Um rapaz pobre, de origem bem humilde, com cara de sonso, mas na verdade bastante esperto, safo – e de uma honestidade, uma integridade a toda prova. Um bilionário excêntrico, solitário, herdeiro de uma fabulosa fortuna, uma das maiores da Inglaterra, amealhada pelo pai. O Palácio de Joe conta a história do encontro dessas duas pessoas tão absolutamente díspares.
É uma co-produção da britânica BBC e da americana HBO, duas redes que só fazem biscoitos finos. Como seria de se esperar, O Palácio de Joe, lançado em 2007, é um filme extremamente bem realizado, em todos os quesitos.
Mas é sobretudo um filme estranho. Foi o adjetivo que ficou passeando na minha cabeça quando a narrativa se aproximava do fim, e foi como o defini assim que terminou. Ao que Mary respondeu: sim, é um filme estranho.
Joe é inglês filho de imigrantes; é muito jovem, mas educado, nada aborrescente
Quando a ação começa, Joe (Danny Lee Wynter, na foto abaixo) está caminhando pelas ruas de Londres. É um adolescente aí de uns 17, 18 anos, bem moreno, talvez descendente de paquistaneses ou indianos. Não se falará em momento algum sobre a origem de sua família. Mas é óbvio que nasceu e foi alfabetizado na Inglaterra – fala inglês corretissimamente, sem sotaque de estrangeiro.
Um pequenino detalhe nos indica bastante da personalidade de Joe: ela pára, abaixa-se para pegar no chão uma escova de cabelo, e joga a escova na primeira lixeira que encontra pouco mais à frente.
Algumas sequências adiante, outro pequeno detalhe servirá para que o espectador saiba ainda mais sobre o garoto. Ele está na janela de sua casa, num apartamento simples, seguramente de periferia; um grupo de garotos da sua idade, garotos pobres desocupados, tipo levemente arruaceiros, olham para ele e o chamam de esquisito.
Mas voltemos às seqüências iniciais. Depois de jogar cuidadosamente no lixo a escova de cabelo que encontrou na calçada, Joe bate à porta de uma casa. Um homem abre uma portinhola quadrada de uns 30 centímetros por 30 centímetros, talvez um pouco menos – por ela o espectador vê apenas o rosto do homem que atende. Pergunta quem é, Joe diz seu nome, diz que está sendo esperado.
A mãe de Joe, Sally (Caroline Lee-Johnson) é uma das várias empregadas que trabalham na casa. Ela leva o filho até Mrs. Hopkins (Carolyn Pickles), a governanta, administradora da casa. Se Mrs. Hopkins for com a cara de Joe, ele será contratado como porteiro, para que Dave (Clive Russell), o que atendeu a porta minutos antes, possa ter um horário de folga.
E Joe é contratado.
A casa, veremos em seguida, é imensa, de vários andares, uma casa muitíssimo antiga, que havia sido inteiramente reformada. É mais que uma casa – é uma mansão, um palacete. Tem diversos quartos no segundo andar, todos inteiramente mobiliados de forma rica, elegante.
Nenhum cômodo daquele palácio é ocupado. O dono mora numa casa em frente. Chama-se Elliott Graham (o papel do veterano e grande Michael Gambon, nas fotos acima e abaixo), é bilionário e tem hábitos esquisitos. No passado distante, comprou aquela casa praticamente em ruínas, e fez a reforma. Paga quase uma dezena de funcionários para mantê-la limpa, imaculada – mas raramente a visita. A rigor, sai pouquíssimo de sua casa, a que fica do outro lado da rua.
Mas, para surpresa de todos, acaba aparecendo, fica conhecendo Joe, e gosta do garoto.
O bilionário excêntrico vai se aproximando mais e mais do garoto pobre
Numa noite em que está enfurecido por algum motivo, Dave, o até então solitário porteiro, diz para Joe que Mr. Graham foi das forças especiais do Exército, quando jovem, e matou muita gente com suas próprias mãos.
E em seguida Dave desaparece. Os outros funcionários contam para Joe que ele resolveu voltar para sua Escócia natal.
Joe é promovido a porteiro principal da casa. Recebe instruções de não deixar absolutamente ninguém entrar entre as 6 da tarde – quando as empregadas vão embora – e as 9 da noite, quando chega o guarda noturno.
O rapaz ganha até mesmo o direito de usar um bom quarto no andar térreo, quando ficar tarde demais para voltar para sua casa.
Um dia qualquer, a governanta da casa em frente, a casa em que mora Mr. Graham, manda Joe comprar embutidos na mercearia próxima. Basta levar um grande cartão plástico vermelho: o cartão identifica que é da casa de Mr. Graham, e a despesa será anotada.
A moça que atende Joe já conhece os costumes do vizinho bilionário. Acha estranho que aquele rapazote tenha vindo fazer as compras. Chama-se Tina – e é interpretada por Rebecca Hall (na foto acima), essa jovem atriz fascinante.
Mr. Graham convida Joe para comer com ele os embutidos comprados. O bilionário excêntrico vai se aproximar mais e mais de seu mais novo empregado.
Um ministro aparece na casa com uma moça de beleza acachapante
Surge na casa vazia um jovem bem vestido. Diz a Joe, através da portinhola, que tem um encontro com Mr. Graham mas chegou adiantado, e gostaria de esperar ali. Joe fica em dúvida, mas acaba abrindo a porta para ele. Chama-se Richard Reece (Rupert Penry-Jones), e diz a Joe que trabalha para o governo.
Joe vê Richard sair da casa vazia e ser recebido na casa de Mr. Graham. O bilionário contará para ele que Richard é o membro mais jovem do gabinete – um ministro!
Um belo dia Richard bate na porta da casa vazia acompanhada de uma moça cuja beleza deixa Joe – e o espectador – tonto. Chama-se Charlotte, e é interpretada por Kelly Reilly.
Kelly Reilly está mais velha, é claro, do que a Wendy de Albergue Espanhol (2002) e sua continuação, Bonecas Russas (2005), e ainda mais magra do que estava quando fez uma das moças que vão aparecer peladinhas no teatro da sra. Henderson em Sra. Henderson Apresenta (também de 2005). Está magrela, a moça, como é a moda agora, mas continua lindérrima.
O diretor – e também autor do argumento e do roteiro – Stephen Poliakoff não é bobo nem nada, e usa e abusa da beleza de Kelly Reilly. Faz vários closes do rosto dela, e ainda nos presenteia com algumas cenas de sexo em que ela aparece nua.
Richard diz a Joe que gostaria de mostrar a casa para Charlotte. Depois, pede um favor a Joe: que ele veja com Mr. Graham se seria possível que ele e Charlotte usassem de vez em quando um dos quartos da casa.
Joe consulta o patrão – e obtém dele o consentimento.
A cada nova visita de Richard e Charlotte à casa, Joe fica mais mesmerizado, encantado com a beleza da moça.
A essa altura, estamos aí com 30 minutos do filme, talvez até um pouco mais.
E me peguei torcendo para que nada desse errado para Joe, temendo que pudesse acontecer uma grande merda, uma besteira, uma tragédia.
O espectador fica torcendo por Joe. Joe é um garoto simpático, educado, boa gente; não é daquele tipo rebeldinho, contra tudo e todos; não é daquele tipo que industrializa os maus modos, a falta de polidez, a feiura. É um garoto sério, honesto. É o tipo de jovem que eu gostaria que minha neta Marina venha a ser.
Dá medo de que, por um vacilo, por uma bobagem, Joe se dê mal.
A existência de milionários e miseráveis é algo nojento, acintoso, vexaminoso
Aprendo que Stephen Poliakoff, nascido em Londres em 1952, filho de judeus ingleses e russos, é um aclamado dramaturgo, roteirista e diretor. Teve excelente formação, passou pelo King’s College de Cambridge – embora não tenha concluído o curso.
É prolífico. A Wikipedia lista nada menos que 30 peças escritas por ele e encenadas em Londres. Tem diversos peças escritas para a TV. É autor de 26 roteiros para o cinema e/ou para a TV, e dirigiu 15 filmes, o primeiro dos quais, Três Amores e uma Paixão/Close my Eyes, de 1991, com Alan Rickman e Clive Owen, aborda um amor incestuoso entre um irmão e uma irmã.
O Palácio de Joe de fato é um filme estranho. Tem uma trama bem pouco usual. É uma trama que jamais é óbvia. Muito ao contrário, é tudo sutil.
Gostei muito de o filme mostrar que nem todo milionário é necessariamente mau caráter, safado, e nem todo garoto pobre é mal educado, com propensão a virar bandido – mesmo quando exposto a tentações.
Ao fim e ao cabo, é assim:
Tenho a convicção cada vez mais profunda de que a existência de bilionários é tão absurdamente errada quanto a existência de miseráveis. A existência de bilionários, assim como a de miseráveis, é algo nojento, acintoso, vexaminoso. É prova de incompetência da humanidade, da sociedade.
Já abandonei há muito tempo, é claro, a crença sonhadora de uma sociedade em que todos têm exatamente o mesmo padrão de vida. Mas continuo achando asquerosa a existência desse Grand Canyon entre uns e outros.
Creio – posso estar completamente enganado, é claro, mas creio que este filme estranho, sutil e muitíssimo bem realizado quis dizer isso mesmo que eu penso.
Anotação em maio de 2013
O Palácio de Joe/Joe’s Palace
De Stephen Poliakoff, Inglaterra, 2007
Com Danny Lee Wynter (Joe), Michael Gambon (Elliot Graham), Rupert Penry-Jones (Richard Reece), Kelly Reilly (Charlotte), Rebecca Hall (Tina), Clive Russell (Dave), Carolyn Pickles (Mrs. Hopkins), Caroline Lee-Johnson (Sally Dix, a mãe de Joe)
Argumento e roteiro Stephen Poliakoff
Fotografia Danny Cohen
Música Adrian Johnston
Produção BBC, HBO, Talkback Thames.
Cor, 108 min
**1/2
Foi ótimo conhecer sua opinião. Estou afinadíssima com seu pensamento. Só gostaria de afirmar que senti neste filme,a mais impressionante sensação de humilhação que jamais pensei possível. O filme foi idealizado para ser “esquisito”. Assim como o canyon entre a riqueza e a pobreza. Como entre a beleza e a feiúra. Afinal, o mundo não está aí para dar certo.
Comentário bem marxista de quem entende absolutamente nada sobre economia, cadeia de produção e as razões das disparidades entre ricos e pobres.
Este filme tem alguma relação com Capturando Mary? La também o Joe é caseiro de uma mansão visitado pela Maggie Smith, que relembra o passado quando , jovem, a frequentava .
Olá, Clelia!
Vejo no IMDb que “Capturing Mary” é o título original do filme a que você se refere, que no Brasil teve o título de “Conquistando Mary”. E, de fato, ele tem a ver com “O Palácio de Joe”, sim -embora eu não soubesse disso. O diretor e autor do roteiro original dos dois filmes é o mesmo, Stephen Poliakoff. E o IMDb diz que “Conquistando Mary” segue “O Palácio de Joe”.
Um abraço, Clelia.
Sérgio