Leonera, de 2008, me parece uma perfeita prova de que o cinema argentino não faz apenas belos filmes ternos, simpáticos, agradáveis, sobre a vida de pessoas simples, comuns, gente como a gente. Uma prova de que nuestros hermanos também fazem, como tantas vezes se faz no cinema brasileiro, nos últimos anos, filmes depressivos, desagradáveis, agressivos, sobre misérias profundas – a material e a humana.
Leonera é assim uma espécie de versão argentina dos filmes que querem demonstrar que toda a nossa realidade – a nossa, dos países periféricos, pobres, miseráveis, quarto mundo – é um total, absoluto horror.
Leonera é uma espécie assim de Carandiru argentino.
Foi elogiadíssimoo pela crítica. Participou da mostra competiva de Cannes, foi o escolhido pela Argentina para participar da escolha dos indicados ao Oscar de melhor filme estrangeiro.
Os críticos de cinema, os caras que escolhem os filmes que participam dos grandes festivais, adoram uma exibição de miséria, moral ou física, ou as duas juntas.
Na minha opinião, além de chato, penoso de ver, Leonera é um filme ruim.
Um dia inteiro para a personagem perceber que há um homem morto e outro ferido em sua casa
O diretor Pablo Trapero parece gostar daquele princípio segundo o qual Podendo-Complicar-a-Narrativa,-Por-que-Simplificar?
Abre com um mulher – Julia, a protagonista, interpretada por Martina Gusman – dormindo um sono pesado, profundo. Está ferida, tem hematomas e sangue por todo o corpo. Acorda – a sala do apartamento onde ela dormia no sofá está completamente revirada, como se tivesse havido ali uma luta violenta. Toma banho, e vai para o trabalho – ou para a faculdade em que estuda, não fica muito claro. Uma colega a convida para almoçar, ela recusa, fica mais tempo trabalhando.
Volta ao apartamento – e só aí percebe que ali há um homem morto, e outro ferido, em estado grave.
Não se explica por que essa demora em perceber o que havia acontecido em sua própria casa.
Telefona para alguém, desesperada, confusa, em prantos – e nesse momento chega a polícia, ameaça arrombar a porta do apartamento.
O homem ferido é levado por uma ambulância, Julia sai do prédio presa, acusada de um assassinato e uma tentativa de assassinato.
Está grávida – e por isso é levada para uma prisão feminina de mulheres grávidas ou que tiveram filho já presas.
Nos primeiros momentos em sua cela, Julia esmurra sua barriga.
E aqui, a bem da justiça, é preciso registrar que Martina Gusman tem grande interpretação. Jovem (nasceu em 1978), bela, Martina – casada, na vida real, com o diretor Pablo Trapero -, tem presença forte, magnética, diante da câmara.
Mas o fato que a partir daí seguem-se intermináveis mais de 100 minutos de cenas degradantes em um presídio degradante, desumano, cruel.
Nasce o filho de Julia, Tomás. A princípio ela o rejeita, não está preparada para ser mãe (aparentemente, não está preparada para nada na vida), não sabe como amamentá-lo. Entra em cena Marta (Laura García), uma mulher solidária, prestativa – é verdade que, em paralelo, interessada por Julia, figura bonita, atraente, cabelo longo pintado de louro.
Marta é o único oásis de sanidade entre os personagens de Leonera.
Lá pelas tantas Julia recebe a visita de Ramiro, interpretado por Rodrigo Santoro, já que o filme é uma co-produção com o Brasil (recebeu também um dinheiro da Coréia do Sul). Ramiro é o homem que estava ferido no apartamento de Julia, e sobreviveu à guerra que aconteceu lá.
Aparentemente (nada é muito claro), Julia, Ramiro e o homem encontrado morto no início da narrativa viveram um triângulo amoroso à la Cabaret – Ramiro teria sido amante tanto do homem agora morto quanto de Julia.
Os depoimentos de Ramiro à polícia serão importantes no julgamento de Julia.
Em suma: segundo Leonera, a humanidade não presta mesmo, foi mesmo uma invenção que não deu certo, é tudo um horror, o mundo fede.
Bleargh.
Aqui, três elegias ao filme de Pablo Trapero
Claro: sobram elogios ao filme.
“É um filme de gosto agridoce que celebra a vida, ainda que conte uma história de morte. (…) Leonera, em espanhol, é o lugar onde se mantêm os leões. No caso, as leoas. Trapero mais uma vez despudoriza os corpos, atrás de extrair significados, e é uma imagem forte ver o barrigão de Julia no chuveiro do presídio. Não é o caso, no entanto, de um cineasta que se encanta com o próprio talento. Quando arruma uma imagem que transborda simbolismo – como o filho que brinca se balançando na grade da cela – Trapero ainda assim mantém o plano com uma duração econômica. Não corta rápido demais a ponto de perdermos o significado, e não se alonga a ponto de explorar a imagem em ‘proveito próprio’. (Marcelo Hessel, no site Omelete.)
“Trapero continua grudado em sua personagem, experimentando o mundo através dela, no entanto há em Leonera a disposição ao drama de uma maneira exemplar no que se refere a construção de ambiente, relacionamentos entre personagens e de desenvolvimentos narrativos. Neste sentido, Leonera não se entrega somente a uma ‘captação do mundo’: ele o constrói, com considerável parte do seu trabalho se dando no roteiro/montagem e no desenvolvimento dos personagens. E é desta maneira que Trapero nos conduz por quatro anos de vida da personagem de uma forma sutil em que quase não percebemos o quanto de informação nos vai sendo dado, construindo uma tensão crescente que é dominada pelo filme tão bem quanto sua disposição a olhar o mundo à sua frente. Um belíssimo filme, o melhor de Trapero até agora.” (Eduardo Valente, no site Cinética.)
“Leonera não é um filme fácil. Não oferece respostas, certezas, convicções. A protagonista está presa e o espectador não sabe se ela é culpada ou não. Nem o espectador, nem ela mesma. Mas este não é um filme sobre um crime, nem muito menos uma viagem infernal sobre as agruras do sistema carcerário argentino como pode parecer, mas o retrato quase documental de uma mulher em sua jornada para continuar. O filme acompanha a protagonista na nova fase de sua vida, que vai mudar sua maneira de encarar o mundo, de lidar com sua mãe, de reconhecer o amor. Nesse meio tempo, Pablo Trapero lança reflexões sobre a Argentina, sobre a maternidade, sobre a forma como as coisas devem ser. É um longa universal que parte de um cenário fechado entre quatro paredes (e algumas barras de ferro). Martina Guzman, a mulher do diretor, surpreende do papel principal, garantindo o tom sóbrio ao filme. E Rodrigo Santoro, em sua participação pequena, mais uma vez depura seus dons de intérprete num papel dúbio e complexo. Mas possivelmente o êxito de Leonera vem de como Trapero consegue explorar tantos temas sem buscar ser definitivo sobre nenhum deles. O diretor não está interessado no caminho fácil de revelar, denunciar e muito menos julgar o governo, a polícia, a justiça. Seu olhar é questionador e, por isso, muito mais inteligente. (Chico Fireman, no site Filmes do Chico.)
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A diversidade de opiniões é uma das boas coisas do mundo.
Anotação em março de 2012
Leonera
De Pablo Trapero, Argentina-Brasil-Coréia do Sul, 2008.
Com Martina Gusman (Julia), Elli Medeiros (Sofia), Rodrigo Santoro (Ramiro), Laura García (Marta), Leonardo Sauma (Ugo Casman)
Argumento e roteiro Alejandro Fadel, Martín Mauregui,
Santiago Mitre e Pablo Trapero
Fotografia Guillermo Nieto
Produção Matanza Cine, Patagonik Film Group, Cineclick Asia,
Ibermedia European Community Program, Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales, VideoFilmes. DVD Buena Vista
Cor, 113 min
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Título em inglês: Lion’s Den