Distribuidores brasileiros e portugueses, que em geral fazem títulos bastante diferentes, optaram pelo mesmo nome para o lançamento nos dois países de In This Our Life (nesta nossa vida, literalmente), de 1942: lá como cá, o filme se chamou Nascida para o Mal.
Poderia perfeitamente ter sido A Malvada. Seria um título bastante adequado: neste baita dramalhãozão, a personagem de Bette Davis, essa atriz que fez muitas vilãs em sua longa, gloriosa carreira, é bad to the bone, como diria George Thorogood. Má até o osso, até a raiz dos cabelos.
Chama-se Stanley, o personagem, uma moça de Richmond, na sulista, rural, ex-escravocrata, ex-confederada Virginia, naquele início dos anos 1940, que é absolutamente egoísta, umbigocêntrica, fútil, vã, cabeça de vento, irresponsável – e má. Stanley não dá a menor importância para qualquer outra pessoa. Não se importa a mínima em prejudicar os outros. Tudo na vida gira em torno dela própria.
Pois é, os distribuidores dos principais países de língua portuguesa, em 1942, não usaram A Malvada para titular o filme. Deixaram o título para a grande obra-prima de Joseph L. Mankiewicz, de 1950, All About Eve. O que é uma gigantesca ironia, já que, em All About Eve, a malvada é Eve, a personagem de Anne Baxter, e não Margo, a interpretada por Bette Davis, a que foi malvada em tantos filmes.
O trailer original faz loas à grande estrela Bette Davis, e nem cita John Huston
Daria para parafrasear Sócrates: só sei que quase nada sei – ou, na melhor das hipóteses, só sei que pouco sei. Considero que conheço um pouquinho do cinema americano, em especial dos anos 1940 a 1960. Já vi muito filme com Bette Davis, gosto especialmente de John Huston. Pois nunca tinha ouvido falar de Nascida para o Mal/In This Our Life – ou, se algum dia já tinha ouvido falar, me esqueci completamente, o que dá na mesma. Juro que não me lembrava de que Huston tivesse dirigido Bette Davis.
O filme foi lançado há relativamente pouco tempo em DVD pela Versátil, uma das boas empresas brasileiras. Estava na locadora como lançamento.
O DVD traz o trailer original do filme. O trailer destaca a presença de quatro grandes astros – Bette Davis, Olivia de Havilland, George Brent e Dennis Morgan –, celebra o fato de ser uma adaptação de romance conhecido (de autoria da hoje pouco lembrada escritora Ellen Glasgow), e faz uma série de loas à estrela maior, ela, é claro, Bette Davis. Mas sequer menciona o nome de John Huston, que viria a ser um dos mais fascinantes realizadores americanos.
O grande Huston estava em começo de carreira. Em começo de carreira como diretor, na verdade, porque, aos 23 anos, em 1929, ele havia estreado no cinema como ator. No início dos anos 1930 já escrevia diálogos, adaptações e roteiros. Em 1941, estreou na direção – e estreou com tudo, criando um clássico, The Maltese Falcon, no Brasil (e em Portugal) Relíquia Macabra.
Huston era um sujeito prolífico. Fazia filmes de todos os gêneros – e fazia muitos filmes. No mesmo ano de 1941, foi um dos roteiristas de Sargeant York, de Howard Hawks, 11 indicações ao Oscar, inclusive o de roteiro original. Em 1942 dirigiu dois filmes: Garras Amarelas/Across the Pacific e este Nascida para o Mal – seu terceiro filme como diretor.
O roteiro de Sargento York teve quatro autores, algo extremamente comum no cinema italiano mas bem mais raro no americano. Um dos co-roteiristas era Howard Koch. Esse senhor assinou – sozinho – o roteiro de Nascida para o Mal.
Evidentemente, jamais tinha ouvido falar da escritora Ellen Glasgow, a autora do romance homônimo que deu origem ao filme. Ellen Anderson Gholson Glasgow (1873-1945), define a Wikipedia, foi uma romancista americana que retratou o mundo em mudanças de seu Sul contemporâneo. Nasceu em Richmond, a capital da Virginia, exatamente a cidade em que se passa a maior parte da ação de In This Our Life.
Ellen Glasgow escreveu 18 livros. In This Our Life foi seu ultimo, publicado em 1941. No ano seguinte, ganhou o Pulitzer de romance e virou filme, com um diretor ainda iniciante, é verdade, mas com um elenco com quatro estrelas da época.
Nos primeiros minutos da narrativa, muita informação
Na minha opinião, o roteirista Howard Koch fez um trabalho admirável.
Nos dez primeiros minutos de Nascida para o Mal, Howard Koch mostra para o espectador uma imensa gama de informações – com maestria tal que compreendemos tudo a respeito dos personagens da história, que não são poucos.
A câmara do diretor de fotografia Ernest Haller focaliza, numa das primeiras tomadas, uma grande placa, que ajuda bastante na compreensão das relações que em seguida veremos.
A placa, diante de uma fábrica de cigarros (o tabaco foi uma das razões da riqueza do Sul dos EUA), diz:
“William Fitzroy Tobacco Company. Sucessora da firma Timberlake e Fitzroy.”
A câmara mostra então o sr. Timberlake (Frank Craven) saindo da fábrica, e caminhando pelas ruas de Richmond.
Um jovem negro, Parry (Ernest Anderson), se aproxima e diz que o senhor Fitzroy quer falar com ele. Irá visitá-lo em sua casa às 6 da tarde.
Caminham juntos, pelas ruas de Richmond, o sr. Timberlake e o jovem negro Parry.
Naquela época, o termo que se usava para descrever os negros, de uma maneira educada, sem preconceito, era colored. A palavra colered vai aparecer muitas vezes na narrativa. Era 1942, e estávamos muito longe ainda do black is beautiful. Não se usava black, nem negro (pronuncia-se, é claro, nígrou). Os abertamente racistas filhos da puta usavam nigger. Então quem não era abertamente racista usava colored – um termo horroroso. Me lembro de algum negro, preto, black americano (seria o escritor James Baldwin? não tenho certeza) escrever: “Colorido? De que cor? Roxo? Rosa? Verde? Azul?”
Mas aí divago – embora a questão do racismo seja importante no filme. De volta ao início da narrativa.
O velho branco Timberlake e o jovem negro Parry caminham pelas ruas de Richmond. Passam por uma rua em que um imenso palacete está sendo demolido. Diante do palacete em demolição havia o nome, em um brasão como o dos nobres europeus: “Timberlake”.
Lentamente, os dois chegam à casa da família Timberlake – um sobrado espaçoso, confortável, mas classe média, não uma mansão.
O cunhado passou a perna em Timberlake e tomou dele a fábrica
Com dez minutos de filme, graças ao trabalho extraordinário de síntese do roteirista Howard Koch, já sabemos que:
* Timberlake e Fitzroy (interpretado pelo sempre ótimo Charles Coburn) haviam sido no passado sócios em uma empresa de tabaco que hoje pertence apenas a Fitzroy;
* originalmente, a empresa era de Timberlake. Fitzroy, seu cunhado, irmão da sua mulher, Charlotte (Mary Servoss), havia, de alguma maneira, trapaceado, feito algo escuso, e se tornara o dono da empresa, colocando o antigo sócio numa posição secundária, como empregado;
* Charlotte, a mulher de Timberlake, detesta o fato de ter ficado bem menos rica, e culpa o marido por ter sido fraco, e deixado que o cunhado tomasse para si a empresa;
* o casal Timberlake e Charlotte tem duas filhas. Stanley (o papel de Bette Davis) é bela, admirada por todos, em especial por seu tio torto Fitzroy, que não teve filhos. O velho Fitzroy tem imensa paixão pela sobrinha Stanley. A outra filha é Roy (o papel de Olivia de Havilland), uma pessoa muito mais “certinha” que a irmã. Roy trabalha numa empresa de decoração de interiores. Stanley não trabalha, não faz porra nenhuma na vida a não ser desfrutar da condição de sobrinha do grande milionário; dança, dirige – a grande velocidade – um carro maravilhoso que ganhou de presente do tio.
* Stanley está noiva de um advogado idealista, que gosta de defender os pobres, Craig (o papel de George Brent, que trabalhou com Bette Davis em outro dramalhão da mesma época, A Grande Mentira).
* Roy é casada com um médico, um cirurgião competente, promissor, em início de carreira, Peter (o papel de Dennis Morgan). O casal mora na casa dos pais, junto com Stanley.
Stanley rouba o marido da irmã. Mas este não será seu único crime
São muitos personagens, são muitas histórias – mas em dez minutos o roteiro até então primoroso de Howard Koch nos apresenta todos os fatos com uma competência espantosa.
Antes que o filme chegue a 20 minutos, Stanley-Bette Davis foge de casa com Peter, o marido da irmã
Comer o cunhado, a cunhada, é um crime/pecado que pode acontecer.
Nelson Rodrigues falava disso. Várias de suas crônicas falavam do cunhado safado.
Paulo Mendes Campos também falou disso. Num dos textos mais belos que já foram produzidos na língua portuguesa, chamado “O Amor Acaba”, Paulo Mendes Campos escreveu que o amor pode acabar “no andar diferente da irmã dentro de casa”.
É uma tragédia que pode acontecer com qualquer um.
Mas Stanley não é mulher de uma tragédia só. Roubar o marido da irmã, deixá-la triste, perdida, amargurada, e deixar o noivo Craig zonzo, atordoado, sem razão para viver, é apenas um dos muitos crimes que ela vai cometer.
Dois tipos de pessoas: os de ambição desmedida, e os bons
Nascida para o Mal/In This Our Life é uma beleza de filme. Não é grande, não é um dos melhores de John Huston. Tem alguns defeitinhos, mais visíveis hoje – exagera um pouco em diversos momentos. Há diálogos literários demais, e há momentos em que os atores vão algumas oitavam acima, over-act.
Mas é uma beleza de filme.
Faz um forte, possante ataque ao racismo que ainda era fortíssimo nos Estados Unidos, em especial nos Estados sulistas, os confederados, os que foram à guerra contra os do Norte para manter a escravatura.
Faz um forte, possante ataque à ambição desmedida, aos que tudo fazem para juntar mais dinheiro na vida – e uma bela elegia à honestidade, à simplicidade, às pessoas que preferem curtir a vida a perdê-la na ânsia por posses, propriedades, coisas.
O filme coloca como opostos os dois tipos de pessoas: de um lado, os ambiciosos – Stanley, igualzinha a seu tio não de sangue Fitzroy – e, de outro, os que preferem a vida – Roy, igualzinha a seu pai Timberlake.
E aqui faço uma observação: não me lembrava de nenhum outro personagem interpretado por Charles Coburn que seja quase um vilão. Em geral, esse ator gordão, simpaticíssimo, fazia papéis de pessoas agradáveis, bon-vivants, alegres.
O Fitzroy que Coburn interpreta aqui é o tipo do sujeito imbecil, do empreendedor que pisa nos outros para ganhar mais e mais dinheiro. Parece os personagens milionários dos filmes do sonhador Frank Capra. Já Timberlake, o pai das duas moças, é parecido com os heróis dos filmes de Capra, as pessoas de coração grande.
Na victrola, toca-se “South American Way”
Um detalhinho interessante: ouvimos no filme, mais de uma vez, a canção “South American Way”. Stanley, o personagem de Bette Davis, adora música, adora dançar. Ela compra uma victrola, algo ainda caro e não muito comum na época – e o filme usa várias vezes a palavra victrola, que tinha esse nome porque o aparelho havia sido desenvolvido pela RCA Victor. Então Stanley compra uma victrola e o primeiro disco de 78 rotações que ela ouve é “South American Way”. Não é a gravação de Carmen Miranda, mas não dá para dissociar a música da cantora.
Carmen gravou a música em 1939, com o Bando da Lua, e foi um extraordinário sucesso nos Estados Unidos. Em A Era do Rádio/Radio Days, de Woody Allen, a priminha do protagonista, o menino Joe, dança ao som de “South American Way” na versão de Carmen Miranda. Apresenta-se a música inteira – e o pai e o tio de Joe entram no quarto para observar a garota dançando e fazem o coro quando o Bando da Lua canta o estribilho junto com Carmen.
Um filme premiado pela forma digna com que trata os negros
Leonard Maltin, o autor do guia de filmes mais vendido no mundo, dá 3 estrelas em 4: “Ótimo drama sobre família neurótica com a ladra de marido Davis arruinando a vida da irmã (De Havilland) e eventualmente também a sua própria; Davis no auge do histrionismo.”
Diacho! Maltin diz que Walter Huston faz uma participação especial como um barman. Não reparei isso.
Walter Huston (1884-1950) foi um extraordinário ator. Seu filho John também teve algumas atuações memoráveis, em uns poucos filmes em que se dispôs a trabalhar como ator. A neta de Walter, filha de John, Anjelica, manteve a tradição de talento. Gosto sempre de lembrar que John é até hoje o único diretor a fazer filmes em que tanto o pai quanto a filha ganharam Oscars por suas atuações – Walter como coadjuvante por O Tesouro de Sierra Maestra, de 1948, e Anjelica por A Honra do Poderoso Prizzi, de 1985.
No IMDb, vejo duas notas interessantes. A primeira é gostosinha: diz que os nomes das duas irmãs – Stanley e Roy – são normalmente usados para homens, são nomes masculinos. “De maneira interessante”, diz o IMDb, “o filme nunca dá uma dica de que há algo incomum sobre seus nomes, nem oferece qualquer explicação.”
Acho legal isso, porque, enquanto via o filme, me perguntava se era normal haver mulheres com esses nomes masculinos, Stanley e Roy.
A outra informação que o IMDb traz, não sei o que dizer sobre ela.
“A Warner Bros. foi indicada para o Honor Roll of Race Relations de 1942 por seu retrato dignificado de African-Americans neste filme. No entanto, cenas em que o personagem de Ernest Anderson era tratado de uma maneira amigável foram cortadas para as apresentações no Sul, para não ofender aqueles espectadores. O filme originalmente foi desaprovado para exportação pelo Departamento de Censura em Washington porque ele sugere que o testemunho de um negro seria totalmente desconsiderado pelo júri quando confrontado com o de uma pessoa branca, o que, no Sul, naquela época e por muito tempo depois dela, era verdade.”
Na verdade, eu sei o que dizer sobre isso. Mas, como não tem a ver diretamente com o filme, vou ficar quieto.
O que importa é o seguinte: este é um filme que deve ser visto.
Huston diz que Bette Davis era “uma força da natureza”
O texto já está grande – mas não há como não transcrever um pouco do que John Huston fala sobre o filme em sua maravilhosa autobiografia Um Livro Aberto, publicado no Brasil pela gaúcha L&PM. Huston escreve extremamente bem; nesse ponto específico, ele parece com François Truffaut. Acho essa concentração de talento um tanto absurda, mas fazer o quê? Ainda não inventaram um Movimento dos Sem-Talento que proponha reforma talentária, com compensações e cotas para os desprovidos. Mas hão de inventar. Neste mundo cada vez mais do diabo que de Deus há espaço para todo tipo de imbecilidade.
“Falei com Hal Wallis (Hal B. Wallis, 1899-1986, um legendário, importantíssimo, poderoso produtor) sobre Howard Koch, o autor de O Solitário e, recomendado por mim, ele foi contratado pela Warner. Depois escreveu Casablanca, o maior sucesso do estúdio em todos os tempos. O que deveria ter sido uma carreira brilhante ficou, porém, irremediavelmente perdida quando Howard entrou para a lista negra durante a caça às bruxas comunistas logo em seguida da guerra. Ele não era um dos Dez de Hollywood, nem comunista, nem sequer simpatizante, mas se recusou a rastejar diante de um de seus acusadores e isso bastou para nunca mais encontrar um emprego.
“A primeira incumbência de Koch na Warner Brothers foi In This Our Life (Nascida para o Mal), baseado no romance de Ellen Glasgow. Wallis me convidou para dirigir. Não gostei do roteiro, mas Koch tinha sido recomendado por mim e eu não podia, de jeito nenhum, arrasar com seu primeiro trabalho. Também achei muito lisonjeiro que eu – diretor de apenas um filme – ganhasse de presente uma produção com os grandes nomes da Warner: Bette Davis, Olivia de Havilland, Charles Coburn, George Brent e Dennis Morgan. Deixei, portanto, as reservas de lado e me esforcei para fazer o melhor filme possível.
“Nunca dei a menor importância a Nascida para o Mal, embora tivesse coisas interessantes. Era a primeira vez, acho eu, que se apresentava um personagem negro que não fosse um simples criado, bom e fiel, ou objeto de riso. Fiquei fascinado com Bette. Ela parece uma força da natureza – como se tivesse um demônio por dentro, que ameaça irromper a qualquer instante para devorar todo mundo, a começar pelas orelhas. O estúdio morria de medo dela, do fogo que carregava no íntimo. Confundiam aquilo com exagero de interpretação. A despeito de todas as reclamações, deixei que o demônio se manifestasse; houve críticos que consideram o desempenho de Bette um dos melhores de sua carreira.”
É isso aí. Grande Huston!
Anotação em março de 2013
Nascida para o Mal/In This Our Life
De John Huston, EUA, 1942.
Com Bette Davis (Stanley Timberlake), Olivia de Havilland (Roy Timberlake), George Brent (Craig Fleming), Dennis Morgan (Peter Kingsmill), Charles Coburn (William Fitzroy), Frank Craven (Asa Timberlake), Billie Burke (Lavinia Timberlake), Hattie McDaniel (Minerva Clay), Lee Patrick (Betty Wilmoth), Mary Servoss (Charlotte Fitzroy), Ernest Anderson (Parry Clay), William B. Davidson (Jim Purdy)
Roteiro Howard Koch
Baseado no romance de Ellen Glasgow
Fotografia Ernest Haller
Música Max Steiner
Montagem William Holmes
Produção Warner Bros. DVD Versátil.
P&B, 97 min
***
Assisti a esse filme na semana passada. Claro que já conhecia a fama de grande atriz de Bette Davis, mas o filme me deixou estupefato com a sua atuação. Como o seu texto afirma na palavras de John Huston: “… uma força da natureza…”.
Seu único defeito, se é que posso dizer isso, é não ser mais longo, pois, de certa forma, ficamos viciados em ver sua atuação.