Apesar de ter bons e famosos atores no elenco – Greg Kinnear, Pierce Brosnan, Jennifer Connelly, Ed Harris, Marisa Tomei, Ciarán Hinds – este Salvation Boulevard foi um estrondoso, gigantesco fracasso de público e crítica.
Talvez, ou muito seguramente, porque bate forte demais no fanatismo religioso, no fundamentalismo cristão, nas igrejas evangélicas.
E põe bate forte nisso. É uma crítica ácida, duríssima, tremendamente virulenta a tudo isso.
É uma comédia amarga, muito mais amarga que jiló. É tão violento, tão amargo, que me fez lembrar Fargo, a maravilha dos irmãos Coen.
Gostei bastante do filme; Mary também.
Claro: gostamos, em boa parte, devido exatamente ao fato de ele ser contra o fundamentalismo religioso – o mesmo motivo pelo qual dá para imaginar que pastores das mais diversas denominações cristãs devem ter feito pregações contra ele.
Não achei informação que confirme isso, mas de fato é bem possível que tenha havido uma campanha orquestrada contra o filme. Só algo assim poderia explicar que o filme tenha rendido nas bilheterias americanas apenas US$ 28 mil (contra um orçamento de US$ 5,5 milhões, segundo o Box Office Mojo).
A Wikipedia em inglês – que traz uma boa sinopse e um longo relato da história – conta que Salvation Boulevard foi lançado num número bem pequeno de cinemas, e rapidamente ficou à disposição no sistema on demand e saiu em DVD. E que recebeu críticas negativas.
Ou então crítica alguma – o AllMovies não traz crítica do filme, apenas uma sinopse bem breve e pouco acurada, algo nada comum no belo site.
Essa péssima recepção me parece estranha – e ilógica.
Um pastor milionário, uma família de cristãos absolutamente fanáticos
O pastor Dan Day (o papel de Pierce Brosnan) é um desses fenômenos de marketing religioso, que nós brasileiros conhecemos tão bem. Possui uma mega-igreja, um mega-rebanho de fiéis apaixonadíssimos, e está em vias de construir um mega-empreendimento imobiliário, A City on a Hill, “uma comunidade cristã planejada”, conforme anunciam gigantescos cartazes no local prestes a receber as primeiras construções.
Religião dá muito dinheiro.
Entre os fiéis mais fiéis do pastor estão Carl e Gwen Vandermeer (Greg Kinnear e a sempre belíssima, mas cada mais anoréxica Jennifer Connelly), mais o pai dela, Joe Hunt (o irlandês Ciarán Hinds, que sempre nos faz lembrar do César da série Roma).
Joe, um ex-militar da Marinha já aposentado, e sua filha Gwen são cristãos absolutamente, mas absolutamente fanáticos.
Já Carl foi no passado um deadhead – como se chamam os fanáticos do Dead, o Grateful Dead de Jerry Garcia. Fumou muito baseado e tomou muitas outras drogas seguindo o Dead país afora. Até que um belo dia encontrou Gwen, apaixonou-se por ela e virou um cristão renascido, um born-again Christian.
O pastor Dan tem apreço especial pela família – que inclui ainda Angie (Isabelle Fuhrman), filha de Gwen. Não se diz explicitamente, mas as indicações são de que Angie é filha de um casamento anterior de Gwen. Também não se diz explicitamente, mas dá para perceber de cara (e mais tarde haverá indício claro) que o pastor tem um tesão antigo pela sua belíssima embora magérrima ovelha.
Um debate televisionado entre o pastor e um professor ateu praticante
Quando a ação começa, o pastor Dan está participando de um debate televisionado (e filmado por sua própria equipe) com um professor da universidade local, o dr. Paul Blaylock (interpretado por Ed Harris), um ateu praticante.
O auditório está lotado – estão lá dezenas e dezenas de fiéis do pastor, inclusive Gwen, o marido e o pai.
O pastor usa o exemplo de Carl, o ex-roqueiro convertido, como prova da força da religião.
Depois que o debate termina, o dr. Blaylock convida o oponente para um drink em sua casa, situada ali mesmo dentro do câmpus da universidade. O pastor aceita o convite, e leva Carl com ele. O dr. Blaylock sugere que os dois escrevam juntos um livro, cada um defendendo seu ponto de vista. Seria certamente um best-seller.
Atenção: spoiler. Com 5 minutos de filme há algo absolutamente inesperado
Durante a conversa, o pastor Dan pega uma antiquíssima arma da coleção do dr. Blaylock, evidentemente seguro de que ela não funciona mais e não está carregada, e, no meio de uma argumentação, aponta para o ateu e aperta o gatilho.
O dr. Blaylock cai para trás com um tiro na testa.
O pastor fica em choque, seu fiel Carl fica em choque, o espectador fica em choque – estamos aí com uns cinco minutos de filme, apenas.
Carl faz menção de ligar para a polícia. Seria o óbvio, o simples – foi um acidente, ora bolas!
O pastor pensa diferente – e pensa depressa. Mesmo acidental, uma acusação de assassinato seria péssimo para sua igreja, para seu mega-empreendimento imobiliário.
O pastor pega a arma, bota na mão do dr. Blaylock, para que pareça suicídio.
E ele e Carl saem dali rapidissimamente. Ao deixar Carl em casa, o pastor pede, ordena que ele não fale para ninguém sobre o que aconteceu.
O que virá a partir daí é uma trama fascinante, gostosa, que de fato faz lembrar algumas histórias dos irmãos Coen. Uma espécie de Fargo, só que com religião no meio.
A sátira ao fundamentalismo religioso é de fato mordaz, virulenta. Sanguinária.
Todo o bom elenco atua de forma exagerada, propositadamente exagerada
É necessário registrar que as interpretações são todas exageradas. Propositada, estudadamente exageradas. Fogem do naturalismo como o diabo foge da cruz, como os fundamentalistas de todos os credos fogem da racionalidade. Pierce Brosnan está especialmente over do over do over – mas isso não é um defeito do filme. É proposital, e tem sentido: é uma sátira, ora bolas – e esses pastores que fazem tremendo sucesso são exagerados mesmo.
A belíssima Jennifer Connelly e o irlandesão Ciarán Hinds também estão exageradíssimos como os fundamentalistas irredutíveis.
Marisa Tomei, aquela gracinha que anda um tanto sumida, também está deliciosamente exagerada, no papel de Honey Foster, uma ex-groupie de bandas de rock, também fanática pelo Dead, agora transformada em agente de segurança da universidade. Marisa Tomei aparece pouco tempo na tela, embora em situações importantes na trama – uma pena.
O filme se baseia num livro homônimo, Salvation Boulevard, de autoria de Larry Beinhart. Ele foi o autor do livro American Hero, que deu origem a outra sátira ferina, mordaz, virulenta, Mera Coincidência/Wag the Dog, de Barry Levinson.
Aliás, que beleza essse título original, Salvation Boulevard. Faz lembrar, é óbvio, Sunset Boulevard, a obra-prima de Billy Wilder, no Brasil Crepúsculo dos Deuses.
O roteiro – ótimo, na minha opinião – é assinado por Doug Max Stone e George Ratliff, este último também diretor do filme. Ratliff, nascido em 1968, é autor de três documentários; em 2007, dirigiu seu primeiro longa de ficção, Joshua – O Filho do Mal, um thriller com Sam Rockwell e a ótima Vera Farmiga. Este aqui foi seu segundo longa de ficção.
Vejo no IMDb que Mary e eu não fomos as únicas pessoas a gostar do filme. Vários leitores do grande site enciclopédico fizeram comentários com fartos elogios, alguns dele expressando espanto diante do fato de que o filme foi tão retumbante fracasso nas bilheterias.
Um deles chama o filme de sleeper. É o termo que se usa para filmes que são fracasso de bilheteria na época do lançamento, parecem adormecer, mas depois aos poucos vão sendo descobertos pelas audiências, virando cult.
Eis aí um belo sleeper que merece ser acordado. O eventual leitor que não gostar de fundamentalismos deveria ver Salvation Boulevard.
Anotação em dezembro de 2013
E… Que Deus Nos Ajude!!!/Salvation Boulevard
De George Ratliff, EUA, 2011.
Com Greg Kinnear (Carl Vandermeer), Pierce Brosnan (Dan Day), Jennifer Connelly (Gwen Vandermeer), Ed Harris (Dr. Paul Blaylock), Marisa Tomei (Honey Foster), Isabelle Fuhrman (Angie Vandermeer), Ciarán Hinds (Joe Hunt), Jim Gaffigan (Jerry Dobson), Yul Vázquez (Jorge Guzman De Vaca)
Roteiro George Ratliff e Doug Max Stone
Baseado no livro de Larry Beinhart
Fotografia Tim Orr
Música George S. Clinton
Montagem Michael LaHale
Produção Mandalay Vision, 10th Hole Productions, Cineric
Cor, 96 min
**1/2
A síntese da minha opinião: bela porcaria!