Mary Poppins é o máximo. É uma gloriosa maravilha.
É um dos melhores filmes para a toda a família que já foram feitos. É daqueles que deixam o espectador levitando, a alguns centímetros do solo.
Me arrependo por não ter mostrado para minha filha quando ela era garotinha. Quero mostrar para minha neta assim que ela começar a ver filmes.
E, já que comecei esta anotação com uma observação tão pessoal, acrescento mais uma: creio que só tinha visto Mary Poppins uma vez, antes desta agora. Pelo menos, só anotei que o vi uma vez – no dia 1º de janeiro de 1967, poucos dias antes de fazer 17 anos.
Com a petulância, a metidez, a arrogância de adolescente, e de um adolescente que gostava de Godard, Gláuber, Truffaut, Bergman, Malle, Hitchcock, Penn, Risi, Kadar & Klos, Germi, de Sica (vi filmes de todos eles nos meses anteriores), dei a Mary Poppins, no meu segundo caderno de cinema, 2 estrelas em 5. (Só mais tarde eu iria aderir à graduação de 4 estrelas, como faço agora neste site.)
Ou seja: o Sérgio Vaz adolescente petulante, metido, arrogante, deve ter achado o filme infantilóide, babaca, “americano” – um dos piores xingamentos que um adolescente comunista poderia usar.
As duas estrelas que aquele garoto pentelho deu ao filme só reforçam a idéia: Mary Poppins é o máximo.
Credo em cruz: vejo agora que o filme tem 140 minutos. Impressionante: ao revermos, pareceu que tinha apena uns 80. É isso. Filme bom passa depressa demais. Filme ruim faz parecer que 80 minutos demoram três horas e meia.
Revimos Mary Poppins antes de ver, pela primeira vez, Walt nos Bastidores de Mary Poppins/Saving Mr. Banks (2013), que John Lee Hancock dirigiu para os estúdios Disney, sobre a luta longa e insana do produtor para conseguir que a escritora P. L. Travers cedesse os direitos de adaptação de seus livros para o cinema. São dois belos filmes, e, naturalmente, cada um deles tem vida independente – não é necessário ter visto um para apreciar o outro. Mas vê-los na mesma época, em dobradinha, é de fato uma experiência fascinante.
Depois que a gente vê Saving Mr. Banks, fica difícil acreditar que, depois de tanta discussão entre a autora das histórias, de um lado, e, de outro, Walt Disney, os roteiristas, os compositores, tenha saído uma obra tão absolutamente doce.
Uma atriz fora de série, canções maravilhosas, coreografia avançada
Diversos elementos do filme me impressionaram demais, nesta revisão. Alguns deles:
* Julie Andrews, é claro, antes de mais nada. Julie Andrews é um encanto absoluto, que esbanja talento em tudo o que faz. Quando o filme foi lançado, em 1964, estava com 29 anos – e era a estréia dela no cinema. Antes, tinha tido sólida carreira no teatro e havia feito filmes para a TV. Apenas cinco anos depois, ela já era a única pessoa que havia trabalhado no musical que até então era recordista de apresentações na Broadway, My Fair Lady, 2.717 performances contínuas, no filme que durante décadas foi a maior bilheteria do cinema em todos os tempos, tendo batido … E o Vento Levou, A Noviça Rebelde/The Sound of Music, e gravado o disco até então recordista de vendas, a trilha sonora de My Fair Lady, seis milhões de cópias vendidas até 1966.
Cada um desses recordes, como lembra o texto sobre Julie Andrews no AllMusic, seria eventualmente quebrado mais tarde. Mas essa tríplice coroa, que eu saiba, ninguém mais conseguiu levar. Às carreiras como cantora, atriz de teatro e de cinema, ela adicionaria depois as de autora de livros infantis e diretora de teatro.
A interpretação de Julie Andrews como a babá perfeita (e mágica) Mary Poppins é uma graça, um requinte.
* As canções compostas para o filme pelos irmãos Richard e Robert Sherman. Meu, que canções maravilhosas, antológicas, inesquecíveis! “Chim-Chim-Cheree”, “A Spoonful of Sugar”, “Supercalifragilisticexpialidocious”, “Feed the Birds (Tuppence a Bag)”. Fazia décadas que não as ouvia, mas elas estão marcadas, marcantes, na minha memória.
* A maestria com que as equipes de técnica e de arte juntaram, em diversas sequências, atores e animação. É sensacional. Não era algo inédito, é claro – essa mistura de gente com bichos animados já era antiga em 1964 –, mas creio que nunca tinha sido feita durante tantas sequências. E nunca tinha sido feita com tal qualidade. Não fica nada a dever a Uma Cilada para Roger Rabbit/Who Framed Roger Rabbit, feito por Robert Zemicks, um mago dos efeitos especiais, em 1988, quando os recursos tecnológicos já eram muito mais desenvolvidos.
* A extraordinária coreografia da sequência em que se canta “Chim-Chim-Cheree”, com os limpadores de chaminés dançando nos telhados dos sobrados de Londres à noite. É uma coreografia moderna, avançada, belíssima; faz lembrar alguns números musicais de West Side Story (1961), um musical que tem uma das mais perfeitas coreografias da história do cinema.
* Como é sábia a moral de toda a história: o apego ao dinheiro é coisa ruim, faz mal, o certo é você ter tempo para ficar com seus filhos, brincar com eles, amá-los.
Mary Poppins teve 11 indicações ao Oscar e levou cinco
Eis o que diz Leonard Maltin, o autor do guia de filmes mais vendido do mundo – que, obviamente, dá ao filme 4 estrelas em 4:
“Há charme, inteligência e magia cinematográfica de sobra na adaptação de Walt Disney do livro de P.L. Travers sobre uma babá ‘praticamente perfeita’ que provoca uma profunda mudança na família Banks em Londres, por volta de 1910. Levaram Oscars Richard e Robert Sherman pela sua trilha sonora cheia de canções, a música “Chim-Chim-Cheree”, a equipe dos formidáveis efeitos visuais, Cotton Warburton pela montagem, e (Julie) Andrews, em sua estréia no cinema (embora Van Dyke esteja igualmente bem como Bert, o habilidoso ás em todas as tarefas. Jane Darwell faz sua última aparição na tela como a mulher pássaro. Um filme maravilhoso.”
No quesito Oscar, aproveito para registrar que o filme teve nada menos de 13 indicações, inclusive melhor filme, melhor diretor e melhor roteiro adaptado. Levou os cinco que Maltin menciona. Concorriam ao Oscar de melhor filme pérolas como Doutor Fantástico/Dr. Strangelove, de Stanley Kubrick, Zorba, o Grego, de Michael Cacoyannis e My Fair Lady. Este último – sobre o qual volto a falar abaixo – levou o prêmio.
No total, Mary Poppins teve 20 prêmios, fora outras 12 indicações. Julie Andrews levou o Globo de Ouro de melhor atriz em musical ou comédia – e também o Bafta de estreante mais promissora! O filme ganhou ainda dois Grammies, o prêmio da indústria fonográfica americana, nas categorias melhor trilha sonora para filme ou show de televisão e melhor disco infantil.
Alguns críticos disseram que Mary Poppins é o My Fair Lady para crianças
O CineBooks’ Motion Picture Guide dá 5 estrelas em 5. O texto deles é imenso, parece até os meus. Abre assim: “Mary Poppins é um filme mágico que, com 2 horas e 20 minutos, poderíamos supor que deixaria as crianças cansadas. Mas não é o caso, porque o filme é charmoso e delicioso o tempo todo. Na verdade, Mary Poppins chega tão perfeito da perfeição quanto é possível. É o musical mais inventivo escrito para as telas nos anos 1960, e a história eterna e as excelentes atuações asseguram que os estúdios Disney poderão relançá-lo nas próximas muitas décadas.”
Vou aproveitar e usar o início da sinopse feita pelo Cinebooks’, metendo minha colher de vez em quando:
Um banqueiro de Londres, Mr. Banks (David Tomlinson) anuncia no Times que precisa de uma babá. (A babá anterior, Kate Nanna, interpretada por Elsa Lanchester, pede demissão no início da narrativa por não aguentar mais os dois filhos dos Banks.) Mrs. Banks (Glynis Johns), uma defensora dos direitos da mulher, parece não encontrar ninguém que seja disciplinadora o suficiente para tomar conta dos seus bagunceiros filhos Michael (Matthew Garber) e Jane (Karen Dotrice). Os garotos têm outras preferências sobre o tipo de babá, e então escrevem seu próprio texto. O pai encontra a cartinha deles, rasga e joga na lareira acesa. No dia seguinte, muitas candidatas a babá aparecem (a fila de babás, todas vestidas exatamente da mesma maneira, é uma delícia), mas um vento misterioso as enxota da rua antes que sejam entrevistadas.
E aí aparece Mary Poppins (Julie Andrews), que chega voando com sua sombrinha mágica como pára-quedas. Ela conversa com Mr. Banks e é admitida.
O Cinebooks diz que alguns críticos classificaram Mary Poppins como o My Fair Lady para pequerruchos. Tem algo a ver, porque a ação dos dois filmes se passa na mesma época, cerca de 1910, no mesmo meio social da mesma Londres. Os dois filmes foram lançados no mesmo ano, os dois têm maravilhosas canções e números musicais. E durante anos Julie Andrews interpretou no teatro Eliza Doolittle, a personagem central de My Fair Lady – na versão para o cinema, como se sabe, foi preterida por Audrey Hepburn.
Foi a maior bilheteria do ano – custou US$ 6 milhões e rendeu US$ 102 milhões
Ainda segundo o Cinebooks’, se for feita uma lista dos melhores filmes para platéias infantis, Mary Poppins provavelmente estaria em primeiro lugar, empatado com O Mágico de Oz. Bem, é a opinião deles – mas acho difícil discordar. Só acho que Mary Poppins e O Mágico de Oz são mais do que filmes para crianças – são para toda a família, para as crianças e para todo mundo que já foi criança um dia. (Com exceção, é claro, dos adolescentes comunistas e das pessoas de narizinho empinado que só gostam de “filmes de arte” – estes são presunçosos demais para gostar de contos de fadas.)
O Cinebooks’ ainda informa que o filme teve um orçamento estimado de US$ 6 milhões, e rendeu US$ 102 milhões!
Confiro no Box Office Mojo, o site especializado, e é isso mesmo: US$ 102 milhões – dos quais US$ 31 milhões foram arrecadados só no mercado que eles chamam de doméstico, Estados Unidos e Canadá.
Confiro também no livro Box Office Hits: foi, naturalmente, a maior bilheteria de 1964, seguido por Goldfinger, Os Insaciáveis/The Carpetbaggers, My Fair Lady e Moscou contra 007/From Russia with Love. (Dois musicais, dois dos primeiros filmes de James Bond e um melodramão: entre as cinco maiores bilheterias do ano, nenhuma aventura de super-heróis dos quadrinhos. É, o cinema já foi melhor.)
O belo texto do livro Box Office Hits sobre Mary Poppins começa assim: “Mary Poppins – praticamente perfeita em tudo. Isso é o que proclama a fita métrica que Mary Poppins sempre leva consigo, e não há dúvida de que é verdade. Não apenas ela era a babá perfeita como o filme Mary Poppins era perfeito em tudo para Walt Disney e sua empresa (…). E ganhou o coração de praticamente todos – os críticos, as crianças, seus pais, avós. Em uma palavra, Mary Poppins é Supercalifragilisticexpialidocious.”
Para quem não se lembra, supercalifragilisticexpialidocious – título de uma das belas canções do filme – é uma expressão inventada por Mary Poppins, para ser usada quando tenta descrever algo que é difícil de se expressar em palavras.
A autora fez uma série de exigências. Ainda bem que Disney não obedeceu
O livro 501 Must-See Movies sintetiza em duas frases aquilo que é dissecado detalhadamente em Walt nos Bastidores de Mary Poppins,e depois acrescenta outras informações:
“Walt Disney tinha vontade de fazer este filme desde que suas filhinhas falaram para ele sobre os livros de P.L. Travers, mas precisou de 20 anos para derrubar as objeções da autora. Mesmo assim, ela elaborou uma lista de coisas que queria que o estúdio modificasse. Disney escolheu Andrews para fazer Mary Poppins (sua estréia no cinema) depois de vê-la em Camelot na Broadway, mas teve que adiar as filmagens até que o bebê Emma chegasse. Felizmente, Andrews foi aprovada pela autora depois que Ms. Travers ouviu sua voz ao telefone”.
Quem vê ou revê Mary Poppins deve de fato ver também Walt nos Bastidores de Mary Poppins. Mas, para quem ainda não viu, adianto algumas das exigências de P.L. Travers para autorizar a produção do filme: não deveria haver desenho animado; não deveria ser um musical; a cor vermelha não poderia aparecer em momento algum.
A mulher que criou Mary Poppins era, pelo que o filme de 2013 mostra, uma chata de galocha. Felizmente para milhões e milhões de pessoas, Disney desobedeceu P.L. Travers de diversas maneiras – e nos presentou com esta maravilha.
O livro Box Office Hits tem toda razão: Mary Poppins é supercalifragilisticexpialidocious.
Anotação em junho de 2014
Mary Poppins
De Robert Stevenson, EUA, 1964
Com Julie Andrews (Mary Poppins)
e Dick Van Dyke (Bert e Mr. Dawes, Sr.), David Tomlinson (Mr. Banks), Glynis Johns (Mrs. Banks), Hermione Baddeley (Ellen), Reta Shaw (Mrs. Brill), Karen Dotrice (Jane Banks), Matthew Garber (Michael Banks), Elsa Lanchester (Katie Nanna), Arthur Treacher (policial Jones), Reginald Owen (almirante Boom), Ed Wynn (tio Albert), Jane Darwell (a Mulher Pássaro)
Roteiro Bill Walsh e Don DaGradi
Baseado nos livros infantis sobre o personagem Mary Poppins, de autoria de P.L. Travers
Fotografia Edward Colman
Música Irwin Kostal
Canções de Richard & Robert Sherman
Montagem Cotton Warburton
Cor, 140 min
Produção Walt Disney, Walt Disney Productions.
R, ****
Também adoro Mary Poppins, comprei o DVD o ano passado e foi uma excelente compra. Só tinha visto o filme no cinema quando estreou mas tinha boas recordações. Destaco a canção “Feed the Birds” que acho um encanto.
Eu não gosto de musicais, mas cresci ouvindo falar de Mary Poppins. Nunca tive vontade de parar pra assistir, mas depois de ler o texto me deu vontade (pra variar). Só fiquei na dúvida sobre qual ver primeiro: ele ou o filme que conta a batalha do *Valdisnei para conseguir os direitos?
Não vi o filme mas conheço algumas músicas. E para quem ainda não viu, tem um vídeo da Julie Andrews cantando e fazendo umas brincadeiras com ninguém menos que Gene Kelly. Eles cantam juntos a música Supercalifragilisticexpialidocious, e claro que essa se tornou minha versão favorita dela, pois tudo o que ele tocava virava ouro. Antes de começar essa parte dos dois cantando (fiquei com a impressão de que ela curtiu mais a parte do canto, e se divertiu, apesar daquela coisa super ensaiada da TV, e ele gostou mais de dançar, e dançou melhor – ela olhou várias vezes para o chão), tem um solo do Gene cantando e dançando belissimamente, aos 52 anos, mostrando ainda graça, força e potência muscular, e com o mesmo corpo que tinha aos 32, quando fez Anchors Aweigh (a roupa parece a mesma que ele usou no filme). Vale a pena ver! Para mim é sempre um prazer vê-lo dançar, eu fico com um sorriso no rosto, meu astral melhora.
https://www.youtube.com/watch?v=8DYa3d-iaUg
Que comentário mal escrito o meu, por “n” motivos (sei que o verbo assistir pede complemento, mas acho tão formal escrever “assisti-lo”).
Esqueci de explicar o Valdisnei: esse é o trocadilho infame que as pessoas que não gostam de Walt Disney usam. Eu gosto dos desenhos clássicos, dos atuais não, mas acho divertido escrever assim.
Ahhh, esqueci de fazer um comentário super importante sobre o vídeo do Gene e da Julie: que super coxas ele tinha, mesmo naquela idade. What a man! [E achei fofo a Julie Andrews achar graça e rir das caras que ele fazia enquanto cantava – eu também acho fofo, diga-se de passagem, ele era muito bom fazendo papéis engraçados].
Jussara, querida, seus comentários são sempre maravilhosos.
Minha dica: veja primeiro Mary Poppins”, “Walt nos Bastidores” depois.
Talvez funcione bem na ordem inversa, mas acho que tem que ser na ordem cronológica. Primeiro, o filme que foi feito. Depois, como foi que se chegou a fazer o filme.
Abração, Juos!
Sérgio
Talvez por uma falha de caráter e certamente por não ter feito parte de minha infância,
não gosto de Mary Poppins, embora goste de
quase tudo de Walt Disney.
Acredito que a Mary Poppins como mulher ( hoje pensamos assim e discutimos também dessa forma) reproduzia mesmo com as brincadeiras o papel que a sociedade patriarcal e machista lhe confere: “nunca sou demitida” ela fala em uma das cenas, porque a mulher precisa sempre cuidar do lar e da família, e realmente não corre dessa obrigação que lhe conferem. Em muitas brincadeiras com o Bert, ela chama-lhe a atenção e também das crianças, porque o riso é uma coisa idiota para uma mulher prendada, logo ela os educa assim. No mais, achei o filme bem engraçado e a atriz Julie Andrews maravilhosa!