Anotação em 2011: Existem filmes que, embora não sejam propriamente grandes, ou sequer muito bons, embora às vezes tenham sido feitos sem muita pretensão, vão adquirindo, com o passar do tempo, um significado maior do que tinham na sua época. Exatamente porque acabam sendo a expressão exata daquela época em que foram feitos. Acho que este é o caso de Sobre Ontem à Noite…, que Edward Zwick fez em 1986.
Esses filmes acabam se juntando aos maiores, aos clássicos, e passam a ser lembrados junto com eles quando pensamos em obras que espelham o significado de uma determinada década.
Sementes da Violência/Blackboard Jungle e Juventude Transviada/Rebel Without a Cause, por exemplo, são o perfeito espelho dos anos 50, a chegada do rock, a geração que contestava tudo o que veio antes.
Blow-Up, Sem Destino/Easy Rider são a cara dos anos 60, assim como Amargo Regresso/Coming Home é a do início dos anos 70. Assim como uma parte do espírito dos anos 70 – o que restava do sonho igualitário, libertário, que todos tivemos, felizmente – está em Novecento e Nós Que Nos Amávamos Tanto.
O Reencontro/The Big Chill e Sobre Ontem à Noite… espelham muito bem os anos 80, ou, mais especificamente, a primeira metade deles. O Reencontro, que Lawrence Kasdan fez em 1983, falava dos anos 80 para a geração que estava então com seus 30 e tantos – exatamente a minha. Assim como os dois citados anteriormente, Novecento de Bernardo Bertolucci e Nós Que Nos Amávamos Tanto de Ettore Scola, O Reencontro fazia um inventário dos sonhos e do que ainda restava deles.
Sobre Ontem à Noite… fala da geração imediatamente posterior, a da Mary, a que estava com 20 e tantos anos na metade dos anos 80. Como era o sexo para eles, como eram os relacionamentos afetivos. Como se dava a guerra entre os homens e as mulheres, 20 anos depois das fundamentais conquistas do feminismo. (Na foto promocional, o quarteto de atores principais: Elizabeth Perkins, Rob Lowe, Demi Moore e James Belushi.)
O breve período em que se pôde trepar sem grilos, sem camisinha
O sexo era uma maravilha – já os relacionamentos afetivos eram complicados, bem complicados.
Trepava-se muito, e com muitos parceiros. Sem culpa, sem grilos, sem camisinha – e não eram só os garotos até os 30 anos; nós, os com mais de 30, e os mais velhos que nós também.
Enquanto via o filme agora, pela primeira vez, fiquei pensando nisso: para muita gente, para boa parte da humanidade, nos países ocidentais, ao menos, foi um período pequeno, aquele, de liberdade sexual plena. Até meados dos anos 60, a virgindade ainda era tabu. Foi entre o advento e o uso universal da pílula, aí pela segunda metade dos anos 60, até a metade dos anos 80, com a disseminação da aids, que se pôde trepar muito, e com muitos parceiros, sem culpa, sem grilos, sem camisinha.
Num dos extras do Blu-ray do filme, uma longa conversa filmada há pouco – aí por volta de 2009, possivelmente – entre o diretor Edward Zwick e o ator principal, Rob Lowe, Zwick fala exatamente disso: “Foi o último filme antes da aids. De uma certa forma, nós celebrávamos a promiscuidade. A idéia de fazer um filme em que a sexualidade vinha antes da intimidade era muito familiar para nós”.
Mulheres e homens no parque, se observando; depois vão beber e transar
O filme se baseia em uma peça de David Mamet de título provocativo: Sexual Perversity in Chicago. A peça demorou para chegar ao cinema; foi escrita em 1974, no auge da liberação sexual pós-hippismo; os direitos foram comprado por um grupo de produtores, a peça deu origem a um roteiro, depois foi revendida para outro grupo de produtores. Quando chegou finalmente a ser produzido, o filme tinha um roteiro – Zwick admite isso com todas as letras no especial – já bem distante do original escrito por Mamet.
A “perversidade” do título original é para, como se dizia, épater les burgeois, para espantar os conservadores. Não há perversidade alguma no filme – mas há bastante sexo, e nesse ponto foi bom que o filme tenha demorado um pouco para ser feito. Nos anos 80, o cinemão comercial americano já podia ser muito, muitíssimo mais ousado do que pouco tempo antes.
A ação começa num parque maravilhoso de Chicago, à beira do lago, no verão. Um grupo de homens está ali para jogar beisebol e ser observado pelas mulheres; um grupo de mulheres está ali para observar os homens; depois vão todos se encontrar nos bares, encher a cara e depois trepar.
Ai, que vida boa, olerê!
As moças discutem sobre as bundas dos homens. Uma delas diz que não trepa com homem que tenha a bunda menor do que a dela.
Ai, que vida boa, olará!
Primeiro, o sexo. Depois começa o relacionamento
No pelotão feminino, Debbie, 20 e poucos anos, trabalha em uma agência de publicidade, e eventualmente transa com o patrão. Divide um apartamento com Joan, 20 e poucos anos, professora primária, uma típica moça pós Betty Friedan: acha que todo homem é porco chauvinista, por princípio, até prova muito convincente em contrário.
No pelotão masculino, Bernie é o exemplo perfeitamente acabado do porco chauvinista. Mulher, para ele, é cavalgadura. Sentimento, emoção, intimidade, nada disso existe ou pode existir entre homem e mulher. Mulher quer dar, homem quer comer – esta é a filosofia básica de Bernie –, e então, se assim está posto, tudo bem, não há problema. Bernie tenta exaustivamente passar essas verdades fundamentais para seu colega e melhor amigo Danny.
Danny e Debbie vão transar – de cara, na primeira noite, assim que se conhecem no Mother, o bar para onde todos ali vão.
E a partir daí vão passar por todos os estágios necessários a uma comédia romântica que retrate os relacionamentos naqueles anos 80, até o advento da aids: a preocupação com o não comprometimento, com o não falar de futuro – falar de casamento, então, nem pensar. Depois vem o morar juntos. Depois vêm as crises, a separação. Posso contar isso porque não é spoiler, são os estágios obrigatórios de qualquer comédia romântica – ou vida real – do período.
Enquanto o relacionamento de Danny e Debbie vai ficando mais próximo, e mais duradouro – imagine: chega a durar mais de três meses! –, a grande amiga dela, Joan, e o grande amigo dele, Bernie, farão tudo para alertá-los de que estão entrando em zona de perigo, que aquilo é besteira, que devem acabar com aquilo antes que seja tarde demais.
Um belo quarteto de jovens atores
Debbie é interpretada por Demi Moore – e, credo em cruz, como era esplendorosamente, faiscantemente linda a jovem Demi Moore, então com 24 aninhos. Foi seu sétimo filme; no ano anterior, havia feito O Primeiro Ano do Resto de Nossas Vidas/St. Elmo’s Fire, dirigida por Joel Schumacher, ao lado de Rob Lowe – não por coincidência, outro filme sobre a hora do crescimento, a hora de enfrentar a noção de que já não se é mais um adolescente, you’re a big girl now, como dizia Coppola, you’re a big girl all the way, como dizia Dylan.
Tive por muito tempo uma birra com Demi Moore, não me lembro mais por quê, e só fui passar a admirá-la quando ela, já bem madura, interpretou majestosamente uma personagem complexa, fascinante, em Um Plano Brilhante/Flawless, de 2007, ao lado de Michael Caine. Como toda birra, era pura besteira minha. Demi Moore é lindíssima, sempre foi, ao longo da vida toda, e fez bons filmes, com boas interpretações. Fez abacaxis também, como Striptease, mas quem não faz?
Sempre foi desinibida, a moça. Não se furtou a fazer as diversas cenas de sexo deste filme, a mostrar o corpo excepcional – belas seqüências, aliás, feitas com delicadeza e tesão, mas longe do mais explícito que chamo de QuasePornô.
Rob Lowe, que interpreta Danny, estava também no seu sétimo filme, tinha 22 anos e um rosto que chegava a lembrar o de Alain Delon.
O papel de Bernie, o porco chauvinista, era perfeito para James Belushi, o mais velho do elenco. Estava com 32 anos, mas este foi apenas seu quarto filme.
Elizabeth Perkins completa – e abrilhanta ainda mais – o quarteto de atores principais, no papel da ressentida Joan, a moça inimiga dos homens. Dos quatro, talvez Elizabeth Perkins seja a atriz mais competente, mais talentosa, mais versátil. Foi seu primeiro filme, mas ela brilha como uma veterana experiente, aos 25 anos de idade.
Erro muitas vezes nas minhas avaliações. Aposto em pessoas novas que depois não têm uma carreira brilhante, e às vezes demoro muito a admirar pessoas que sempre foram brilhantes, ou no mínimo bem boas, como Debra Winger, no primeiro caso, e Demi Moore, no segundo. Mas com Elizabeth Perkins acertei. Quando vi Ele Disse, Ela Disse, de 1991, anotei: “E que atriz fantástica é essa Elizabeth Perkins – embora nunca tenha emplacado como uma das grandes de sua geração”.
A civilização ocidental desmoronando. Mas Danny não está nem aí
A guerra dos sexos. Há diversos diálogos divertidos, engraçados, ao longo do filme, sobre a guerra dos sexos. Anotei um ótimo, num momento em que Danny vai pegar Debbie para saírem, Debbie está acabando de se aprontar, e Danny fica ao lado de Joan, a moça que acha os homens todos uns imbecis:
Joan: – ‘E então, está muito preocupado com a civilização ocidental?”
Danny: – “Não particularmente. Não esta noite.
Joan: – “Está desmoronando. Não percebeu ainda?”
Danny: – “Eu moro em um bairro muito bom.”
Natural e estranho que não tenha visto o filme na sua época
É ao mesmo tempo natural e estranho que não tenha visto Sobre Ontem à Noite… na época em que o filme foi feito. Estranho porque sempre vi muitos filmes, em geral na época do lançamento. E natural porque a) em meados dos anos 80, devo ter achado que aquilo era filminho menor sobre jovens (e, em parte, ele é isso mesmo), e eu estava, como Joan, mais preocupado com o Imanente, a civilização ocidental desmorando e outros bichos; b) trabalhava 12, às vezes mais horas por dia; e c) no resto do tempo, como os personagens do filme, e como todo mundo naquela época, namorava muito.
Dois críticos reclamam que o filme não é fiel à peça
Leonard Maltin deu só 2 estrelas em 4. “Um olhar realista dos problemas enfrentados por um jovem casal que está abandonando o mundo dos solteiros, o maior problema sendo a inabilidade dele de ter um compromisso emocional genuíno com ela. Realista, no entanto, não o faz ser terrivelmente interessante. Expandida (e diluída) versão da peça de um ato de David Mamet.”
Pauline Kael também vai abordar a questão de que o filme é uma versão expandida e diluída da peça, que ela descreve como sendo “sobre bares de solteiros e a hostilidade entre os sexos”. A mestre da crítica americana explica que, na peça, o personagem de Bernie é o mais importante, e Danny é um seguidor passivo dos ensinamentos dele – os ensinamentos de Bernie sendo de que as mulheres estão sempre dispostas a montar uma armadilha para os homens solteiros, felizes, desimpedidos. No filme, diz Dame Pauline, “Danny, interpretado por Rob Lowe, é o personagem principal – e um herói. Ele fica intimidado por seu amigo Bernie (Jim Belushi), mas aprende a confiar em seu amor por Debbie (Demi Moore) e sai do time dos solteiros. E Debbie joga fora as dúvidas que são engedradas por sua colega, a cáustica Joan (Elizabeth Perkins). O filme chega perto de ser um romance convencional sobre os ajustes que os amantes têm que fazer em seu primeiro ano juntos – exceto pelo fato de Bernie está berrando no ouvido do amigo, e Joan fica botando todo mundo para baixo. Os roteiristas retiveram muito dos diálogos de Mamet, mas eles o quebram, e o diretor preenche os intervalos entre as sequências com rock.”
E a grande dama conclui dizendo que, se alguém se sai com honra dessa empreeitada é Elizabeth Perkinbs, que, em sua primeira aparição na tela, traz atraentes subcorrentes para um papel horripilante.
Ebert nota que é um filme em que o espectador se vê
É como eu repito sempre: cada cabeça, uma sentença. Roger Ebert, que acima de tudo ama os filmes, e os vê com o coração, e com o coração aberto, e os interpreta de maneira sempre subjetiva, pessoal, deu cotação máxima, 4 estrelas.
Diz Roger Ebert, o crítico que não procura objetividade:
“Se um dos prazeres de assistir a filmes é ver coisas novas e estranhas na tela, outro prazer, e provavelmente um mais profundo, é experimentar momentos de reconhecimento – momentos em que podemos dizer, sim, é exatamente isso, é exatamente do jeito que deveria ter sido. About Last Night… é um filme cheio de momentos assim. Tem um olho e um ouvido para a forma como vivemos agora, e tem coração, e um senso de humor.”
Uma digressão. Que se pule para o próximo intertítulo
E aqui me permito uma digressão. Alguns meses atrás, um jornalista que tem um site de cinema – e se tem na mais alta conta do mundo – me mandou uma mensagem perguntando se eu toparia que ele reproduzisse trechos destas minhas anotações aqui, tirando fora as colocações pessoais. Sua intenção – me explicou – era tirar dos textos esse viés muito pessoal, muito coloquial que tantos blogs usam; ele entendia que é necessário que o jornalismo sério na internet dispense essas bobagens de visão pessoal, e seja objetivo, maduro.
Não o mandei plantar batatas; apenas respondi que estou velho demais para ter meus textos mexidos por outras pessoas.
Mas me lembrei dele agora ao transcrever a abertura do imenso texto de Ebert sobre o filme. Será que o tal rapaz pediria ao Ebert para mexer nos textos dele e tirar fora as colocações pessoais?
“Será que o amor só é possível com robôs e coisinhas criados com efeitos especiais?”
Ebert termina seu texto assim:
“Por que será que histórias de amor são tão raras nos filmes de Hollywood? Será que perdemos nossa fé no romance? Será que o amor só é possível com robôs e coisinhas criadas pelo departamento de efeitos especiais? As pessoas pararam de conversar? About Last Night… é uma história de amor carinhosa e inteligente, e um dos melhores filmes de 1986.”
Foi um texto, evidententemente, escrito no calor do momento. Fui ao AllMovie, para ver o que dizem do filme os garotos que só o viram recentemente. A conclusão me parece interessante: “Sobre Ontem à Noite… é um pouco plástico, como a década que ele representa, mas, como o plástico, é surpreendentemente duradouro.”
Eu, aqui no meu cantinho, digo que gostei demais de ver este filme que não quis ver na época do lançamento. Gosto muito dos filmes que conseguem ser um bom retrato de sua época.
Sobre Ontem à Noite…/About Last Night…
De Edward Zwick, EUA, 1986
Com Rob Lowe (Danny), Demi Moore (Debbie), James Belushi (Bernie), Elizabeth Perkins (Joan), George DiCenzo (Mr. Favio), Michael Alldredge (Mother Malone), Robin Thomas (Steve), Joe Greco (Gus)
Roteiro Tim Kazurinsky e Denise DeClue
Baseado na peça Sexual Perversity in Chicago, de David Mamet
Música Miles Goodman
Fotografia Andrew Dintenfass
Produção TriStar Pictures, Delphi V Productions. Blue-ray e DVD Sony.
Cor, 113 min
***1/2
Vi este filme na televisão há muitos anos e
gostei muito. Foi o auge da beleza de Demi Moore, esplendorosa e arrebatadora. Depois,
fez péssimas escolhas – ex: Strip tease, como
vc destaca. Rob Lowe, depois desse filme e
de ST. Elmo’s Fire, prometia ser o grande galã do final do século, mas o envolvimento num caso escabroso e más escolhas de papéis
dinamitaram sua carreira. Não sabia que esse
filme já está disponível em DVD, vou comprá-lo. Este blog, além das ótimas críticas, adquiriu um caráter de prestador de serviços
ou, ainda, de utilidade pública…
“Ai, que vida boa, olerê!”
E eu lendo aqui com a garganta insistindo em coçar, pensando em um monte de “e se”. Vi este filme em uma sessão da tarde qualquer e ele me disse muito, embora eu não entendesse o quê (só agora, lendo seu texto, eu percebi que não tinha todas as ferramentas pra traduzi-lo). O que mais gosto neste seu blog é justamente o que há de “pessoal” e íntimo da sua relação com os filmes.