O Homem do Lado é um filme que incomoda, deixa o espectador aflito, apreensivo, nervoso. Mostra uma disputa entre dois vizinhos por algo que parece pequeno, um detalhe. A tensão, no entanto, vai se elevando, inexoravelmente, e sabemos o tempo todo que virá uma tragédia.
O final é surpreendente, acachapante, apavorante.
É um filme extremamente bem realizado. Se não fosse por algumas coisinhas menores, devidas, sem dúvida, à juventude dos diretores – um excesso, o tempo todo, de close-ups, big close-ups, e um esticar um pouco demais a corda, o tempo de duração –, poderia ser um grande, magnífico filme.
Os jovens diretores argentinos Mariano Cohn e Gastón Duprat, eles próprios responsáveis pela direção de fotografia, mostram talento desde as primeiras imagens, os créditos iniciais. A tela está dividida ao meio; na metade da esquerda, há uma parede vista do lado de fora da casa; na metade da direita, a parede vista do lado de dentro da casa. Ruído de marretadas – está sendo aberto um buraco na parede.
É disso que se trata: um buraco em uma parede.
Leonardo (Rafael Spregelburd) é um designer de grande sucesso. Teve criações premiadas em bienais na Europa, dá aulas, é rico, bem sucedido – um yuppizinho porteño. Como prova de que se deu muito bem na vida, mora numa casa que a rigor deveria ser um museu: é a única residência projetada pelo legendário arquiteto Le Corbusier na América Latina.
É o típico projeto de arquiteto exibicionista, que pensa mais em sua própria glória que na comodidade de quem vai habitar o local. A casa, de três andares, tem longas rampas internas, é toda cheia de vidros, de ambientes de pé direito triplo, envolve em seu interior uma grande árvore, é extremamente ensolarada.
Numa das extremidades de uma das rampas que ligam os andares, há uma parede de vidro, dando para fora, para a parede externa de uma outra propriedade, um apartamento cuja entrada fica em outra rua. É nessa parede externa do apartamento vizinho, situada a uns dois metros da parede de vidro da casa de Leonardo, que operários começam a abrir uma janela.
Uma janela no apartamento vizinho vai devassar a casa de Leonardo. O vizinho passará a enxergar boa parte do interior da casa do designer.
Leonardo e sua mulher, Ana (Eugenia Alonso), ficam chocadíssimos.
Aparentemente, abrir aquela janela – além de devassar completamente a casa de Leonardo – é proibido pelas posturas municipais. Para fazer a obra, seria necessário, no mínimo, a concordância do ocupante da casa.
Leonardo abre a janela de vidro, berra para os pedreiros pararem a obra. Os pedreiros dizem que precisam falar com o dono do apartamento, Victor (Daniel Aráoz).
A primeira conversa entre Leonardo e Victor não corre bem. Leonardo é um tanto grosseiro, um tanto dono da verdade. Victor pede que eles se encontrem, vão a um bar, conversem numa boa. Ele precisa da janela – explica – para ter um pouco de claridade dentro de seu apartamento. Leonardo diz que não tem tempo para conversar num bar, está cheio de trabalho – e é preciso que Victor pare com a obra, já, imediatamente.
Um clima opressivo, pegajosamente perigoso
A disputa entre Leonardo e Victor a respeito da janela vai durar 110 minutos. A tensão será crescente.
O desempenho dos dois atores, maravilhoso, ajuda, e muito, a criar um clima opressivo, pegajosamente perigoso.
O grande pulo do gato do roteirista Andrés Duprat e dos diretores Mariano Cohn e Gastón Duprat é a definição dos dois tipos envolvidos na disputa – e a forma como a narrativa joga com as expectativas dos espectadores.
Leonardo, o da casa que será devassada pela janela, é um sujeito de formação universitária, um artista. Mora – repito, porque é importante – na única casa projetada por Le Corbusier na América Latina. Usa grandes óculos, tem a barba por fazer, é jovem, tem boa pinta.
Seu oponente, Victor, é um sujeito um tanto grosseirão, vulgar, jeito de malandrão. É óbvio que veio de família mais humilde e não teve muita educação formal – não tem diploma de faculdade. É careca, de mais idade, feioso. Obviamente tem hoje algum dinheiro, mas não fica claro hora nenhuma o que ele faz na vida, e, por suas maneiras, até parece que pode ter se envolvido em falcatruas de algum tipo.
A tendência natural é que o espectador tome partido de Leonardo. Leonardo é mais próximo do espectador do que Victor. E, além disso, ele estava lá primeiro, é a intimidade de seu lar que será devassada com a abertura da janela de Victor.
A expectativa dá com os burros n’água: o tipo grosseiro tem mais caráter que o jovem bem de vida
A tensão vai crescendo.
Quando o filme estava ali por uns 30, 40 minutos, e eu me mexia inquieto na poltrona, Mary comentou que, apesar de tudo, Victor, o tipo meio grosseirão, parecia um sujeito mais simpático, mais bom caráter, que Leonardo, o intelectualizado bem de vida. Mary tem uma inteligência aguçada, um faro fino para identificar as coisas. Eu ainda não tinha percebido isso.
Leonardo vai se revelando cada vez mais uma pessoa abjeta – ou, no mínimo, um caráter fraco. É prepotente, dono da verdade. O dinheiro que ganhou, os prêmios, a bajulação, tudo o deixou muito senhor de si. Acha-se superior àquele sujeito menos estudado do que ele, menos bem de vida do que ele.
É errático em suas ações. Foge de uma conversa franca, aberta, com o vizinho incômodo. Esconde-se em subterfúgios, em mentiras. É, vai-se percebendo ao longo da narrativa, um covarde.
Está muito bem de vida, em termos materiais, mas sua relação com Ana, a mulher, não é lá essas coisas. Conversam pouco, comunicam-se pouco. A relação dos dois com a filha, uma aborrescente aí de uns 13, 14 anos, é um fracasso total – ela simplesmente não fala com os pais.
Nos cinco minutos finais, os diretores enfiam uma peixeira afiada no espectador
O filme foi rodado na própria casa projetada por Le Corbusier. Chama-se Casa Curutchet, fica em La Plata, na Província de Buenos Aires. Foi construída entre 1949 e 1953, para um cirurgião importante, Pedro Domingo Curutchet. Hoje, sedia o Colegio dos Arquitetos de La Plata, que a aluga dos herdeiros do proprietário. Le Corbusier (1887-1965), nascido na Suíça e tornado cidadão do mundo, um dos arquitetos mais importantes do século XX, como se sabe, projetou, entre outras obras, o edifício sede da ONU, em Nova York.
Mariano Cohn nasceu em 1975. Não achei a idade de Gastón Duprat numa rápida busca, mas deve ser tão jovem quanto seu colega e co-diretor. Têm muito talento, esses dois garotos. Sabem criar personagens sólidos, sabem criar clima. Escolheram uma forma inquietante de contar uma história inquietante – e, nos cinco minutos finais de sua narrativa, enfiam uma peixeira afiada no espectador.
O Homem do Lado foi um grande sucesso no circuito dos festivais. Ganhou 12 prêmios e teve outras 11 indicações. Da Academia Argentina, levou os prêmios de melhor filme, melhor direção, melhor ator para Daniel Aráoz, melhor roteiro original, melhor música. Foi indicado ao Goya espanhol na categoria de melhor filme estrangeiro em língua espanhola, e teve um prêmio no Sundance de melhor filme dramático do cinema mundial.
Um belo – e apavorante – filme.
Anotação em março de 2012
O Homem do Lado/El Hombre de al Lado
De Mariano Cohn e Gastón Duprat, Argentina, 2009
Com Daniel Aráoz (Victor), Rafael Spregelburd (Leonardo)
Eugenia Alonso (Ana), Inés Budassi (Lola), Loren Acuña (Elba)
Roteiro Andrés Duprat
Fotografia Mariano Cohn e Gastón Duprat
Música Sergio Pangaro
Produção Aleph Media, Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales (INCAA), Televisión Abierta. DVD Imovision.
Cor, 110 min
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Também gostei muito do filme, Sérgio!! Nota dez pro cinema argentino e para os ótimos roteiros e personagem que eles criam! Recomendo aqui outro filme argentino ligado à arquitetura, mas por outro enfoque: Medianeras!
Fantástico! As interpretações e os personagens em si – que figuras!!!! – e que final! detalhe: fiquei imaginando a cara do Leonardo quando Victor se balançava na tal cadeira premiada, com close em seu sorriso de ‘pra lá de satisfeito’!
abraço