Um homem com trágicas, absurdas deficiências físicas. Suas sessões com uma terapeuta que o ensina como manter relações sexuais. Os temas abordados em As Sessões tinham tudo para resultar em um filme de um lado deprimente e de outro em algo apelativo, pornografia barata. E, no entanto, o diretor e roteirista Ben Lewin conseguiu fazer um filme bem humorado, pra cima – e que trata o sexo de uma maneira absolutamente natural, a anos-luz de qualquer coisa parecida com apelação, sensacionalismo, baixaria.
Para obter esse resultado – um filme terno, delicado, sensível, emocionante, fascinante –, Ben Lewin, um diretor veterano, embora com uma filmografia pequena, contou com interpretações magníficas, extraordinárias, de todo o elenco, mas, de maneira especial, do trio central: John Hawkes, Helen Hunt e William H. Macy.
São atuações de deixar o espectador embasbacado, boca aberta queixo caído.
O filme se baseia numa história real; o protagonista foi poeta, editor, ativista
É uma história real. Mark O’Brien (o protagonista, interpretado por John Hawkes) nasceu em Boston, em 1949, de uma família católica de vários filhos. Aos 6 anos, contraiu poliomielite – doença que se desenvolveu de maneira rara, da qual eu jamais tinha ouvido falar: ele tinha dificuldades respiratórias, o que o obrigava a passar a maior parte do dia dentro de um “pulmão de aço”, aparelho que o ajudava a respirar. Durante umas quatro horas, tinha autonomia para ficar fora do “pulmão de aço”, mesmo assim tendo de tempos em tempos de aspirar oxigênio através de um tubo.
Não só: Mark não conseguia movimentar seu corpo abaixo do pescoço. Os únicos movimentos que podia executar eram com a cabeça. Segurando uma espécie de lápis com a boca, conseguia acionar o telefone e, mais tarde, o computador.
No filme, Mark-John Hawkes diz que seus pais poderiam tê-lo enviado para um hospital, e nesse caso ele teria morrido antes de chegar aos 10 anos de idade; levaram-no para casa e deram a ele todos os cuidados; “me deram minha vida, mas perderam a sua”.
Diz a Wikipedia: “No pulmão de aço ele frequentou a University of California Berkeley, produziu sua poesia e artigos, e se transformou em um advogado pelas pessoas com deficiência. Foi o co-fundador de uma pequena editora, Lemonade Factory, dedicada a poesia escrita por pessoas com deficiências. O’Brien foi o autor de vários volumes de poesia, incluindo Breathing (respirando) e How I Became a Human Being: A Disabled Man’s Quest for Independence (como eu virei um ser humano: a luta de um deficiente por independência).”
O protagonista é uma pessoa de imensa força espiritual, e um bom humor fantástico
O roteiro escrito por Ben Lewin não inclui a parte da editora, nem sua atuação em defesa dos deficientes. A narrativa abre com os créditos iniciais junto com uma reportagem de TV que mostrava Mark O’Brien chegando a universidade de maca – em Berkeley ele estudou Letras.
O filme se concentra no período da vida de Mark, em 1988, em que ele decidiu aprender como praticar o ato sexual.
A doença não o deixou propriamente paraplégico, nem tetraplégico. Ele não tinha força muscular suficiente para mexer braços e pernas, mas era capaz de sentir todo o corpo. E tinha ereções, e ejaculava. Só não tinha tido, até então – em 1988 ele estava com 38 anos, indo para os 39 – qualquer tipo de relação sexual.
Dito assim, pode parecer algo deprimente, ou grotesco, ou nojento. A grande magia, o resultado de uma soma de imensos talentos, é que o filme passa, repito, a milhares de anos-luz de qualquer uma dessas coisas. A narrativa é leve, tranquila, bem humorada, e tudo é mostrado com imensa naturalidade, zero de apelação ou comiseração. Mark, tudo indica, era um espírito de imensa força, e um bom humor difícil de encontrar em pessoas de corpo absolutamente saudável.
O talento dos três grandes atores faz toda a diferença, faz a tela brilhar
Os dois outros personagens fundamentais da história são um padre e uma terapeuta sexual. Não dá para saber se o padre Brendan (o papel do grande William H. Macy) realmente existiu, se a relação entre Mark e ele foi como a mostrada no filme, ou se há ali um pouco de licença poética.
Criado no catolicismo, Mark permaneceu católico na idade adulta, e freqüentava uma igreja na região de San Francisco. O velho padre da paróquia é substituído por um mais jovem – o padre Brendan feito por William H. Macy parece um autêntico hippie californiano –, e então Mark começa a se relacionar com ele. Primeiro Mark se confessa com o padre – pedindo perdão por pecados que ainda pretendia cometer no futuro, a tentativa de fazer sexo. Acabam virando amigos. Os dois são figuras interessantíssimas, fascinantes, e a amizade entre eles, mostrada ao longo de toda a narrativa, é apaixonante.
Através de uma psicóloga, Mark chegou a uma terapeuta sexual, Cheryl Cohen-Greene (o papel de Helen Hunt). E, se o padre Brendan pode ser uma licença poética do roteirista, um compósito de vários personagens, Cheryl Cohen-Greene, bem ao contrário, é uma pessoa real. Podemos ver a Cheryl Cohen-Greene da vida real em filmetinhos que acompanham As Sessões no DVD.
O diretor Ben Lewin conta, em entrevista nesses filmetinhos, que foi quando conheceu Cheryl pessoalmente que decidiu que seu filme não seria propriamente uma biografia de Mark O’Brien, ou o relato de um período de sua vida, e sim um filme sobre relacionamentos humanos.
Assim como a amizade entre o deficiente que quer fazer sexo e o padre com que confessa e conversa, o relacionamento entre Mark e Cheryl é absolutamente fascinante.
E aí o talento dos atores faz brilhar a tela.
É muito impressionante.
John Hawkes, de 1959, interior do Minnesota, 117 títulos na filmografia, entre filmes e séries de TV, 12 prêmios e 30 outras indicações, inclusive uma ao Oscar, tem nos últimos anos fascinado os críticos e os amantes dos filmes independentes, por suas atuações em Inverno da Alma (2010), Martha Marcy May Marlene e Em Busca da Fé (ambos de 2011).
Estava com 53 anos quando As Sessões foi lançado, e é difícil reconhecê-lo; fez um trabalho corporal intenso para se tornar semelhante a Mark O’Brien; tem a satisfação de dizer que não houve nenhum truque, nenhuma imagem de computador na transformação de seu corpo no filme. Ele usou uma almofada embaixo das costas, junto da bacia, para simular a postura de quem tem a espinha dorsal arqueada.
Helen Hunt, de 1963, californiana de Los Angeles, tem 93 títulos no currículo, 48 prêmios, inclusive um Oscar por Melhor é Impossível, e 48 outras indicações, inclusive uma ao Oscar de coadjuvante pelo papel de Cheryl. É uma mulher bela, de uma beleza forte e nada à la Barbie. Aos 49 anos, tem um corpo formidável, que, por força de seu papel, exibe em diversas cenas do filme. E aparece inteiramente nua da forma mais natural, mais tranqüila, mais aparentemente à vontade.
Muito provavelmente não deve ter sido muito fácil aparentar tanta naturalidade – e a naturalidade era fundamental para o papel de uma terapeuta sexual madura, competente. Em entrevistas, a atriz diz ter se inspirado na Cheryl Cohen-Greene da vida real, com quem conversou antes das filmagens.
Duas jovens atrizes que eu não conhecia estão também muito bem num elenco em que todos os atores se mostram muitíssimo bem dirigidos. Annika Marks faz Amanda, a primeira cuidadora de Mark que aparece na narrativa, e por quem ele logo se apaixona. Moon Bloodgood faz Vera, a cuidadora que surge na vida de Mark – para grande sorte dele – depois de Amanda. É um personagem fascinante, o dessa Vera, e a garota Moon Bloodgood tem um belo desempenho.
Um diretor que já fez muita coisa na vida, inclusive fora do cinema
O nome Ben Lewin não me dizia absolutamente nada; cheguei até a achar que fosse um diretor mais ou menos novato – embora a narrativa do filme seja absolutamente madura, tranquila, sem qualquer tipo de fogos de artifício.
Na verdade, Lewin é um veterano; nasceu na Polônia, em 1946; emigrou ainda criança com a família para a Austrália. Na juventude, foi apaixonado por fotografia e redação; formou-se em Direito e foi advogado criminal entre 1968 e 1971; deixou os tribunais e a Austrália ao receber uma bolsa para a National Film School na Inglaterra. Depois de formado, trabalhou como diretor na BBC. Fez documentários, filmes para a TV e minisséries. Dirigiu longa-metragens na Austrália (Georgia, de 1988, com Judy Davis, Um Golpe de Sorte, de 1994, com Anthony LaPaglia), na França (O Favor, o Relógio e o Peixe Muito Grande, de 1991, com Bob Hoskins) e agora nos Estados Unidos.
Um filme inspirational. Ele me inspira a me sentir um verme
A língua inglesa tem palavras que são mais diretas, mais fortes, mais significativas que em outras. Inspirational me parece uma delas: é bem mais forte do inspirador.
São muitos os filmes inspiradores, ou inspirational – que mostram histórias de superação, de pessoas que o destino dotou de grandes deficiências, e que conseguiram levar uma vida digna, invejável, que inspira a todos os que, ao contrário, tiveram todas as condições físicas e psicológicas de se dar bem e muitas vezes só conseguem ser medíocres, ou até menos que isso.
Pessoas da vida real, pessoas especiais, que conseguem vencer terríveis, imensas, ciclópicas adversidades, e são maravilhosas lições de vida.
Sem qualquer esforço ou pesquisa, me lembro, por exemplo, de De Porta em Porta/Door to Door (2002), por uma grande coincidência com William H. Macy no papel do protagonista; Temple Grandin (2010), com uma interpretação excelente de Claire Danes; Vermelho como o Céu/Rosso Come il Cielo (2006), sobre a infância de Mirco Menacci, que se tornaria o maior sonoplasta do cinema italiano recente.
Este As Sessões vem se juntar a essa galeria de filmes importantes, feitos, em boa parte, para nos inspirar, para vermos como somos pequenos diante de pessoas tão desfavorecidas pela sorte e que conseguem superar os obstáculos, graças a uma força de vontade, uma persistência sobre-humana.
Pessoas como essas me inspiram a me se sentir um verme.
Anotação em setembro de 2013
As Sessões/The Sessions
De Ben Lewin, EUA, 2012
Com John Hawkes (Mark), Helen Hunt (Cheryl), William H. Macy (Padre Brendan),
e Moon Bloodgood (Vera), Annika Marks (Amanda), Robin Weigert (Susan), Adam Arkin (Josh), W. Earl Brown (Rod)
Roteiro Ben Lewin
Baseado no artigo de Mark O’Brien “On Seeing a Sex Surrogate”
Fotografia Geoffrey Simpson
Música Marco Beltrami
Montagem Lisa Bronwell
No DVD. Produção Fox Searchlight Pictures, Such Much Films, Rhino Films. DVD Fox.
Cor, 95 min
***1/2
É realmente um filmaço. Histórias de vida ligadas a paraplegia ou tetraplegia (ok, não é exatamente paraplegia o que aparece no filme, mas o
resultado é quase o mesmo) são quase sempre emocionantes no cinema. Os exemplos de grandes filmes incluem O Escafandro e A Borboleta e Os Intocáveis. As Sessões pode entrar neste seleto grupo. Eu coloco. É muito bom!
Além de O Escafandro e de Os Intocáveis, o longa me fez lembrar de Um Sonho Possível, que rendeu o Oscar de Sandra Bullock em 2010. Achei que tem o mesmo clima, que aborda um assunto forte mas de maneira para cima. É um drama que, digamos, não faz o espectador passar dezenas de minutos triste.
Confesso que não gosto desse tipo de filme, me causa um pouco de agonia, mas seu texto me fez ter vontade de vê-lo (como sempre).
Eu já sabia dessa doença, porque no início do ano, uma prima me emprestou um livro que conta uma história parecida, só que ocorrida com uma brasileira. Ela comprou o livro pq o marido se acidentou, fraturou o quadril, e passou a dar uma de coitado, a querer tudo na mão, como se fosse a pessoa mais incapacitada do mundo. Eu não consegui terminar de ler, porque quando ela me emprestou eu já estava quase vindo embora, li o mais rápido que pude, mas não deu pra terminar; gostei muito do que li, é uma lição e tanto (e triste demais, a menina foi praticamente abandonada no hospital pelos pais). A todo tempo eu fazia paralelos, porque tenho quase a mesma idade que a moça. Até cheguei a perguntar pra minha mãe se eu fui vacinada contra a pólio (dãã), pois o mais triste é saber que uma doença tão terrível poderia ter sido evitada de maneira tão simples. Chega a ser cruel e inaceitável. A quem interessar possa, o livro se chama Pulmão de Aço.
O Danilo lembrou bem de O Escafandro e a Borboleta; assisti meio que com o pé atrás, mas ao final achei super bem feito. Agora quero ler o livro, que é fininho (dizem que o filme tem mais detalhes, ao contrário do que geralmente ocorre quando um livro é transformado em filme).
O filme é mesmo muito bom, Sérgio, gostei bastante.
O personagem desenvolveu a doença exatamente da mesma maneira que a brasileira Eliana, que eu havia comentado. A diferença é que a família do Mark resolveu cuidar dele, e a dela a abandonou num hospital.
Como você já disse, os três atores principais estão excelentes. Não lembro de ter assistido a outros filmes com o John Hawkes, mas deu até vontade de ver algum pra saber se ele é sempre bom assim.
A Helen Hunt é sempre ótima. Tenho implicância apenas com o jeito que ela fala – me irrita. Achei que ela está super bem de corpo; ao reler seu texto disse “uauu” para a idade dela e o ótimo físico, e ao que parece, com tudo original de fábrica (vou relevar o botox na testa). Sua personagem aparenta mesmo uma naturalidade incrível.
Todos ótimos atores, difícil escolher o melhor, mas o personagem do padre foi o que mais me cativou; um padre gente boa que fuma e bebe cerveja, um subversivo? Queria ser amiga dele, serião.
O bom humor do Mark me fez lembrar do também bem humorado Philippe, personagem do François Cluzet em “Intocáveis”.
E eu também me sinto uma ameba quando vejo filmes com um personagem assim, pois como você bem disse (…)”como somos pequenos diante de pessoas tão desfavorecidas pela sorte e que conseguem superar os obstáculos, graças a uma força de vontade, uma persistência sobre-humana.”
Nunca tinha ouvido falar desse filme. Assisti, por acaso, na madrugada da Globo, este mês(abril/18). E ainda peguei o filme já na metade. Mas adorei. Muito profundo, envolvente, de uma sensibilidade incrível. Todos o elenco é extraordinario. Pretendo assistir ele novamente, desde o começo agora.
Um filme indicado numa formação tocante e atual