Um Tiro no Escuro, o segundo filme de Blake Edwards com o Inspetor Clouseau, lançado poucos meses após o primeiro, A Pantera Cor-de-Rosa, tem uma abertura sensacional, extraordinária, daquelas de dar grande alegria a quem gosta de cinema.
A abertura é, disparadamente, a melhor coisa do filme.
Não me lembrava dela, de forma alguma, apesar de ter revisto o filme em 2005. Na época, não anotei nada – e, se não anotou, dançou. Até que, num domingão, estávamos zapeando e demos com A Pantera Cor-de-Rosa no TCM. Deu vontade de rever o filme mais uma vez, e, depois que anotei sobre ele, resolvi ver mais uma vez a seqüência, A Shot in the Dark.
O filme, como um todo – que, aliás, não é propriamente uma sequência da Pantera –, me pareceu mais bobo do que eu me lembrava. Mas a abertura é simplesmente magistral.
São cinco minutos de ação antes dos créditos iniciais. Há pouquíssimos cortes; um dos planos é extremamente longo, um plano-seqüência com toque de mestre.
Bem, se há um plano-seqüência, eu já babo. Não tem jeito. É uma das coisas mais extraordinárias do cinema, algo que é típico do cinema, que só existe nessa arte – uma única tomada, sem corte, a câmara rolando e a ação acontecendo continuamente à frente do espectador.
O primeiro plano que vemos é fixo – uma dessas casas gigantescas de milionários, uma edificação sólida, imensa, de dois andares, cercada por um grande jardim. É de noite, e ouvimos uma canção que fala exatamente das sombras da noite em Paris – “Shadows of Paris”, música de Henry Mancini, letra de Robert Wells (estávamos em falta de Johnny Mercer, o parceiro do compositor e maestro em diversas outras canções, “Moon River” inclusive), cantada por Fran Jeffries, a mesma cantora que aparece em A Pantera Cor-de-Rosa cantando “It had better be tonight/Meglio stasera”, de Mancini-Mercer.
Corta, e aí vem o plano-seqüência. Vemos a parte de trás da imensa mansão, o lugar da criadagem. Homens e mulheres circulam pelas escadas, entram e saem dos aposentos, cada um não querendo ser visto pelos outros.
Homens e mulheres se esgueirando, silenciosamente, uns para dentro dos aposentos dos outros.
Uns levam flores, outros levam garrafas de vinho, talvez de champagne.
O movimento é incessante – mas nenhuma daquelas pessoas chega a ver a outra, porque cada um se esconde a tempo de não ser visto.
A câmara se movimenta para cima, para baixo, para a esquerda, para a direita, tudo sem corte algum. Uma mulher é vista ali, um homem é visto acolá – a câmara vai mostrando os movimentos sub-reptícios, silenciosos, cuidadosos daquelas pessoas.
Dei rewind para ver toda a seqüência de novo, para ver se entendia quem é quem. Não dá para entender – é personagem demais, uns oito ou nove. Não dá para saber quem é quem, naquele balé esquisito, aquela coreografia noturna safada. Dá, evidemente, é para perceber que, ali, todo mundo come alguém fora de casa e dá para alguém fora de casa.
Não é uma grande suruba, porque cada dupla se come privadamente, entre quatro paredes. Mas é uma grande mansão da infidelidade conjugal coletiva.
Ao final dessa seqüência deliciosa, uma loura chega pelo corredor e entra em uma casa, seguida por um homem que ela tenta expulsar.
Aí vemos clarões e ouvimos o ruído – não de um tiro no escuro, mas de quatro tiros.
E aí começam os créditos iniciais, uma delícia de cartoon, de desenho animado, da autoria de Corny Cole (principal desenhista), numa produção de David H. DePatie e Friz Freleng.
O inspetor Clouseau bate o olho na linda Maria Gambrelli e decide: ela é inocente
O inspetor que vai ao local do crime – a imensa mansão do milionário Monsieur Ballon, interpretado por George Sanders – é Clouseau, é claro. Ao sair da viatura de polícia, ele de cara já cai no laguinho situado diante da porta principal da mansão. Entra na casa absolutamente ensopado.
O morto é o motorista dos Ballons, um espanhol chamado Miguel. Seu corpo havia sido encontrado no apartamento de empregados em que reside uma das serviçais, Maria Gambrelli (a alemã Elke Sommer, linda, uma perfeita Barbie, só que com muito sex-appeal, que parece ter sido instruída pelo diretor Blake Edwards para atuar como se não soubesse atuar de forma alguma).
Quando o corpo foi encontrado, a pedaço de mau caminho Maria segurava um revólver nas mãos. O revólver ainda fumegava.
Diante daquela boneca cobiçada, Clouseau não tem dúvida alguma: ela é inocente.
Aí então ficamos conhecendo o chefe de Clouseau, o comissário Dreyfuss (interpretado por Herbert Lom, que parece ter sido instruído pelo diretor Blake Edwards para fazer o maior número de caretas por segundo que conseguisse).
Um subalterno de Dreyfuss o alerta do perigo: como, ao receber a primeira chamada, os policiais de plantão não perceberam que o crime se dera na mansão do importantíssimo bilionário Ballon, cometeram o erro de mandar Clouseau.
Dreyfuss acabara de combinar ao telefone um encontro romântico – e a seqüência é deliciosa. O comissário fala ao telefone com a voz mais doce do mundo; diz que já comprou uma boa comida e um belo vinho, e está de saída. O outro telefone toca, a secretária diz a Dreyfuss que é a esposa dele – e Dreyfuss, seco, rápido, impaciente, pede que ela diga à esposa que ele não está.
Em Um Tiro no Escuro, assim como em A Pantera Cor-de-Rosa, todo mundo trai seu cônjuge.
Diante da notícia de que o desastrado Inspetor Clouseau havia sido enviado para a casa do bilionário, o comissário Dreyfuss abandona os planos de encontrar a amante, e parte para o trabalho. Diz para Clouseau – e para Ballon – que ele está assumindo pessoalmente o caso.
Ballon, obviamente suspeito de alguma tramóia na história, prefere, é claro, que o caso seja investigado pelo desastrado que leva todo o jeito de ser absolutamente incompetente.
No dia seguinte, após receber telefonema de seus superiores, Dreyfuss é obrigado a entregar de novo o caso a Clouseau.
Uma sequência que não é uma sequência – um conjunto disjunto
A série da Pantera Cor-de-Rosa tem umas características peculiares. É uma espécie assim de uma coisa que o professor de Matemática no Colégio de Aplicação tentou nos explicar, o tal do conjunto disjunto. Um conjunto formado por elementos que muitas vezes não estão juntos.
Um Tiro no Escuro é o segundo filme da série – mas não é uma continuação de A Pantera. Quer dizer: é uma espécie de seqüência que não é uma continuação.
Em A Pantera, Clouseau era casado (com Simone, uma mulher belíssima, interpretada por Capucine, que o traía com o criminoso que ele perseguia obsessivamente, o Fantasma, finório ladrão de jóias).
Não há qualquer referência a Simone Closeau no segundo filme da série. Em Um Tiro no Escuro, Clouseau é um solteirão. Mais ainda: não há, no segundo filme da série, qualquer tipo de referência à Pantera Cor-de-Rosa – nem ao diamante que tinha esse nome no primeiro filme, nem à pantera cor-de-rosa do desenho animado dos créditos iniciais.
Permanecem, do primeiro filme, a figura do inspetor absolutamente trapalhão, desajeitado, um sujeito que faria todos os Trapalhões de Didi, Dedé, Mussum e Zacarias parecerem pessoas perfeitatamente normais, e a música tema de Henry Mancini.
É o perfeito conjunto-disjunto.
A culpa toda é de Peter Sellers: quem mandou o cara fazer um personagem tão engraçado?
É a perfeita série que virou série porque o primeiro filme deu certo, porque o público se encantou com o personagem. É a lei do comércio, da indústria: keep the custommer satisfied. O cliente sempre tem razão.
Em A Pantera, não era para Clouseau ser o personagem principal. O protagonista era Sir Charles Lytton, interpretado por David Niven – uma recriação humorística da figura do ladrão de jóias rico, fino e chique de Ladrão de Casaca/To Catch a Thief, que Alfred Hitchcock havia lançado em 1955.
Aconteceu que Peter Sellers fez um Inspetor Clouseau tão absolutamente engraçado que roubou o filme. E aí não teve como não oferecer ao respeitável público uma sequência – mesmo que não fosse propriamente uma continuação.
A culpa – ou a responsabilidade – foi de Peter Sellers. Quem mandou o cara ser bom demais, ter feito um personagem brilhar tanto? Pobre Peter Sellers: amargaria pelo resto da vida a tristeza de não conseguir se livrar do Inspetor Clouseau, assim como Arthur Conan Doyle jamais conseguiria se livrar de Sherlock Holmes.
Blake Edwards cita Hitchcock desbragadamente – e, depois, Agatha Christie
Ao rever agora A Pantera, fiquei muito impressionado como a trama – criada por Blake Edwards e Maurice Richlin – bebe fundo em Ladrão de Casaca. Não apenas o personagem que era para ser o principal, o ladrão de jóias, é cópia escarrada do personagem de Cary Grant. Além disso, há, exatamente como no filme de Hitchcock, a festa de gente milionária vestida com fantasias, e há até os fogos de artifício que no filme de 1955 têm função importantíssima.
Pois, ao rever logo em seguida Um Tiro no Escuro, fiquei ainda mais impressionado como Blake Edwards bebe em Hitchcock.
Eu de fato não me lembrava disso, ou nunca tinha percebido (o que dá na mesma), mas o fato é que a seqüência de abertura é uma homenagem a Hitchcock tão apaixonada quanto as que Brian De Palma faria ao mestre em diversos de seus filmes.
A sequência de abertura de Um Tiro no Escuro é Hitchcock puríssimo que nem água de fonte, que nem uísque da melhor qualidade.
É citação de Hitchcock a própria existência do plano-sequência, uma das especialidades do inglês doido e safado. É citação de Hitchcock ver a realidade através da janela indiscreta de trás do prédio. É citação de Hitchcock mostrar tudo na cena de abertura, não esconder nada do espectador. Verdade que o espectador não consegue direito entender quem é quem naquele entra-e-sai de tantos personagens – mas que o filme mostra tudo, lá isso mostra.
Para embaralhar um pouco as coisas, aí os roteiristas Blake Edwards e William Peter Blatty botam, no final, uma citação de outro velhinho inglês doido, no caso uma velhinha inglesa doida.
Em quantos livros de Agatha Christie Hercule Poirot reúne todos os personagens na sala de estar para então revelar o nome do assassino? Mais que dez, com toda a certeza.
E só agora me cai a ficha de que o assistente do Inspetor Clouseau, tadinho dele (do assistente, não de Clouseau) se chama Hercule. Elementar, meu caro Arthur Conan Doyle.
Aliás, o personagem de Hercule – interpretado por Graham Stark – é uma absoluta delícia. A cara que Graham Stark faz, de tédio, de enfado, enquanto ouve Clouseau expor suas teorias, é de morrer de rir.
O fantástico, talvez o mais fantástico de tudo, é que Edwards e William Peter Blatty (nada menos que o autor da novela O Exorcista e o roteirista do memorável filme dirigido por William Friedkin em 1973) tenham escrito essa sequência de A Pantera, o primeiro filme em que o Inspetor Clouseau é de fato o protagonista da trama, com base em peça teatral já existente.
Aparentemente, a história original estava em uma peça do escritor francês Marcel Achard chamada L’Idiote. Um sujeito chamado Harry Kurnitz adaptou a peça francesa. Edwards e Blatty pegaram essa adaptação da peça original e mexeram nela para incluir Clouseau.
Meu Deus do céu e também da terra, que baita mixórdia.
Tudo me pareceu excessivamente. Mas o guia mais vendido do mundo baba pelo filme
Leonard Maltin, o autor do guia de filmes mais vendido no mundo, que havia dado à Pantera Cor-de-Rosa 3.5 estrelas em 4, dá 4 estrelas fechadas, a cotação máxima, para Um Tiro no Escuro:
“Segunda comédia do Inspetor Clouseau é de longe a mais engraçada, com o grande detetive convencido de que a estonteante Sommer é inocente do crime apesar de todas as evidências em contrário. Farsa ferozmente irônica nunca diminui de ritmo, com sequência memorável em colônia nudista.”
Já euzinho aqui, diferentemente de Maltin, não caí de quatro diante de Um Tiro no Escuro, ao revê-lo agora.
Será que foi porque a sequência inicial é genial demais, e o que vem a seguir é bem menor?
Será que foi porque eu já havia visto no mesmo dia A Pantera, e deveria ter ido dormir, em vez de ver mais um filme?
Sei lá.
Achei quase todo o desenrolar da trama meio chegado a uma bobagem um tanto ou quanto descomunal.
Basicamente, acho que o Inspetor Clouseau de Um Tiro no Escuro ficou caricatural demais. O Clouseau dos filmes seguintes foi ainda mais caricatural, é verdade, mas aqui ele já ultrapassa qualquer limite do bom senso.
A cada gigantesca trapalhada de Clouseau – como na sequência em que interroga Maria Gambrelli pela segunda vez, na sede da Sûretê, ou na do jogo de bilhar contra o biliardário Ballon –, não consegui rir. Nem sequer sorrir. A única coisa que consegui fazer foi repetir, escandindo as sílabas, um palavrão: mas pu-ta-que-o-pa-riu!
As sequências em que aparece Kato, o rapaz do karatê, então… Meu, mas quanta bobagem… Que coisa mais grosseira, nada inteligente, e tão repetitiva…
O problema deve ser meu.
O eventual leitor que veja quantos Clouseaus quiser. Tomara que, ao contrário do que aconteceu comigo, ache mais engraçado do que bocó.
Anotação em dezembro de 2012
Um Tiro no Escuro/A Shot in the Dark
De Blake Edwards, EUA-Inglaterra, 1964.
Com Peter Sellers (Inspetor Jacques Clouseau), Elke Sommer (Maria Gambrelli), George Sanders (Benjamin Ballon), Herbert Lom (inspector-chefe Charles Dreyfus), Tracy Reed (Dominique Ballon), Graham Stark (Hercule Lajoy), Andre Maranne (François), Douglas Wilmer (Henri Lafarge), Vanda Godsell (Mme. Lafarge), Maurice Kaufmann (Pierre)
Roteiro Blake Edwards e William Peter Blatty
Baseado em peça de Harry Kurnitz e Marcel Achard
Fotografia Christopher Challis
Música Henry Mancini
Montagem Bert Bates
Cartoon por Corny Cole (principal desenhista), produzido por David H. DePatie e Friz Freleng
Produção Blake Edwards, The Mirisch Corporation. DVD MGM.
Cor, 101 min
R, **1/2
4 Comentários para “Um Tiro no Escuro / A Shot in the Dark”