Anotação em 2011: Uma maravilha de filme, este Um Novo Caminho/Le Dernier Pour la Route, dirigido por Philippe Godeau, um nome para mim desconhecido. Um filme duríssimo, pesadíssimo, como o tema que aborda, no qual vai fundo: o alcoolismo.
Duríssimo, pesadíssimo, sério, maduro, extraordinariamente bem realizado.
É um daqueles filmes em que todo o elenco – desde o protagonista, François Cluzet, até os atores que fazem papéis bem pequenos, secundários – está perfeitos. É um dos trabalhos de direção de atores mais impressionantes que vi nos últimos tempos.
É brilhante desde a abertura – diversas sequências sem uma palavra sequer. O primeiro diálogo só vai surgir quando já se passaram mais de cinco minutos, talvez chegando a dez – uma abertura de puro cinema, imagens, belas imagens em movimento.
Um homem – o personagem interpretado por Cluzet – se levanta da cama, já inteiramente vestido. Pega uma mala já pronta. A mulher deitada na cama está de olhos abertos, mas, quando o homem se aproxima dela, está agora de olhos fechados, fingindo que dorme. O homem sai de casa, é bem de manhãzinha, o dia acaba de nascer; ele entra no bar pertinho de sua casa, bebe uma taça de vinho branco de um gole só, o garçom serve outra taça, ele bebe de um gole só. Toma um trem, um TGV, moderno, luxuoso. Há um folheto à sua frente, ele procura os óculos, a caixinha de óculos está vazia. Uma tomada do homem em um táxi. Finalmente ele chega ao que parece um hotel num lugar extremamente bonito, uma região de serra – se o espectador tiver prestado atenção aos créditos iniciais, identificará que é a região de Rhône-Alpes, porque o filme tem o apoio da Région Rhône-Alpes. (Os filmes franceses, todos, ou quase todos, costumam trazer nos créditos o apoio da região administrativa em que foram filmados; Rhône-Alpes, como o nome indica, fica no Leste francês, mais próximo da fronteira com a Itália e a Suíça do que de Paris.)
Parece um hotel, especialmente agradável, numa região serrana de extraordinária beleza, o lugar a que finalmente chega aquele homem vindo de Paris – mas, na recepção, em vez de simplesmente preencher uma ficha e pegar a chave de seu quarto, ele tem que deixar com um funcionário todos os seus pertences pessoais. É uma clínica de recuperação de viciados, e as regras são rígidas.
O protagonista e o espectador se submetem ao tratamento de desintoxicação
Ao longo de todo o filme que se inicia com essas sequências brilhantes, sem uma palavra sequer, o espectador vai acompanhar o tratamento de desintoxicação a que o personagem central, Hervé, vai se submeter.
A rigor, o espectador vai, ele também, se submeter ao tratamento.
Os pacientes da clínica são reunidos em grupos – o filme vai se concentrar, é claro, apenas no grupo para o qual Hervé é designado. Quase todas as atividades são coletivas, com a presença do grupo todo. São diversas sessões de terapia em grupo por dia, com vários profissionais. Todos os profissionais que trabalham na clínica – a psicóloga Carol (Marilyne Canto), os terapeutas, o psiquiatra – são, eles próprios, alcoólatras, já que os alcoólatras que não bebem mais se dizem alcoólatras para sempre, não importa quantos anos faça que não bebam mais. A psicóloga Carol, por exemplo, não bebe há nove anos.
São diversas sessões de terapia por dia, os almoços e jantares são obrigatoriamente comunitários, cada grupo ocupando uma única mesa, e até nos períodos de tempo livre o grupo tem que estar junto.
No primeiro dia, Hervé assiste a tudo calado, com uma expressão não de vergonha, repulsa, desconforto profundo diante de tudo aquilo, mas de alheamento. Como se não acreditasse que tinha ido parar naquele lugar; ou como se não estivesse na verdade compreendendo o que se passava à sua volta.
Na noite do primeiro para o segundo dia, tem sonhos, revê seu passado de alcoólatra. Em diversas outras situações, reverá imagens de si mesmo bêbado – nesses flashbacks, o espectador conhecerá situações de Hervé enchendo a cara.
No segundo dia, tenta dizer que foi um engano, que na verdade não pode se ausentar de seu trabalho, que os colegas da agência que chefia não conseguirão tocar as coisas sem ele – quer sair dali, voltar para Paris. Simplesmente não lhe dão ouvidos.
Personagens ricos, interpretações excelentes
Vamos conhecendo um pouco dos colegas de grupo de Hervé. São pessoas de meia-idade, entre os 40 e os 50 e tantos anos. Há, por exemplo, Hélène (Raphaëline Goupilleau), que ainda está na fase da negação – não, não é alcoólatra, tanto que jamais bebia antes das 5 da tarde, embora admita que olhava várias vezes o relógio, para ver o quanto faltava para chegar as 5 da tarde, a hora do primeiro uísque. Só a atuação dessa atriz Raphaëline Goupilleau durante uma sessão de terapia em que o grupo discute seus problemas já valeria o filme.
Hervé divide o quarto com Pierre (Michel Vuillermoz, outra atuação excepcional, na foto abaixo com François Cluzet). Pierre é inconstante; há momentos em que está muito bem humorado, faz piadas; em outros, chega perto da depressão. É inteligente, vivo – mas sua saúde física está abalada pelos anos de álcool, o fígado vai mal. Estabelece-se uma amizade entre Hervé e Pierre – embora às vezes os dois se estranhem, um se irrite com o outro.
Depois de alguns dias da internação de Hervé, chega ao grupo, de volta, uma garotinha jovem demais – havia ficado na clínica um período, havia saído no dia em que Hervé chegara, estava agora de volta. Chama-se Magali, tem apenas 23 anos. De cara, estabelece-se uma relação conflituosa entre ela e Hervé. Ele faz diversas perguntas a ela, ela pergunta para o grupo se aquele cara é policial, e Pierre diz: – “Pior; é jornalista”. Hervé não consegue entender como uma pessoa tão jovem já pode ter bebido o suficiente para ser uma alcoólatra. Ela tem praticamente a idade do filho único dele, Thomas (Arthur Moncla).
Haverá um relacionamento forte, intenso, de atração e repulsa entre Hervé e Magali. Magali é interpretada por Mélanie Thierry (na foto abaixo), uma jovem atriz bela e que demonstra imenso talento. Está em momento de ascensão na França, segundo vejo na Studio Ciné Live. Por este seu papel, levou o César de atriz promissora, meilleur espoir, em 2010.
Aliás, o filme teve quatro outras indicações ao César, o prêmio mais importante do cinema francês – melhor primeiro filme para o diretor Philippe Godeau, melhor ator para François Cluzet, melhor ator coadjuvante para Michel Vuillermoz e melhor roteiro adaptado para Godeau e Agnès de Sacy.
Uma seqüência que mostra claramente o talento do diretor
Lá pelo meio do filme, há uma seqüência esplêndida, extraordinária, que demonstra o imenso talento desse diretor Philippe Godeau. A impressão que se tem é de que ele tem grande experiência de teatro, de direção de atores de teatro.
O grupo está tendo uma aula com o psiquiatra, um senhor já de idade avançada, um ex-alcoólatra, perdão, um alcoólatra sem beber faz muitos anos. O psiquiatra fala dos males do alcoolismo com uma abordagem crua demais, violenta, agressiva. Está explicando em termos médicos, com uma linguagem científica – mas com exemplos que tornam tudo inteligível para qualquer leigo – os efeitos do álcool sobre o sistema nervoso, quando a psicóloga Carol, sem ser percebida pelo grupo, entra na sala e vai até um cômodo próximo, onde conversa com um enfermeiro. O resto do grupo não percebe a entrada dela, com a atenção fixada no que o psiquiatra está dizendo – e o espectador mais desatento também poderá não perceber. Hervé, no entanto, acompanha a movimentação. Carol e o enfermeiro deixam o cômodo contíguo, passam pelo lado da sala onde a aula está sendo dada e saem. Hervé se levanta e vai atrás: ele sabe que Pierre está tendo as 24 horas de liberdade, sabe que aquela movimentação da psicóloga e do enfermeiro tem a ver com isso, e se junta aos dois no carro em que eles vão caçar Pierre em algum bar da cidadezinha mais próxima.
Um brilho de seqüência.
“Make it one for my baby and one more for the road”
Le Dernier Pour la Route.
Demorei para compreender o título original deste grande filme.
Literalmente, é simples: o último para a estrada. O último a entrar na estrada, pensei, vagamente, enquanto o filme começava.
O filme estava já estava depois da metade, já tinha havido essa sequência extraordinária em que Hervé percebe que algo estranho está acontecendo e se junta à psicóloga Carol e ao enfermeiro na caça de Pierre em momento de recaída, quando finalmente me caiu a ficha.
A última antes da estrada. O último gole antes de enfrentar a estrada.
A expressão foi celebrizada no grande clássico “One for My Baby (and one for the road)”, melodia de Harold Arlen, letra de Johnny Mercer. Praticamente todos os grandes a gravaram. Vejo, até com algum espanto, que só no meu iTunes, sem ter que mexer nos discos, há seis diferentes versões da canção – de Billie Holiday, Frank Sinatra, Marlene Dietrich, Rosemary Clooney, Julie London, Diane Reeves.
São 15 para as 3 da manhã, o bar está quase vazio – só estão lá o barman, morto de sono e tédio, doido pra fechar, e o bêbado narrador da história, que, como todo bêbado, não pára de falar, e conta para o barman, pela bilionésima vez, o seu drama, o fim da história do grande amor, e depois pede, pela bilionésima vez, a última rodada: “Make it one for my baby and one more for the road”.
Tudo a ver.
É absolutamente fácil glamourizar a bebida, ou qualquer outro vício. Enfrentar o vício de beber, ou qualquer outro, é extremamente difícil.
Incrível: foi o primeiro filme dirigido por Philippe Godeau
A tag que criei neste site, Vício e Drogas, tem grandes filmes sobre esse tema mais pesado que todos os elefantes da África. Ainda faltam (faltam filmes demais, em todas as tags deste site) importantíssimos. Ainda não está lá o fundamental Farrapo Humano/The Lost Weekend, de Billy Wilder, de 1945, nem Vício Maldito/The Days of Wine and Rose, de Blake Edwards, de 1962.
Mas este filme aqui do francês Philippe Godeau é um dos melhores que já foram feitos sobre o assunto.
Aliás, quem é Philippe Godeau?
O IMDb não tem informações biográficas sobre ele (e, se o IMDb, atualizadérrimo, online, não tem, claro que meus dicionários de cineastas também não terão). Traz apenas que este aqui foi o primeiro filme que ele dirigiu, o que é extraordinário, fantástico, porque ele demonstra a experiência de um veterano. Foi produtor de 25 filmes, mas este aqui é seu único trabalho como diretor. Incroyable, absolument incroyable.
No belo site oficial do filme, Philippe Godeau, que além de produtor é também distribuidor, conta, candidamente, que, após comprar os direitos do livro, procurou diretores que pudessem se interessar em dirigir o filme; como não surgiu ninguém, ele mesmo acabou assumindo a tarefa – e diz, mais candidamente ainda: “Hoje, meu maior desejo é dirigir outro filme”. Será que já bebeu muito na vida, esse rapaz?
Que dirija muitos, muitos filmes.
O roteiro, assinado por ele mesmo e Agnès de Sacy, baseia-se no livro de Hervé Chabalier. Hervé Chabalier é o nome do personagem central – logo, o livro deve ser um relato autobiográfico! Em momento algum se diz que o filme se baseia em uma história real, mas ao que tudo indica esta é, sim, uma história real.
O que só aumenta meu respeito por ele.
Um filme extraordinário, maior.
Um Novo Caminho/Le Dernier Pour la Route
De Philippe Godeau, França, 2009
Com François Cluzet (Hervé), Mélanie Thierry (Magali), Michel Vuillermoz (Pierre), Anne Consigny (Agnès), Eric Naggar (Gunther), Marilyne Canto (Carol), Bernard Campan (Marc), Lionnel Astier (Jean-Marie), Raphaëline Goupilleau (Hélène)
Roteiro Philippe Godeau e Agnès de Sacy
Baseado no livro de Hervé Chabalier
Fotografia Jean-Marc Fabre
Produção StudioCanal, Pan Européenne Production, France 3 Cinéma, Rhône-Alpes Cinéma, Canal+, CinéCinéma. DVD Imovision
Cor, 106 min
****
Eu não vi, mas um filme que tem este seu aval, François Cluzet e os olhos desta menina (que azul é esse, né?) só pode ir direto pra lista obrigatória da Semana Santa. meta: 10 filmes de quinta a domingo. Estou montando a lista. Sugestões?
Mais um filme que não chegou a Portugal.
E, no entanto, cada vez há mais merda e da mais fina que o faz.