Água para Elefantes é um filme que tem diversos tons. Às vezes tem um clima de nostalgia, de saudade de um passado em que a vida era diferente; em outros momentos, tem um quê de ingenuidade, uma coisa quase infantil; há momentos de imensa violência, crueldade, vilania.
É estranho, espantoso, que o passado em que a vida era diferente, talvez até melhor do que nos dias de hoje, seja 1931, a época da mais profunda depressão econômica que os Estados Unidos já enfrentaram.
Talvez tenha a ver com o fato de que o país mais rico do mundo esteja afundado, desde 2008, no segundo momento de mais grave crise econômica de sua história.
Nos períodos de grande crise econômica, o passado – mesmo que seja trágico – pode parecer que teve alguma beleza, algum charme.
O presente do personagem central, Jacob Jankowski, um velhinho bem velhinho (interpretado por Hal Holbrook, na foto), não é nada bom. Não que ele esteja doente – não está, está apenas muito velho. Vive hoje numa casa de repouso, e não gosta nada do lugar, não tem amigos, não conhece as pessoas. A mulher já morreu, e os filhos – são cinco – só o visitam uma vez por semana, alternadamente, um de cada vez. Sente-se solitário, e o que é pior: inútil, sem função, por não estar fazendo nada na vida.
(Há muita gente que não consegue compreender a vida sem estar trabalhando, sem ter um emprego, um cargo, uma profissão. Que não consegue entender que a velhice com ócio é um direito abençoado. Veremos que Jacob é uma dessas pessoas.)
Mas o que vemos bem no início da narrativa é aquele velhinho parado diante de um circo, à noite, depois que o show já terminou e todos os espectadores já foram para suas casas, ou para qualquer outro lugar, para tocar suas vidas. O velhinho Jacob não quer voltar para a casa de repouso que detesta, e está lá parado, diante do circo.
Dois homens do circo se aproximam dele; querem ajudar, querem saber o que podem fazer por ele. O mais velho dos dois, que parece ser o gerente, o chefe, acaba levando Jacob para seu escritório, e de lá tenta ligar para as casas de repouso das proximidades, para ver qual delas é a do velhinho ali.
Enquanto o homem do circo dá seus telefonemas, Jacob vai observando os quadros nas paredes, velhas fotos de antigos circos. Apega-se a uma foto específica, em que uma jovem loura (Reese Witherspoon, a estrela do filme) está no alto de um elefante que se ergue sobre as duas pernas traseiras. O famoso, tradicional, antiquíssimo circo dos Irmãos Benzini, que não existe mais.
É claro, é o óbvio ululante: quando muito jovem, Jacob Jankowski trabalhou no circo dos Irmãos Benzini. Presenciou o que aquela foto antiga mostra.
O gerente do circo, gente boa, bom caráter, percebe. Faz perguntas a Jacob, pede que ele conte sua história.
E vem então o flashback que qualquer espectador que consiga somar 1 mais 1 já sabia que viria.
De uma vez só, o jovem Jacob perde os pais, a casa, o curso de veterinária
Voltamos a 1931. Da América ainda imersa na crise econômica estourada em 2008 basicamente pela falta de regulamentação dos agentes do sistema financeiro, voltamos à América da Grande Depressão pós a quebra da Bolsa de Nova York de 1929.
O experientíssimo roteirista Richard LaGravanese (de, entre outros, As Pontes de Madison, de Clint Eastwood) e o diretor Francis Lawrence, cujo nome não me diz coisa alguma, tiveram uma boa sacadinha na hora da passagem do hoje para o passado, a hora do início do flashback que vai durar praticamente o filme inteiro: as vozes do velho Jacob-Hal Holbrook e do jovem Jacob-Robert Pattinson (na foto) falam juntas, em uníssono, algumas frases, até que a voz velha desaparece e ficamos com a voz jovem relatando a história.
O jovem Jacob era o filho único de um casal de imigrantes poloneses. Honestos, bondosos, extremamente trabalhadores, os Jankowski conseguiram juntar dinheiro para garantir que Jacob estudasse. Jacob estava começando a fazer seus exames finais para obter o diploma de veterinária por uma universidade respeitada, Cornell, quando batem na porta da sala onde a turma redigia sua prova: tinha havido um acidente automobilístico, os pais de Jacob estavam mortos.
Ainda não temos dez minutos de filme, e Jacob está sentado diante de um gerente de banco, que o informa, sem dó ou piedade, que todas as propriedades dos seus pais, a pequena fazenda onde ganhavam a vida, a casa onde moravam, todos os seus móveis, estavam hipotecados, e agora pertenciam ao banco. Jacob tem um prazo ínfimo para tirar seus objetos pessoais da casa, que em seguida será tomada pelo banco.
Se Jacob virasse veterinário, seria a lógica – mas não haveria história
Jacob não tentará fazer o exame final que poderia lhe dar um diploma de veterinário pela universidade de Cornell e portanto uma possibilidade de sobreviver durante a Grande Depressão. Se ele tivesse tentado fazer o exame final, seria a lógica – mas não haveria história, não haveria o romance escrito por Sara Gruen, nem o filme baseado nele –, e então Jacob vira um andarilho, um hobo, como nas canções de Woody Guthrie sobre a Grande Depressão, e, como tantos hobos das canções folk, vai viajar clandestino num trem de carga, para só depois descobrir que aquele é o trem do famoso circo dos Irmãos Benzini.
Bem. Apresentei até aqui muitos detalhes do início da história. Vamos dar uma acelerada:
O circo dos Irmãos Benzini não pertencia mais a eles. Naquele ano de 1931, pertencia a August (Christoph Waltz, na foto abaixo), um homem apavorantemente fascinante, cruelmente pavoroso, pavorosamente cruel. August é um dono de circo competente: sabe criar espetáculos, sabe cativar as multidões empobrecidas. Mas é um ser humano abjeto, capaz de todo tipo de prepotência, desmando, violência, para fazer com que seu negócio permaneça de pé.
E, além de tudo, August é casado com uma das principais atrações do circo, a loura e bela Marlena (o papel de Reese Withersopon).
O jovem Jacob, recém chegado àquele mundo desconhecido do circo, àquela ditadura particular do tirano August, vai se apaixonar por Marlena.
Para o cinema americano, os vilões são os bancos, as grandes corporações
É absolutamente emblemático que a propriedade dos trabalhadores, dos extremamente hard working Jankowski, seja tirada deles pelo banco.
Em dez de cada dez filmes americanos com preocupação de mostrar questões sociais, o banco é o grande vilão.
Tão vilão quanto o banco, só o grande proprietário (o western, em especial, mostra muito bem isso), que depois, com o desenvolvimento do país e do capitalismo, virou a grande corporação, esta abominação agora dominada e regida pelos bancos.
Para o cinema americano, os vários tipos de cinema americano, capitalismo bom é o praticado pelos pequenos empreendedores – sejam eles fazendeiros, industriais, comerciantes.
Quando a empresa se agiganta, vira corporação, e, pior ainda, quando os destinos das corporações são decididos em Wall Street, pelos magnatas das finanças, que nunca enfrentaram um trabalho duro, tudo vai mal.
Para o cinema americano, lucrar, tudo bem – esse, afinal, é o princípio básico do capitalismo, com perfeita bênção de todas as denominações protestantes dos imigrantes que construíram o país. Trabalhar duro, juntar dinheiro, ter lucro, tudo bem. Agora, empresa que fica gigantesca, e lucra demais, espezinha as pessoas pelo lucro maior possível, aí extrapola – vira um horror, o pior dos mundos.
Não acho que essa seja uma visão errada de mundo. Muito ao contrário.
Um ator perfeito para o papel do patrão tirânico
Disse lá em cima que o nome do diretor, Francis Lawrence, não me diz nada. De fato, o nome não fez cair qualquer ficha na minha cabeça. Mas vejo que ele foi o diretor de Eu Sou a Lenda, filme de ficção científica sobre um mundo pós-apocalipse. Antes, havia dirigido clips musicais. Domina o ofício, é artesão competente.
Para fazer o papel do mau patrão, do patrão competente enquanto empresário mas egocêntrico, tirânico, violento, capaz de todo tipo de atrocidade, que vive bem enquanto seus animais comem carne estragada e seus empregados não recebem pagamento, não poderia haver escolha melhor do que Christoph Waltz, o ator austríaco que virou celebridade internacional ao interpretar o nazista crudelíssimo em Bastardos Inglórios, de Quentin Tarantino.
Christoph Waltz tem aquela postura, aquele jeito, aquele aplomb de ator que se dá bem em papéis que exigem voz alta, berros, gestos amplos, largos. Aquele tipo do treino do Actors Studio quando bastante exagerado – como os papéis mais exagerados de Marlon Brando, Al Pacino, Robert De Niro. O inverso de, digamos, um Colin Firth, um Liam Neeson, um Stephen Rea, que atuam com discrição, suavidade.
E, para o papel do jovem Jacob, os produtores escolheram esse Robert Pattinson, garotão inglês que em 2011, ano do lançamento de Água para Elefantes, estava com apenas 25 anos de idade, mas já tinha no currículo a trilogia Crepúsculo, aquela baseada nos romances de Stephenie Meyer envolvendo vampiros, que tem fascinado adolescentes no mundo inteiro e virou um dos maiores sucessos de bilheteria dos últimos tempos.
Robert Pattinson tem boa pinta, ótima pinta, e não é mau ator. Deve ser por causa dele, muito mais do que por causa de Reese Witherspoon, que este Água para Elefantes, que custou US$ 38 milhões (não muito, para uma produção de grande estúdio), tenha rendido US$ 117 milhões até março de 2012 – metade nos Estados Unidos e Canadá, a outra metade no resto do mundo.
Talvez pela presença desse jovem galã que tem fascinado os adolescentes, talvez por retratar o mundo do circo, aquela coisa que nos faz recordar da infância, o fato é que alguns momentos do filme têm um tom de ingenuidade – algo assim parecido com a pintura naïf. Imagino que este filme esteja agradando às platéias adolescentes.
Um acréscimo de última hora: Rosie, a elefanta, a estrela maior do filme
Pouco depois que publiquei este texto, tive minha orelha puxada pelo colega – que ouso considerar meu amigo – Rato, autor do excelente O Rato Cinéfilo. Bem-humorado como sempre, ele escreveu: “A única coisa que está faltando no seu comentário, amigo Sérgio, é o destaque (merecido, merecidissimo) para a grande estrela do filme. Pois é, a grande, enormissima Rose. Sem ela o interesse deste filmezinho seria bem menor.”
Antes dele, minha amiga Jussara já havia escrito que deixou de querer ver o filme ao saber que maltrataram a elefanta que faz parte da história. (Não acredito que o animal tenha sido maltratado.)
Falei de muita coisa – menos daquela que talvez seja a personagem mais fascinante de todo o filme, a Rosie.
Rosie é uma figuraça.
Surge quando o filme está aí com uns 40, talvez 50 minutos. August usa todo o dinheiro que ainda tem para comprá-la, com a idéia de transformá-la na principal atração do circo. O sujeito mal-encarado que a vende para o circo dos Irmãos Benzini adverte, ao entregar para os novos proprietários o instigador (seria esta a palavra? esqueci), a ferramenta de metal usada para espetar Rosie e fazê-la obedecer às ordens: – “Nunca vi animal tão estúpido”.
Várias seqüências mais tarde, há um momento delicioso. Rosie está amarrada por uma corda presa a uma estaca encravada no chão. Quer comer alguma coisa que está além do permitido pela corda. Vai até a estaca, retira-a do chão com a tromba, caminha até onde quer, pega o que deseja, e depois volta, mansamente, até onde estava e crava de novo a estaca no chão.
Rosie é talvez o animal mais inteligente naquele circo de belezas e horrores.
Sofrerá barbaramente com a crueldade de August. Mas Rosie, com bom elefante, não se esquece nunca, e a vingança virá pesada.
Um sucesso, afinal, merecido
Pois então o filme foi um grande sucesso na bilheteria. Legal. Merecido, já que é um filme bem feito, correto – bastante correto em termos de realização, quase bastante correto em termos do que tem a dizer.
O “quase”, aí, é minha opinião personalíssima, e tem a ver com a coisa de o velho Jacob achar que a vida só tem sentido para quem estiver trabalhando, tendo uma posição no mundo produtivo. Personalissimamente, acho esse tipo de visão um horror. Aprendi muito cedo que temos o direito inalienável à preguiça, como dizia Georges Moustaki, e que não devemos perder a vida no ato de ganhá-la, como John Lennon intuitivamente já sabia ao compor “Girl”, de Rubber Soul, quando tinha apenas 35 anos.
Mas isso aí é coisa particular minha.
É um bom filme, este Água para Elefantes. Tirando esse workhalismo que acho babaca, é um filme que defende bons valores.
Anotação em março de 2012
Água para Elefantes/Water for Elephants
De Francis Lawrence, EUA, 2011
Com Robert Pattinson (Jacob jovem), Reese Witherspoon (Marlena), Christoph Waltz (August), Hal Holbrook (Jacob velho), Paul Schneider (Charlie), Jim Norton (Camel), Mark Povinelli (Walter), Richard Brake (Grady), Stephen Monroe Taylor (Wade), Ken Foree (Earl), Scott MacDonald (Blackie)
Roteiro Richard LaGravenese
Baseado no romance de Sara Gruen
Fotografia Rodrigo Prieto
Música James Newton Howard
Produção Fox 2000 Pictures, 3 Arts Entertainment, Flashpoint Entertainment, Crazy Horse Effects. DVD Fox.
Cor, 120 min
***
Eu fiquei animada pra ver esse filme quando li sobre ele pela primeira vez, mas depois soube que maltrataram a elefanta que faz parte da história. Como não encontrei nada desmentindo desisti de ver. Em pleno século XXI maltratar um animal tão inteligente por causa de um filme? Boicoto mesmo, embora isso não signifique nada pra eles.
O galã me parece bem fraco como ator e a Reese Witherspoon não fica atrás. Valeria mesmo pela história e pelo Christoph Waltz. E que fofinho o Hal Holbrook nessa foto. Está um velhinho bem velhinho mesmo.
O elefanté é maltratado na história, Jussara – mas seguramente não foi maltratado durante as filmagens. A fonte que falava em maus tratos durante as filmagens é confiável? Não dá pra acreditar.
O garotão galã e a Reese Witherspoon estão bem dirigidos. Não dão vexame, de jeito nenhum.
Um abraço.
Sérgio
A única coisa que está faltando no seu comentário, amigo Sérgio, é o destaque (merecido, merecidissimo) para a grande estrela do filme. Pois é, a grande, enormissima Rose. Sem ela o interesse deste filmezinho seria bem menor.
Abraço
Hêhê… Você tem toda razão, caríssimo Rato. Falei de tudo, menos do principal! Vou ter que mexer nesse texto, acrescentar ao menos um parágrafo sobre a grande Rose. Obrigado pelo toque!
Sérgio
O filme e o livro são ótimos, é claro que o elefante não foi maltratado de verdade.
Eu li o livro mas não assisti o filme, no livro que comprou a Rose, não foi August e sim o Tio Al (dono do circo) e August detestou a ideia, pois seria uma responsabilidade a mais para ele pois deveria ensaiar um numero para ela, ja para Tio Al ela seria a salvação do circo.
“é claro que o elefante não foi maltratado de verdade.” Tem gente que também acredita em Papai Noel.