Os Agentes do Destino, no original The Adjustment Bureau, o escritório de ajustes, é um filme que tem qualidades. A maior delas, me parece, é a premissa básica, a base da história: uma trama de ficção científica inventiva, criativa, que na verdade quer discutir livre arbítrio x fatalidade, destino, e, em última análise, a existência de Deus.
O resultado final, no entanto, me pareceu aquém do que essa base de história inteligente, fascinante, prometia. O filme acaba querendo abarcar temas demais – metafísica, política, ação, suspense, romance –, resultando numa salada complexa que, em alguns momentos, roça pela bobagem risível.
Mas essa – digo e repito sempre – é apenas a minha opinião, e a minha opinião vale no máximo uns três guaranis furados. Mary, por exemplo, gostou do filme, bem mais do que eu.
Nos primeiros 15 minutos, uma narrativa sobre política
O filme demora um pouquinho a mostrar a que veio. Começa como uma narrativa sobre política. David Norris (interpretado pelo sempre bom Matt Damon) está concorrendo ao Senado por Nova York. Através de noticiário da TV, alternado com cenas da campanha eleitoral, ficamos sabendo um pouco do histórico do candidato. Teve origem humilde, de família simples do Brooklyn. Em tragédias consecutivas, perdeu a mãe, o pai, o irmão mais velho. Foi eleito deputado aos 24 anos – o deputado mais jovem até então –, e envolveu-se em uma briga de bar no dia mesmo da eleição. Estava à frente nas pesquisas, mas, pouco antes do dia da votação, um jornal publica uma foto em que ele aparece de calças arriadas, numa brincadeira de estudantes. Esse escândalo – que expõe David como um jovem inconseqüente, imaturo para um cargo tão importante – é o suficiente para mudar as intenções de votos de milhares de pessoas.
Perde a eleição.
Antes de fazer o discurso de admissão da derrota diante de seus seguidores, num hotel chique da cidade, entra num banheiro; certifica-se de que não há ninguém ali, e então lê o discurso preparado pela sua equipe de campanha. De repente, sai de dentro de um dos cubículos de privada uma jovem mulher. Linda, com forte sotaque inglês – ela vem na pele da ótima Emily Blunt.
Conversam um pouco. Ela o beija.
Charlie, seu amigo de infância e coordenador da campanha (Michael Kelly), entra no banheiro para chamar David: está na hora de fazer o discurso.
A bela jovem desaparece.
David entra no salão repleto de seus seguidores; deixa de lado o texto preparado pelos assessores, faz um discurso forte, denunciando que muito do que fez na campanha foi por causa dos marqueteiros. O discurso de improviso, autêntico, anti-marquetagem, faz um sucesso tremendo, repercute na imprensa. Como num passe de mágica, David sai da derrota muito bem cotado para a eleição seguinte, daí a quatro anos.
Estamos aqui com 15 minutos de filme.
Atenção: spoiler. Quem quiser se surpreender com a trama não deve ler daqui para a frente
Nestes primeiros 15 minutos, intrometendo-se na história do jovem político David Norris, há umas duas seqüências em que aparecem uns homens estranhos, misteriosos, de terno e gravata, sempre usando chapéus. Não fica claro quem são.
Quando estamos com 15 minutos, dois desses homens se encontram numa praça, perto do apartamento de David. Um deles, Richardson (John Slattery), parece estar no comando da operação. O outro, Harry (Anthony Mackie), tem a incumbência de derramar um café na roupa de David, exatamente às 7h05 daquela manhã. Havia se passado um mês desde a derrota dele na eleição para o Senado.
Harry, esse homem misterioso, dá uma rápida cochilada – e, quando percebe, David havia acabado de entrar num ônibus. E, dentro do ônibus, ele reencontra a moça do banheiro. Chama-se Elise. Conversam, trocam cartões com os números de telefone.
Não era para as coisas acontecerem daquele jeito
Não era para David ter tomado aquele ônibus. Era para Harry ter trombado com ele, derrubado café na sua roupa. Com isso David teria que ter voltado a seu apartamento para trocar de roupa, e assim ter se atrasado uns dez minutos para o encontro que tinha marcado justamente com Charlie, seu amigo de infância, ex-coordenador de sua campanha para o Senado, e agora dono de uma empresa de investimentos para a qual David está entrando como sócio.
Como houve o cochilo, o plano todo desmoronou. David chega à sede da empresa de Charlie dez, quinze minutos antes do previsto – a tempo de ver um grande número de pessoas desconhecidas agindo.
São do Adjustment Bureau do título original, o escritório de ajustes, ou os agentes do destino, como os chamou o título brasileiro do filme.
Cuidam para que os fatos se dêem conforme o plano, o planejado. Quando alguém ameaça fazer algo que não está conforme os planos, quando alguém está prestes a fazer algo que poderá mudar o destino traçado, eles entram em ação.
Richardson, o que chefia a operação, dá essas explicações básicas para o atônito David. E ameaça: ele não deve contar para ninguém, para absolutamente ninguém, aquilo que acabou de presenciar. Se desobedecer a essa ordem, eles farão um reset no cérebro de David, apagarão toda a sua memória, sua personalidade.
Richardson esclarece para David: não era para ele ter se encontrado novamente com Elise – e, para se certificar de que não haveria um terceiro encontro entre os dois, o homem do Bureau pega o cartão com o endereço dela e o queima.
São uma imensa corporação. Acima de Richardson está Thompson (o papel do grande Terence Stamp). Obedecem, todos eles, a um ser superior, a quem chama de presidente, embora ele seja conhecido pelos humanos por outros nomes.
Deus, em suma.
Os agentes do destino, os homens do Adjustment Bureau, do escritório de ajustes, são assim espécies de anjos, que cuidam para que os planos traçados pelo presidente, pela Entidade Superior, Deus, se realizem.
A ficção científica era uma bela maneira de autores discutirem os temais mais profundos
Nesse ponto, estamos com 28 minutos de filme.
E aqui é preciso falar de Philip K. Dick, o autor do pequeno conto “Adjustment Team” que deu origem ao filme, mesmo que para muita gente isso seja chover no molhado.
Philip K. Dick (1928-1982) é um daqueles casos de artistas que, por trágica ironia do destino, só teve a importância de seu trabalho reconhecida após a morte. Era extremamente prolífico. Escreveu 44 novelas e cerca de 120 contos, a maioria de ficção científica, mas nunca recebeu muito dinheiro por suas obras.
Diversos de seus trabalhos seriam adaptados depois de sua morte para o cinema. Blade Runner, de Ridley Scott, se baseia numa história dele, assim como Minority Report, de Steven Spielberg.
A ficção científica serviu para que grandes autores discutissem temas transcendentais, metafísicos: quem somos, onde estamos, para onde vamos. Arthur C. Clarke, Ray Bradbury, Fredric Brown, Clifford D. Simak fizeram isso. Philip K. Dick talvez tenha sido um dos que foram mais fundo nesse mergulho na filosofia através de histórias de ficção – na filosofia, e também na sociologia. Tratou do poder das grandes corporações, dos governos autoritários. E, principalmente, da metafísica. Definia-se como um “ficcionista filósofo”.
Com base na premissa do pequeno conto de Dick, o diretor e roteirista criou toda uma longa história
“Adjustment Team”, o conto que inspirou o roteirista e diretor George Nolfi, tem apenas 20 páginas. Foi publicado originalmente numa revista de contos, Orbit Science Fiction, na edição de setembro e outubro de 1954. (O conto está disponível na internet: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Adjustment_Team.djvu) O personagem central não é um político em ascensão, e sim um simples vendedor de seguros, Ed Fletcher. Um imprevisto acontece, e Ed Fletcher acaba presenciando a ação do esquadrão de ajustes. Como viu algo que não deveria ter visto, algo que os humanos não podiam ver, Fletcher é levado à presença do Velho. E é advertido de que não poderá revelar nunca, jamais, para ninguém, aquilo que havia visto.
Isso é o que narra o conto de Philip K. Dick. Essa é a tal da premissa básica, a base da história do filme – e ela é de fato inventiva, criativa, inteligente, fascinante.
Atenção: os três parágrafos abaixo trazem spoilers
Com base nessa premissa, George Nolfi criou sua história, onde entram um grande amor, que já esteve escrito nas estrelas mas depois deixou de estar, uma equipe de balé contemporâneo, perseguições, ação, correria, portas que se abrem para os lugares mais distantes e insuspeitados, política, eleições, a Entidade Superior querendo ajudar um mortal a ser eleito presidente dos Estados Unidos e melhorar o mundo, o escritório central da Entidade Superior localizado em Manhattan…
Credo, mas era só o que faltava: Deus com escritório em Manhattan!
Acho que nunca jamais em tempo algum o umbigocentrismo americano tinha chegado a tanto: o escritório de Deus fica no coração de Manhattan! E Deus é que escolhe o próximo presidente!
O diretor-roteirista é especializado em tramas de ação, thrillers
Foi a estréia de George Nolfi na direção. Antes, ele havia escrito os roteiros de Linha do Tempo, Doze Homens e um Segredo, Sentinela e O Ultimato Bourne. Filmes de ação, thrillers de ação.
Os Agentes do Destino é muitíssimo bem realizado. As cenas de ação são ótimas, a sacada da porta que dá de um prédio em Manhattan diretamente para a ilha em que fica a Estátua da Liberdade ou para o Yankee Stadium é boa e a execução é de altíssimo nível técnico. Matt Damon é um bom ator, Emily Blunt é boa e bela, a trilha de Thomas Newman é ótima.
Tudo bem – o diretor domina essa área, a coisa de ação.
Mas acho que romance e metafísica são areia demais pro caminhãozinho de George Nolfi.
Anotação em março de 2012
Os Agentes do Destino/The Adjustment Bureau
De George Nolfi, EUA, 2011
Com Matt Damon (David Norris), Emily Blunt (Elise Sellas), Michael Kelly (Charlie Traynor), Anthony Mackie (Harry Mitchell), John Slattery (Richardson), Terence Stamp (Thompson)
Roteiro George Nolfi
Inspirado no conto Adjustment Team, de Philip K. Dick
Fotografia John Toll
Música Thomas Newman
Produção Universal Pictures, Media Rights Capital,
Gambit Pictures, Electric Shepherd Productions. DVD Universal. Estreou em São Paulo em 13/5/2011.
Cor, 106 min
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Deus com escritório em Manhattan!
hhaahhaahhahaha ótima observaçao!!! Eu vi esse filme nessa semana, na tv a cabo, e realmente… é muita viagem na maionese… pensei na hora: o que o Woody Allen diria deste filme? Woddy, que sempre afirma e reafirma nos filmes que a nossa vida é o mais randomica possível, aleatória, nao tem sentido nenhum, nao tem justiça alguma, nao há nenhum “plano” para nós, meros mortais… hum hum hum? Sou mais Woody.