Seduzida e Abandonada / Sedotta e Abbandonata

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4.0 out of 5.0 stars

Seduzida e Abandonada, que Pietro Germi lançou em 1964, faz rir. Há situações impagáveis, hilariantes, engraçadíssimas. Mas o espectador ri, gargalha, diante de uma tragédia.

O riso vem com um travo amargo.

A sensação que se tem é de que Germi filmou aquilo com ódio – e vergonha.

A Sicília dos anos 1960 que ele mostra é uma sociedade medieval, primitiva, apegada a conceitos inacreditavelmente idiotas, sem sentido, sem lugar no mundo. A saber: mulher que deu uma vez sem ter antes se casado é puta, imoral, desqualificada. O próprio homem que a comeu tem todo o direito de se recusar a casar com ela. Sem o hímem, a moça tira a honra de toda sua família, faz com que sua família mergulhe na mais profunda vergonha.

Seduzida e Abandonada é um filme sem vergonha de ser exagerado. Porque não dá para não ser exagerado diante de tanto horror.

Peppino, figura asquerosa, nojenta, ataca a cunhadinha de 16 anos

 zzseduzida2A sedução é mostrada de cara, nos cinco primeiros minutos.

Na primeira tomada, aparece uma cruz, numa esquina de uma pequena e pobre cidade siciliana. Duas mulheres, vestidas de preto de cima abaixo, caminham rapidamente pelas ruas – Agnese (o papel de Stefania Sandrelli) e a empregada dos Ascalone, Consolata (Rosetta Urzi) –, enquanto, ao mesmo tempo, vão rolando os créditos iniciais e a voz de um cantor, empostada, antiga, à la Vicente Celestino, apresenta o drama.

Diz a letra da canção, que vamos ouvindo enquanto rolam os créditos e a deusa Stefania Sandrelli caminha depressa pelas ruas ao lado da empregada:

“É uma história que quero contar, a da austera família Ascalone. Não é fruto da fantasia, mas uma história verdadeira. A família Ascolone foi ofendida na honra por Peppino, o belo jovem. E Agnese, toda paixão, foi falar com o padre e contar em confissão para descontar o pecado.”

Com a precisão de um relógio suíço, o cantor pára sua lenga-lenga no momento exato em que vemos Agnese ajoelhada no confessário diante do padre Mariano (Salvatore Fazio). A câmara faz um zoom – Germi adora fazer uns zoons – para mostrar os rostos da pecadora e do padre, quando surge o nome do diretor na tela e terminam os créditos.

Vemos então a cena que Agnese relata para o padre. Na casa dos Ascolone, quase todos dormem a sesta, após um lauto almoço. Na sala, Matilde (Paola Biggio) adormeceu sentada no sofá, ainda segurando a xícara de café. Peppino Califano (Aldo Puglisi), o noivo dela, retira cuidadosamente a xícara da mão da moça, e a leva para a mesa. Deposita o cigarro aceso no cinzeiro, e se aproxima de Agnese, a irmã mais nova de Matilde, a noiva adormecida. Agnese estuda, sentada à mesa – estuda, evidentemente com a ordem paterna de tomar conta do casal.

zzseduzida3Peppino é uma figura – com perdão pela palavra feia, mas que é a mais adequada – escrota. Tá bom, retire-se a palavra feia. Uma figura asquerosa, nojenta. Veste um terno troncho, com gravata, naquele verão insuportável da Sicília, e por isso tem o rosto suado. Um bigodinho horroroso. Uma figura triste.

Ele pergunta onde está Consolata, a empregada, a outra única pessoa acordada na casa silenciosa. Agnese diz que ela está fora, lavando roupa.

Peppino ataca.

Agnese se refugia na cozinha.

Peppino ataca.

Agnese diz não sem vontade alguma de dizer não. Um copo cai no chão. Peppino espera um momento – o silêncio permanece, então ninguém acordou. Ataca novamente. Puxa Agnese para fora, para o quintal, no meio das roupas estendidas no varal. As roupas brancas ficam entre a câmara e o cunhado sedutor que ataca a mocinha de 16 anos.

Corta, e temos um close-up do padre Mariano em seu confessionário:

– “Cedeu, sua desgraçada!”

E Agnese, em close-up, entre lágrimas: – “Sinto tanta vergonha. Estou com nojo de mim.”

– “Mas não durante o ato, hein?”

– “Sim, logo depois.”

– “Tarde demais, desgraçada!”

O filme foi um tremendo sucesso de público e crítica

Ainda não se passaram cinco minutos. A obra-prima de Pietro Germi (1914-1974) está apenas começando.

Seduzida e Abandonada tem muito a ver, é claro, com Divórcio à Italiana, que Germi havia feito três anos antes, em 1961. Os temas são os mesmos: o ridículo, inominável machismo, o apego aos tabus da virgindade, da obrigatória fidelidade eterna e absoluta (das mulheres, é claro) – todos aqueles costumes medievais, primevos, que teimavam em permanecer vivos em plena década de 1960, a que mudou quase tudo.

zzseduzida4Em Divórcio à Italiana, Ferdinando (interpretado por Marcello Mastroianni), um tipo tão nojento quanto esse Peppino, não suporta a mulher feiosa e chata, e sonha em matá-la para poder ficar com a jovem prima que mora ao lado. A jovem prima vem na pele da mesma Stefania Sandrelli de Seduzida e Abandonada.

Os dois filmes falam dos mesmos temas, e fazem insistentes referências aos tribunais italianos que, pelo menos naquela época, estavam sempre dispostos a perdoar o homem que matava “em defesa da honra”.

Divórcio à Italiana é uma maravilha, mas Seduzida e Abandonada é ainda melhor. É um filmaço.

Foi um tremendo sucesso de público e crítica. Não teve indicação ao Oscar (Divórcio à Italiana havia tido três indicações, de diretor para Germi, de ator para Marcello Mastroianni e de roteiro original, e levado a estatueta desta categoria), mas participou da mostra oficial de Cannes, onde Saro Urzi ganhou o prêmio de melhor ator. Saro Urzi interpreta – brilhantissimamente – Vincenzo Ascalone, o chefe da família, o pai de Agnese, de Matilde e de Antonio, o filho varão, interpretado por Lando Buzzanca com uma impagável cara de tonto, sonso, bocó.

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Leonard Maltin, no seu guia de filmes mais vendido no mundo, dá 3.5 estrelas em 4: “Brincadeira de ritmo ágil, ricamente saborosa, envolvendo o destino de um Don Juan que engravida a irmãzinha mais nova da sua noiva. Uma continuação, em espírito, de Divórcio à Italiana de Germi, esse filme muito engraçado zomba de maneira inteligente de tradições sexuais”.

Já o mestre Jean Tulard não gostou muito. Diz ele, no seu ciclópico Guide des Films: “Popular comédia italiana que zomba dos costumes do Sul. Germi conhece seu métier e sabe explorar uma situação até o máximo. Ri-se de bom grado dos golpes de cena que se sucedem, mas não se vai muito longe”.

Não tem jeito: gosto é gosto, cada um tem o seu.

“Ouso dizer que a Sicília é a Itália duas vezes”, sentencia o diretor

Zombar é pouco. Germi não apenas zomba das ridículas tradições sicilianas. Ele mostra o grotesco, o ridículo delas. Ele as mostra com ódio, com nojo – e com vergonha por elas existirem.

zzseduzida6O DVD lançado no Brasil pela Versátil traz duas pequenas pérolas, entre os especiais. Uma delas é um telejornal da época do lançamento do filme em Roma, que mostra o diretor e os principais atores chegando para a exibição do filme, e traz uma entrevista com o realizador. Anotei o que Germi diz, porque sua fala é um tiro certeiro, de uma imensa lucidez:

“É um filme muito curioso. As pessoas que o viram em sessões privadas tiveram reações muito contrastantes. Alguns saíram rindo muito, enquanto outros saíram transtornados. Ou seja: é um filme divertido e perturbador. (…) Eu diria que é uma espécie de cassata à siciliana, feito de muitos elementos. Boa, mas um tanto indigesta para quem não tem estômago forte.”

Aí o entrevistador pergunta por que o cineasta insiste em falar da Sicília, em seus filmes. E Germi é brilhante:

“Acredito que na Sicília são exageradas as características dos italianos em geral. Ouso dizer que a Sicília é a Itália duas vezes. Todos os italianos são sicilianos e os sicilianos são italianos um pouco mais. (…) No fundo, creio que gostaria que as pessoas, ao ver este filme, dissessem: que estranho, rimos muito, mas estamos assustados.”

E é isso, é exatamente isso que senti ao rever o filme agora, quase meio século depois que ele foi feito. É um filme que nos faz rir – e nos assusta.

Germi pediu a Stefania Sandrelli que interpretasse Agnese como num filme mudo

A outra pérola que o DVD da Versátil traz é a reprodução do teste feito por Stefania Sandrelli, recitando um dos diálogos do filme. Sobre as imagens da jovem atriz começando a incorporar seu personagem, vem a voz de Stefania Sandrelli já adulta, um depoimento dado por ela seguramente bem mais tarde.

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Eis o que diz a deusa:

“Germi é incrível. Ele fez com que eu exagerasse – e eu exagerei muito. Ele me disse – e foi também uma maneira para que eu me conscientizasse mais da interpretação – que este filme me exigia, que deveria ser como num filme de Chaplin, um filme mudo. Me fez ver um filme mudo para que eu entendesse a expressividade daquilo que eu devia fazer.”

É fascinante ouvir essa explicação simples sobre o método do diretor de dirigir sua estrela. É bem isso mesmo: Germi queria extrair dela todo o exagero possível. Contra aqueles costumes exageradamente idiotas, medievais, Germi queria o exagero, a caricatura, o ridículo.

Já escrevi isso ao falar de Divórcio à Italiana, mas repito aqui. Stefania Sandrelli é da nortista Toscana, onde nasceu em 1946. Aos 15 ridículos aninhos, ganhou um concurso de beleza. Em 1961, com esses ridículos 15 aninhos, e aquele rosto, e aquele corpo, fez três filmes. Nos dois primeiros, fez papéis bem pequenos. O terceiro foi Divórcio à Italiana.

Foi Pietro Germi quem a transformou em estrela, em Seduzida e Abandonada. Em 1970, estrelou O Conformista, de Bernardo Bertolucci, ao lado de Jean-Louis Trintignant. Em 1972, de novo com Pietro Germi, fez Alfredo, Alfredo, contracenando com Dustin Hoffman. Em 1974 fez em Nós que nos Amávamos Tanto, de Ettore Scola, Luciana, a mulher que os três heróis do filme amavam, e aí, num cinema que tinha Sophia Loren, Claudia Cardinale, Monica Vitti, Virna Lisi, Gina Lollobrigida, para não falar em Silvana Mangano e Anna Magnani, la Sandrelli virou, para mim, a maior das deusas.

O chefe de polícia olha o mapa da Itália e tapa a Sicília com o dedo…

zzseduzida8Num filme repleto de piadas – em palavras e em gestos –, há uma que Pietro Germi usou duas vezes, e que expressa muito do que o realizador pretendia dizer.

Por duas vezes, o chefe de polícia do lugarejo, Potenza (Oreste Palella), diante de um mapa da bota italiana, tapa com a mão a Sicília. Tapa a Sicília, e olha para o mapa com uma cara que está dizendo assim: ah, como esse país seria melhor…

Os sicilianos não devem ter gostado muito de Seduzida e Abandonada.

Danem-se eles. É uma maravilha de filme.

Anotação em novembro de 2012

Seduzida e Abandonada/Sedotta e Abbandonata

De Pietro Germi, Itália-França, 1964.

Com Saro Urzi (Vincenzo Ascalone), Stefania Sandrelli (Agnese Ascalone), Aldo Puglisi (Peppino Califano), Lando Buzzanca (Antonio Ascalone), Leopoldo Trieste (barão Rizieri), Rocco D’Assunta (Orlando Califano), Lola Braccini (Amalia Califano), Paola Biggio (Matilde Ascalone), Umberto Spadaro (primo Ascalone), Oreste Palella (Potenza, o chefe de polícia), Lina La Galla (Francesca Ascalone), Roberta Narbonne (Rosaura Ascalone), Rosetta Urzi (Consolata, a empregada), Adelino Campardo (Bisigato), Vincenzo Licata (Profumo, o agente funerário), Italia Spadaro (tia Carmela), Gustavo D’Arpe (Ciarpetta, o advogado). Salvatore Fazio (padre Mariano)

Roteiro Pietro Germi, Luciano Vincenzoni, Agenore Incrocci e Furio Scarpelli

Baseado em uma história de Pietro Germi e Luciano Vincenzoni

Fotografia Aiace Parolin

Música Carlo Rustichelli

Montagem Roberto Cinquini

Produção Franco Cristaldi, Lux Film, Ultra Film, Vides Cinematografica, Compagnie Cinématographique de France. DVD Versátil

P&B, 118 min.

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7 Comentários para “Seduzida e Abandonada / Sedotta e Abbandonata”

  1. Via vários filme de Pietro Germi, um realizador que, não sei muito bem a razão, foi um tanto menosprezado, olhado como um artista menor.
    Dele lembro-me muito bem de ver um filme com o título “Un maledetto imbroglio” – A 3ª Chave – com a belíssima Claudia Cardinale e de que gostei muito.
    Ainda vou procurar se há algum DVD mas deve ser impossível.

  2. É um dos melhores filmes italianos de todos os tempos. Quem roubou o filme foi o Saro Urzi, interpretando o pai da belíssima Stefania Sandrelli.

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