L’Autre Dumas, exibido na TV a cabo no Brasil apenas como Dumas, é um belo filme. A história que ele conta – misturando, ao que tudo indica, fatos reais com outros fictícios – é absolutamente fascinante. De um lado, a relação intensa entre Alexandre Dumas e o homem que, sem ter o devido crédito, escreveu junto com ele alguns dos romances mais populares da História.
E, paralelamente, uma história de amor triste a não mais poder.
Os Três Mosqueteiros e suas duas continuações – Vinte Anos Depois e O Visconde de Bragelonne -, O Conde de Monte Cristo, A Rainha Margot. Todos esses romances, e mais outros títulos assinados por Alexandre Dumas, foram na verdade escritos a quatro mãos – as dele e as Auguste Maquet, o outro Dumas, como diz o título original do filme dirigido por Safy Nebbou e lançado em 2010.
Logo de início, o filme nos traça o perfil de Dumas e de Maquet
Me impressionou tremendamente como o filme consegue, logo em seus primeiros dez, 15 minutos, deixar claro para o espectador como são as personalidades de Dumas (1802-1870) e de Maquet (1813-1888), como é rica, curiosa, estranha, multifacetada a relação entre eles.
Como é moda atualmente, L’Autre Dumas não tem créditos iniciais. São mostrados apenas os nomes das empresas produtoras, e já temos a ação. Os dois estão em um barco, em direção a Trouville, na Normandia. Dumas (interpretado por Gérard Depardieu, cada dia maior), gordão, come, fala sem parar e alegremente. Auguste Maquet (Benoît Poelvoorde, em grande interpretação), magro, tímido, não fala nada – passa mal, com enjôo.
Chegam a Trouville, andam pelas ruas sujas, apinhadas de gente. Dumas pára para conversar com uma camponesinha jovem, corpo cheio, que cuida de uma vaca; pergunta o preço, e quando a garotinha, Marion (Ophélia Kolb) diz o preço da vaca, Dumas responde que não, quer saber o preço dela.
Maquet anda em silêncio.
No restaurante do albergue onde ficarão hospedados, Dumas come e bebe barulhentamente como um glutão mal-educado, como um porco. Maquet não consegue terminar um prato de sopa de legumes.
A dona da hospedagem faz rapapés para o escritor famoso. Quando Maquet pergunta se seu quarto já está pronto, uma ajudante responde: – “Sim, Monsieur Paquet” – e ele, baixinho, corrige: – “Maquet”.
Quando é levado para o quarto preparado para ele pela dona do albergue e vê que ele não tem vista para o mar, Dumas diz que não pode ficar ali, que para se inspirar precisa do cheiro do mar – e invade o quarto de Maquet, onde este trabalha, escrevendo a uma mesa. Maquet vai para o quarto que era para ser o de Dumas sem reclamar.
No quarto que era para ser o de Maquet, Dumas comerá a mocinha peituda Marion.
Uma colaboração que se dava de diversas maneiras – escreviam de fato a quatro mãos
Um é gordo, alegre, falante, glutão, mulherengo. O outro é magro, tímido, quieto, polido. Homens aparentemente opostos em tudo. Dumas tinha fama de republicano, havia participado da revolta armada contra o rei Carlos X em 1830. Maquet se declarava monarquista, a favor do rei de então, Luís Felipe.
Maquet era metódico, dedicado, trabalhador. Dumas era o contrário: inquieto, dispersivo.
Segundo mostra o filme, a colaboração entre os dois – que durou entre 1838 e 1851 – se dava de diversas maneiras. Dumas tinha as idéias gerais das tramas; às vezes ditava parágrafos inteiros para que Maquet simplesmente transcrevesse. Às vezes se alternavam na narrativa – um escrevia um capítulo, o outro escrevia o seguinte. Às vezes as idéias partiam de Maquet. Às vezes um revisava e reescrevia o que o outro havia escrito. Era uma colaboração de igual para igual – o trabalho era feito de fato a quatro mãos.
Sem Maquet, sem a presença, a companhia de Maquet, Dumas simplesmente não conseguia escrever.
Não há letreiros identificando datas, não há flashbacks para mostrar como a relação dos dois começou. Tudo é mostrado na própria trama, nos diálogos.
Nunca foi segredo que Dumas escrevia com colaboradores
E aqui cabe fazer algumas observações.
Um dos aspectos fascinantes do filme é exatamente mostrar esses fatos reais – Alexandre Dumas assinou sozinho obras que não foram apenas de sua autoria. Eu não me lembrava de ter ouvido falar nisso, nem Mary, e imagino que isso seja surpresa também para boa parte dos espectadores, seja na França, seja em qualquer lugar do mundo.
No entanto, isso nunca foi um segredo. Que Dumas escrevia com colaboradores, e que seu mais fiel colaborador foi Auguste Maquet, era de conhecimento de todos na própria época. Está nos verbetes sobre Dumas em qualquer lugar. O nome de Maquet consta, por exemplo, no verbete sobre Dumas Pai na Britannica (e me chocou um tanto o fato de que ele não merece um texto mais longo na Macropaedia; a referência a ele se limita à Micropaedia, pelo menos na edição que tenho).
Fala-se bastante de Maquet na biografia de Dumas na coleção Os Imortais da Literatura Universal, lançada pela Abril Cultural em 1971. “Um colaborador de Dumas, Auguste Maquet, trouxe-lhe o esboço do romance Le Bonhomme Buvat, complicado enredo de conspirações políticas”, diz a biografia. “O mesmo Maquet lhe trouxe a nova chave do tesouro, um volume escrito em 1700 por um certo Gatien Courtilz de Sandras (1646-1712), intitulado As memórias do Senhor D’Artagnan, Capitão-Tenente da Primeira Companhia de Mosqueteiros do Rei. (…) Nenhum desses personagens (da trilogia dos mosqueteiros) é criação original; todas figuravam na obra de Sandras e viveram realmente no século XVII. Dumas, porém, deu-lhes nova vida, ressaltou-lhes as características, tornando-as mais temerárias, e ampliou o âmbito da ação.”
A Wikipedia em francês tem longo perfil de Maquet. Um dos tópicos tem o título “Collaborateur ou ‘nègre’?” “Nègre” é a expressão usada desde meados do século XVIII para designar o que em inglês é ghost writer – algo que não tem uma palavra ou expressão em português. O autor anônimo de um texto assinado por uma outra outra pessoa, em geral célebre.
As palavras “nègre” e ghost-writer não designam com exatidão o papel de Auguste Maquet. Na verdade, ele era mesmo – como mostra o filme, e como se explica nas enciclopédias – um colaborador.
É fascinante, é fantástico. Não é um segredo que está sendo revelado no filme – mas será seguramente surpreendente para muita gente, como foi para nós.
A vida de Alexandre Dumas é uma grande, riquíssima novela
Aproveito, então, antes de voltar ao filme, para falar um pouco de Alexandre Dumas. A vida do cara é uma grande novela.
Seu avô paterno era um nobre, o marquês de la Pailleterie. Esse marquês foi amante de uma mulher negra de São Domingo, e da relação nasceu o pai de Dumas – Dumas Davy de la Pailleterie. O pai chegou a general no exército de Napoleão Bonaparte.
Alexandre Dumas nasceu com o nome de Davy de la Pailleterie, em 1802, na cidade de Villers-Cotterêts. Tinha 27 anos quando, em 1829, foi encenada a primeira peça de sua autoria. Escreveu diversas peças de teatro, antes de passar para os romances. Em 1838, quando conheceu Auguste Maquet, já era um escritor de imenso sucesso. Ao contrário de seus contemporâneos Victor Hugo (1802-1885) e Honoré de Balzac (1799-1850), jamais seria reconhecido pela crítica e pelas academias como um grande escritor – mas seus livros caíam maravilhosamente bem no gosto popular.
Seu primogênito, conhecido como Alexandre Dumas Filho (autor, entre outros, do célebre romance A Dama das Camélias), nasceu quando Dumas Pai tinha apenas 22, fruto de sua relação com uma costureira, Catarina Labay, a primeira de suas muitas amantes. Em 1840, Dumas Pai se casou com uma atriz, Ida Ferrier; o casamento durou apenas quatro anos.
O filme não menciona Dumas Filho, mas Ida Ferrier aparece na história (interpretada por Florence Pernel), como uma mulher que o escritor detestava, desprezava. Viviam às turras, ela sempre pedindo mais dinheiro, indo à Justiça por mais dinheiro. Na época mostrada no filme, Dumas vivia com uma paciente, delicada e dedicada mulher, Céleste Scriwaneck (interpretada por Dominique Blanc, na foto acima), numa propriedade rural cheia dos mais diversos animais.
Glutão, comedor insaciável, Dumas Pai era também um esbanjador. Ganhava muito dinheiro, mas conseguia sempre gastar mais do que ganhava, e então se via obrigado a escrever mais e mais para receber novos pagamentos. Isso é bem mostrado no filme.
Uma jovem de beleza faiscante confunde Maquet com Dumas – e ele não desmente
Embora não seja dito explicitamente, a ação do filme começa em 1846 ou 1847. Dumas estava no auge da fama: Os Três Mosqueteiros havia sido publicado em 1844, e no ano seguinte saíra Vinte Anos Depois. Entre 1844 e 1846 foi publicado O Conde de Monte Cristo. Quando Dumas carregou Maquet para Trouville, à procura, segundo ele, de inspiração, os dois estavam trabalhando simultaneamente em duas obras: o terceiro romance dos mosqueteiros, O Visconde de Bragelonne, e a adaptação para o teatro de O Conde de Monte Cristo.
O romance seria publicado como folhetim, capítulo por capítulo, por um grande jornal – que já cobrava os primeiros capítulos. E a companhia teatral cobrava o texto da peça baseada em O Conde de Monte Cristo.
Metódico, organizado, Maquet queria trabalhar. Dumas trabalhava – mas boa parte do tempo, passava com a garota Marion ou com alguma camareira do albergue.
Quando o filme está com uns dez minutos, surge no quarto originalmente reservado a Dumas, mas ocupado por Maquet, uma jovem de beleza faiscante. Chama-se Charlotte Desrives, e vem na pele de Mélanie Thierry (na foto abaixo).
Charlotte Desrives, creio eu – não consegui confirmar isso no que li na internet –, é a parte ficcional da história de L’Autre Dumas.
Ela bate na porta do quarto em que Maquet escreve; ele a princípio não a vê, de costas para a porta, e pensa que ela é a arrumadeira do albergue. Certa de estar falando com Alexandre Dumas, Charlotte diz que é leitora dele, que adora suas obras. E que ele conheceu o pai dela, um médico, na época da revolta contra Carlos X; tinham lutado juntos, o dr. Desrives, e ele. Fazia nove anos que ele, um republicano, estava preso, por conspirar contra a monarquia. Poderia Monsieur Dumas entregar uma carta a ele?
Auguste Maquet era fiel à sua esposa, Caroline (Catherine Mouchet). Era – como se dirá mais adiante – um dos poucos homens fiéis a sua esposa em Paris.
Mas, diante de Charlotte, ele capitula.
Até, por um momento, tenta esclarecer que não é Alexandre Dumas – mas não consegue. Faz-se então passar pelo escritor.
O que virá a seguida é uma trama envolvente, fascinante, apaixonante. Vai mostrar as muitas matizes da relação entre o colaborador anônimo e o endeusado escritor – e, paralelamente, essa história de amor triste a não mais poder de um homem de meia-idade por uma garotinha de 21 anos de idade e uma beleza resplandescente.
Uma peça de teatro e um filme feitos a quatro mãos, sobre autores que escreviam a quatro mãos
O roteiro de L’Autre Dumas foi escrito por Gilles Taurand e pelo diretor Safy Nebbou. Gilles Taurand fez a adaptação da peça teatral Signée Dumas, escrita por Cyril Gely e Eric Rouquette, encenada em Paris em 2003. Numa entrevista, o diretor Safy Nebbou disse que se encantou com a adaptação feita por Taurand. “Nem quis ler a peça de teatro, e avançamos a partir de sua adaptação. Trabalhos com muito prazer e liberdade sobre a estrutura do filme.”
Uma peça de teatro feita a quatro mãos, um roteiro feito a quatro mãos sobre uma dupla que escreveu a quatro mãos alguns dos mais famosos romances da História.
É de fato um belo, fascinante filme.
Anotação em dezembro de 2012
Dumas/L’Autre Dumas
De Safy Nebbou, França, 2010
Com Gérard Depardieu (Alexandre Dumas), Benoît Poelvoorde (Auguste Maquet),
e Dominique Blanc (Céleste Scriwaneck), Mélanie Thierry (Charlotte Desrives), Catherine Mouchet (Caroline Maquet), Jean-Christophe Bouvet (M. Bocquin), Philippe Magnan (François Guizot), Florence Pernel (Ida Ferrier Dumas), Michel Duchaussoy (subprefeito Crémieux), Ophélia Kolb (Marion)
Roteiro Safy Nebbou e Gilles Taurand
Baseado na peça Signé Dumas, de Cyril Gely e Eric Rouquette
Fotografia Stéphane Fontaine
Música Hugues Tabar-Nouval
Montagem Bernard Sasia
Produção Film Oblige, Union Générale Cinématographique, K2, France 2 Cinéma, Canal+, TPS Star, France Télévision.
Cor, 105 min
***
Com o devido respeito, li sôbre o filme que este causou enorme polêmica na época de seu lançamento pelo fato de Gèrard Depardieu ter sido o escolhido para interpretar Dumas.
Isso, mesmo ele sendo muito amado e querido na França.
A Associação Defesa dos Direitos dos Negros da França protestou veementemente.
Patrick Lozès presidente do conselho da mesma
teria ironizado: ” daqui a 150 anos Barack Obama poderia ser interpretado por um ator branco com peruca encaracolada ” ?
Tudo isto por Depardieu ser Caucasiano e Dumas era mestiço.
Lozès disse ainda que a escolha de Depardieu teria sido um insulto – o mesmo que dizer não haver um ator negro com talento para viver Dumas.
Deu pano para ” mangas “.
Um exemplo de preconceito racial, Sergio ?
Vou ver se encontro o DVD nas locadoras.
Um forte abraço, amigo !!
vi o filme hoje e gostei muito
mas fiquei curioso para saber o nome das
musicas utilizadas- uam em especial na cena do baile