O tio, o personagem, é um peça, uma figura rara, daquelas carimbadas, que a gente encontra poucas vezes na vida. Meu Tio, o filme, também.
Jacques Tati faz um tipo de humor que é único, peculiar. Não é igual a nada feito antes dele, nem outro artista que veio depois fez algo exatamente como aquilo. Exatamente como Monsieur Hulot, e como o tipo de narrativa de Tati, não há.
Igualinho, não. Mas é claro que dá para sentir um pouco de Charlie Chaplin atrás dele – e, depois dele, um pouco de Blake Edwards, especialmente o de Um Convidado Bem Trapalhão/The Party (1968), bastante de Jerry Lewis, especialmente o de O Mensageiro Trapalhão/The Bell Boy (1960), e um tanto de Mel Brooks, no conjunto da obra. Todos eles demonstram ter sido influenciados por Jacques Tati. E eu ousaria dizer até que os personagens fellianos aprenderam um pouco com o cinema desse realizador sui generis. Vou tentar justificar essa afirmativas mais tarde.
Três décadas depois do advento do som, Tati faz um filme que é quase mudo
Meu Tio é uma contraposição entre o tradicional e o novo, o moderno. Entre o afeto e a afetação. Entre o sincero e o posado. Entre o autêntico e o copiado. Entre os have e os have not, o povo e “os burgueses”, essa gente que o cinema feito na França e em especial na Itália entre 1945, o fim da Segunda Guerra, e o aí por 1990, o fim do Império Comunista, odiava mais que tudo.
Algum tempo depois de rever o filme agora, 56 anos depois que ele foi feito e lançado, em 1958, mais de meio século depois de ter visto pela primeira vez, ainda bem garoto, fiquei pensando que Meu Tio pode ser visto também como um grito de alerta de um francês extremamente francês contra a influência da cultura, dos costumes, dos modos daquele aliado tão amado e tão odiado, os Estados Unidos da América.
Alguns anos depois de Meu Tio, Woody Allen criaria um personagem, uma persona, que estaria presente em dezenas de filmes: o judeu nova-yorquino artista neurótico. É uma das personas mais fantásticas e duradouras da história do cinema.
A única persona que está presente em um número tão grande de filmes quanto o judeu nova-yorquino artista neurótico é o vagabundo, o Carlitos, a criação brilhante, genial, eterna de Charlie Chaplin.
Chaplin resistiu ao cinema falado o quanto pôde. O cinema aprendeu a falar em 1927 – e o vagabundo, remando contra a maré de toda a indústria, continuou mudo durante longos 13 anos; apenas em 1940, com O Grande Ditador, o gênio fez um filme totalmente falado. (E aí passou a ser chato, segundo Billy Wilder, mas esta é outra história.)
Meu Tio, feito três décadas depois do advento do som, é quase um filme mudo.
Quase. Há alguns diálogos – esparsos, não muito fundamentais. E há uma trilha sonora, assinada por Frank Barcellini e Alain Romans, ela sim, absolutamente fundamental para a narrativa, tão fundamental quanto as melodias de Michel Legrand para Les Parapluies de Cherbourg (1964), o primeiro filme totalmente musical da História, em que todas, absolutamente todas as falas são cantadas.
Monsieur Hulot não fala. Quase – ouvimos dele umas duas ou três frases. Quatro, no máximo. Durante todo o resto do tempo, excetuadas aí essas duas ou três ou quatro frases, Monsieur Hulot é tão mudo quanto o Carlitos pré-O Grande Ditador. Monsieur Hulot é o cerne, o núcleo, a base de um personagem de cinema tal qual o cinema foi antes de aprender a falar: um ser que se exprime pelo visual. Pela indumentária, pelos gestos, pelas ações – não pelas palavras.
O cinema é a única das artes em que isso é possível – o personagem se exprimir pelo visual, sem palavras.
O cinema é a única arte que tem condições de reunir os dons de todas as outras seis que vieram antes dele. O cinema conta histórias como a literatura, com atores como no teatro, e a isso pode juntar música e dança, e usa pintura e escultura como elementos básicos dos cenários.
Tati representando Monsieur Hulot, assim como Chaplin interpretando o vagabundo Carlitos em filmes como Em Busca do Ouro (1925), Luzes da Cidade (1931) e Tempos Modernos (1936), dispensa as palavras, para ficar mais fiel à magia básica do cinema – as imagens em movimento.
A casa do cunhado é toda modernosa, cheia de gadgets
Monsieur Hulot é cheio de trejeitos. Parece ser um tipo bem alto, porque está sempre a se curvar um pouquinho para baixo quando vai falar com as outras pessoas. (Conferido: Jacques Tati tinha 1 metro e 91.)
Veste-se sempre do mesmo jeito: calças pega-frango, meias coloridas, e uma capa de chuva como sobretudo. Usa chapéu o tempo todo. Nunca é visto sem um guarda-chuva, como se fosse um inglês.
É gentil, amável, afável, afetuoso: todo mundo gosta dele – com a exceção talvez do cunhado, presidente de uma empresa que fabrica artefatos de plástico. Mas é desajeitado, esquisito, trapalhão. É um grande de um trapalhão: não dá, é claro, para garantir, mas o personagem de Peter Sellers em Um Convidado Bem Trapalhão, e o de Jerry Lewis em O Mensageiro Trapalhão parecem inspirados no Monsieur Hulot. Também não é possível garantir, mas dá para imaginar que Renato Aragão, que não é bobo nem nada, tenha bebido nessa mesma fonte.
Exatamente como Jerry Lewis faria em O Mensageiro Trapalhão, Meu Tio não tem propriamente uma história, uma trama. É a descrição de um tipo, o protagonista, e de suas relações com as pessoas próximas – Betty (Betty Schneider), a filha da concierge do prédio simples e em mau estado em que mora, os frequentadores do bar em frente, o lixeiro do bairro, e, sobretudo, com a irmã, Madame Arpel (Adrienne Servantie), o cunhado, Charles Arpel (Jean-Pierre Zola) e o sobrinho, Gerard (Alain Bécourt).
O cunhado Charles, como já foi dito, é um industrial, rico, e construiu uma casa moderna (horrorosa), completamente diferente do padrão sólido (e belo) das edificações francesas. A casa é dotada de todo tipo de maquinário moderno, avançado (para a época, é claro). Tudo na cozinha é automático, responde ao aperto de um botão. O portão é elétrico – o que provavelmente era uma grande novidade na França na época. O amplo jardim diante da casa tem pouco verde e muita pedrinha, e o maior encanto dele, na opinião da dona da casa, é um (ridículo, horripilante) peixe de concreto, que fica de pé, bem no meio do jardim; da boca do peixe sai um filete d’água, sempre que Madame Arpel liga a fonte, através de um botão na sala.
Uma sacada de gênio: a casa tem duas janelas redondas, no andar de cima. Parece uma cara de desenho animado. Numa sequência antológica, marido e mulher ficam cada um em uma janela – exatamente como se fossem as íris dos dois olhos.
Jacques Tati criou tipos marcantes, insólitos, antes de Fellini criar os dele
Então, não temos exatamente uma história, uma trama, mas uma série de esquetes, cenas da vida do pobre, simples, simpático e tradicionalista Monsieur Hulot e da família rica, metida, exibicionista e “moderna” da irmã dele.
Vários desses esquetes, dessas sequências, são hilariantes, antológicas. A mais brilhante de todas, creio, é aquela em que Madame Arpel convida a vizinha esquisita (Dominique Marie), o irmão e dois casais de amigos para uma “garden party”. É de morrer de rir – e é um brilho de realização.
Máquinas, equipamentos que preparam a comida automaticamente, gadgets, engenhocas, “modernidade”. “Garden party”, “living room”, expressões usadas por Madame Arpel – expressões inglesas, numa cultura que até pouco tempo atrás odiava de morte qualquer anglicismo. É muito claro que Jacques Tati se referia à influência do american way of life sobre os costumes franceses.
Uma das muitas qualidades excepcionais do filme é a escolha dos atores. Cada tipo! Charles e Madame Arpel são gordinhos, rechonchudos, como se fossem personagens de história em quadrinhos. A vizinha esquisita, então, é de uma feiúra que parece uma charge. A secretária de Charles na fábrica caminha ligeirinho, como se fosse um autômato, um robozinho. Já Betty, a filha da zeladora do prédio de Hulot, como é das classes mais baixas, é lindinha como uma boneca.
Todo mundo usa a expressão tipos fellinianos. Poderíamos perfeitamente dizer tipos tatianos. Tati criou tipos marcantes, insólitos, antes de Fellini criar os dele.
“O indivíduo perante a multidão, a inocência do simples abalada por costumes sofisticados”
Jacques Tati (1908-1982) era descendente de russos aristocráticos: seu avô, o conde Dimitri Taticheff, foi um general do exército imperial e serviu como adido militar junto à embaixada russa em Paris. O jovem Jacques teve sólida educação artística e desportiva – jogou rugby na juventude. Começou a carreira como ator de cabaré e de music hall, depois passou a atuar no cinema (foi ator em filme de Claude Autant-Lara). Em seguida, começou a escrever roteiros que depois transformaria em curta-metragens.
O personagem de Monsieur Hulot apareceu pela primeira vez em 1953, em As Férias do Sr. Hulot. Depois de Meu Tio, apareceria também em Playtime (1967) e Trafic (1971).
Segundo Jean Tulard, o interesse de Jacques Tati, a partir da criação do personagem de Monsieur Hulot, “é o indivíduo perante a multidão, as reações espontâneas da criança diante da padronização do mundo moderno, a inocência do simples abalada por costumes cada vez mais sofisticados”. O grande crítico diz que há nas obras do realizador uma postura de fé na infância, e, além da amargura, uma espécie de confiança final no homem. “É possível que se prefira – e com razão – Keaton, Fields ou Lloyd, infinitamente mais engraçados, mas não se pode negar que Tati teve uma ambição elogiável: lançar um novo olhar sobre o mundo.”
“Não creio que as linhas geométricas tornem as pessoas amáveis”
Mon Oncle ganhou o prêmio especial do júri no Festival de Cannes e o Oscar de melhor filme estrangeiro.
Diz Georges Sadoul em seu Dicionário de Filmes: “Hulot mora num velho apartamento, e seu sobrinho, com os pais, os Arpel, numa casa ultramoderna. Contraste entre esses ricos burgueses e um bom rapaz boêmio a quem querem fazer trabalhar numa fábrica. Sequências marcantes: cães vadiando num terreno baldio; a saída do sr. Arpel de carro para a fábrica de plástico; Hulot subindo para sua bizarra moradia, depois fazendo compras num velho bairro; suas imperícias na fábrica; manhã num pequeno restaurante; tarde no jardim geométrico dos Arpel; a chegada da vizinha afetada. Sátira não ao modernismo, mas aos burugueses que se consideram modernos. ‘O que me irrita’, disse Tati, ‘não é o fato de se construírem imóveis novos, que são necessários, mas casernas. Não gosto de ser mobilizado, não gosto da mecanização. Defendi o pequeno bairro, o canto tranquilo contra as auto-estradas, aeroportos, organização, uma forma da vida moderna, pois não creio que as linhas geométricas tornem as pessoas amáveis. Para mim, deve se revalorizar a gentileza pela defesa do indivíduo, numa ótica finalmente otimista.”
Diz o livro 1001 Filmes Para se Ver Antes de Morrer: “O humor é quase totalmente visual – e auditivo. Poucos comediantes usaram com tanta criatividade a trilha sonora, e os cliques, apitos, zumbidos e estalos dos variados utensílios dos Arpel – e do maquinário da fábrica na qual o mal aconselhado Arpel arranja emprego para o cunhado – muitas vezes alcanças um nível de bem orquestrada loucura. Tati tem um prazer cruel em mostrar como a automação, supostamente feita para melhorar a qualidade de vida, acaba agindo contra o conforto, o relaxamento e o prazer. Porém, o elemento humano, representado pelo desastre ambulante que é Hulot, jamais pode ser excluído. Há uma melancolia subjacente em Meu Tio – o som de britadeiras ressoa de forma agourenta sobre os créditos -, mas há também uma espécie de otimismo tristonho.”
É isso. Não tenho idéia de como as gerações mais jovens avaliariam hoje Meu Tio, sem a perspectiva da época em que ele foi feito, sem saber o contexto. Talvez não compreendam bem toda a maestria, a genialidade de Jacques Tati. Seria uma pena.
Anotação em julho de 2014
Meu Tio/Mon Oncle
De Jacques Tati, França, 1958.
Com Jacques Tati (Monsieur Hullot)
e Jean-Pierre Zola (Charles Arpel), Adrienne Servantie (Madame Arpel), Alain Bécourt (Gerard Arpel, o sobrinho de Hullot), Lucien Frégis (Monsieur Pichard), Betty Schneider (Betty, a filha da concièrge), Jean-François Martial (Walter), Dominique Marie (a vizinha), Yvonne Arnaud (Georgette, a empregada), Adelaide Danieli (Madame Pichard)
Argumento e roteiro Jacques Tati, com a colaboração de Jacques Lagrange e Jean L’Hôte
Fotografia Jean Bourgoin
Música Frank Barcellini e Alain Romans
Montagem Suzanne Baron
Direção de arte Henri Schmitt
Produção Gaumont, Specta Films, Gray-Film, Alter Films
Cor, 117 min
R, ***1/5
Em 1958 Jacques Tati já sabia de três coisas: a vida moderna é um beco sem saída;
os EUA são o império romano da atualidade sim, mas imitá-los é uma furada;
por último, apesar de a pobreza aguda trazer colada em si a infelicidade, ninguém precisa ser rico pra ser feliz.