vijay Singh)
Argumento e roteiro Vic Sarin e Patricia Finn
Fotografia Vic Sarin
Música Brian Tyler
Montagem Reginald Harkema
Produção Sepia Films, Téléfilm Canada, Astral Media, Khussro Films, Movie Central Network, Myriad Pictures. DVD Imagem Filmes.
Cor, 116 min
R, **1/2