Anotação em 2011: Imensa bobagem divertida, este Sabor da Paixão/Woman on Top é uma globalizadíssima ode à Bahia, à comida baiana, às divindades baianas, às mulheres baianas e à música popular da Bahia – e até do resto do Brasil.
Filme globalizado é isso aí. A produção é americana, a autora do roteiro, Vera Blasi, é brasileira de São Paulo, a diretora, Fina Torres, é venezuelana formada no Institute des Hautes Études Cinematographiques de Paris, quem assina a trilha sonora é um italiano, Luis Bacalov, há umas 20 canções brasileiras da gema, a ação se alterna entre Salvador e San Francisco, duas cidades especialmente fascinantes, e a personagem central, nascida e criada na Bahia, é interpretada por uma espanhola.
Imensa bobagem. A trama parecerá ridícula, tola, bocó para qualquer pessoa um pouco mais sisuda. No entanto, o filme tem um tom tão leve, despretensioso, despreocupado, alegre, de bem com a vida, brincalhão, que é impossível não se divertir com ele. E tem Penélope Cruz, essa gracinha, essa beleza estapafúrdia enchendo a tela o tempo todo – e a diretora Fina Torres, que não é boba nem nada, usa e abusa da beleza da atriz, em magníficos close-ups.
E há poucos momentos em que não se ouve uma bela canção brasileira – e, afinal, a música popular brasileira é nosso melhor produto.
O filme abre ao som de “Aquarela do Brasil”, “Brazil” para o mundo, na gravação de Xavier Cugat, uma melodia que, para muitos americanos, que a conhecem desde os filmes dos anos 40, é indissociável do Brasil clichê – belas praias, sol, mata verdejante, belas e sensuais mulheres. Uma voz em off conta para o espectador a história de nossa heroína, Isabella, num texto extremamente saboroso.
“Era uma vez, na terra da bossa nova…”
A primeira imagem que vemos é a de Penélope Cruz num avião, com um ar de quem está com enjôo. Corta o som de “Brazil”, entra um violãozinho suave, à la bossa nova. A voz em off vai apresentando seu texto gostoso, enquanto uma sucessão de planos curtos, numa ótima montagem, vai mostrando o desenrolar da história, Isabella crescendo – e as tomadas de Salvador são de uma beleza fantástica, uma beleza baiana:
– “Era uma vez… na terra da bossa nova, uma garota chamada Isabella. Quando ela nasceu, os deuses a dotaram de uma beleza extraordinária, mas se esqueceram de um defeitozinho: enjôos. (Usa-se, em inglês, a expressão motion sickness – Isabella terá enjôo especificamente quando em movimento, dentro de carros, ou elevadores.) Os pais dela tentaram de tudo: medicina tradicional (vemos a garotinha Isabella sendo examinada por um médico), religião organizada, religião alternativa… (Vemos Isabella numa praia baiana, no meio de um grupo de candomblé.) Nada funcionou. Até que Iemanjá, a deusa do mar, se apiedou da criança e a compensou com um dom (vemos Isabella criança na cozinha, junto com uma boa e velha baiana vestida a caráter). De constituição muito delicada para brincar com as amigas, Isabella passava os dias com a cozinheira da família. Ela desabrochou numa garota tímida mas linda (e agora vemos Isabella na pele magnífica de Penélope Cruz) que podia derreter os paladares e os corações dos homens. Isabella sonhava em viajar pelo mundo e se tornar uma famosa chef de cozinha. Mas quando seus olhos fitaram o bonito Toninho, todos os seus sonhos voaram embora.”
O bonito Toninho é interpretado por Murilo Benício.
O narrador prossegue a história com a voz em off, enquanto continuamos a ver o que ele narra em rápidos planos.
Isabella e Toninho se casam. Ele tem um restaurante, Recanto de Yemanjá, ela cozinha, o restaurante faz imenso sucesso – mas ela fica trancada na cozinha, trabalhando, enquanto Toninho leva as glórias entre a freguesia.
Com enjôo em veículos em movimento, Isabella tem também aversão a ficar por baixo de Toninho enquanto ele se mexe sobre ela, na cama, e então ela passa a ser quem trepa em cima dele. Um belo dia, três anos depois de ser comido por Isabella, Toninho pula a cerca, come a vizinha – e é flagrado por Isabella, que, com uma fúria de peixeira baiana, simplesmente dá no pé. Dá no pé de verdade: pega um avião, onde a vimos na primeira tomada, e vai para San Francisco, onde mora há tempos uma velha amiga de infância, Mônica.
Isabella resolve apelar aos deuses baianos – e, aí, sai debaixo!
Tudo isso nos é apresentado em rapidíssimos cinco, não mais que dez minutos. Ainda não se tem dez minutos de filmes e Isabella está hospedada na casa de Mônica, numa das 1.800 colinas de San Francisco.
Mônica, naquele momento, está presa. Aprontou uma com um namorado americano, ele prestou queixa, ela foi ver o sol quadrado. Quando sai da prisão o espectador a fica conhecendo: Mônica (interpretada maravilhosamente por Harold Perrineau) é um baita travecão, alto, descolado, desbocado, alegre, a própria alegria de viver.
Apesar de ser uma chef espetacular, Isabella não dá muita sorte ao procurar emprego nos restaurantes de San Francisco. A única coisa que consegue é um emprego de professora de culinária na escola de um restauranteur (interpretado pelo mineiro Jonas Bloch). Mas a saudade danada que sente de Toninho a faz dar um corte no dedo no primeiro dia de aula.
Infeliz da vida, Isabella, por sugestão de Mônica, resolve apelar para uma mãe de santo sua conhecida. Numa ligação internacional San Francisco-Salvador, a mãe de santo conversa com sua amiga baiana do outro lado do Equador – em inglês, naturalmente, já que o filme é uma produção americana. E essa coisa de os brasileiros ficarem falando em inglês acentua o lado bobo da história – mas a gente acaba esquecendo isso e se divertindo.
O fato é que a mãe de santo faz uma reza brabíssima para Yemanjá, para libertar Isabella para todo o sempre de sua paixão por Toninho. No dia seguinte, a moça acorda outra, mais leve, mais feliz, ainda mais bela. Faz um café cujo aroma é tão forte que a gente o vê, num efeito de computação gráfica, saindo da janela do apartamento de Mônica e chegando até a rua, até o apartamento próximo onde mora Cliff (Mark Feuerstein), que se sente absolutamente enfeitiçado.
Estamos aí com uns 20 minutos de filme, e a sequência que virá a seguir é absolutamente deliciosa. A Isabella que sai de casa aquele dia para dar sua segunda aula de culinária baiana, agora livre da tristeza da paixão pelo marido que foi infiel uma vez, é o esplendor. Ao som de um violão brasileiro que toca “Falsa Baiana”, de Geraldo Pereira, a câmara focaliza os pés e o início das pernas de Penélope Cruz-Isabella pós-reza a Yemanjá, atravessando uma daquelas ruas lindas de San Francisco, a baía lá embaixo da colina.
Isabella-Penélope Cruz desfila sua beleza pelas ruas de San Francisco, a cidade mais gay do planeta, e a homenzarada vai seguindo atrás dela, enfeitiçada como os ratos seguindo o flautista de Hamelim. Dezenas deles entram atrás dela no restaurante onde ela dará sua segunda aula de culinária – entre eles o enfeitiçado Cliff, que, vejam só, como isto aqui é uma fantasia mesmo, é um produtor de televisão, e num átimo convidará Isabella para dar aula de culinária baiana num programa ao vivo.
E não é preciso contar mais nada da história – a não ser que, naturalmente, enquanto isso, em Salvador, Toninho sofre feito mendigo na chuva. Seus amigos fiéis – interpretados pela dupla Lázaro Ramos-Wagner Montes – não conseguem consolá-lo. E ele, naturalmente, vai para San Francisco tentar reconquistar Isabella.
Não há como resistir a esse sabor baiano em San Francisco
Então: é uma grande bobagem, certo? Logo depois que vimos o filme, me lembrei de O Sabor da Magia/The Mistress of Spices, uma imensa bobagem que tem uma atriz lindérrima (Aishwarya Rai), passa-se em Oakland, do outro lado da baía de San Francisco, e envolve poderes mágicos e especiarias. E me lembrei também de Só Deus Sabe/Solo Diós Sabe, co-produção México-Brasil, cuja ação se passa na América do Norte e no Brasil, e cuja trama envolve uma bela brasileira (Alice Braga) e divindades afro-brasileiras, baianas. São, os dois citados neste parágrafo, filmes bem, mas bem ruins.
Já este aqui pode ser uma grande bobagem – e é, sem dúvida –, mas é divertido, gostoso, bem-humorado, alegre.
Até porque, se de um lado faz lembrar aqueles dois abacaxis citados logo acima, também faz lembrar outras fantasias envolvendo comida e sexo e magia, como o americano com pitada de França Chocolate e o mexicano Como Água para Chocolate, dois filmes bastante agradáveis.
E daí que a baianíssima Isabella é interpretada por uma espanhola? Problema nenhum, como bem ponderou Mary. Até porque Penélope Cruz é um imenso prazer para os olhos.
Mas dá também para ficar imaginando que, se este filme tivesse sido feito em meados dos anos 70, em vez de em 2000, Sonia Braga teria sido uma perfeitíssima Isabella.
Aliás, há elemengtos neste Sabor da Paixão – a coisa do candomblé, das religiões baianas, as rezas, as pragas, os feitiços – que fazem lembrar Dona Flor e Seus Dois Maridos, de Bruno Barreto,
E há boas piadas no filme. O personagem de Mônica, o travecão (na foto acima) é excelente. E o próprio título original – Woman on Top, mulher no topo, mulher por cima – é uma bem sacada brincadeira com a coisa de Isabella querer estar por cima na transa. Vejo que os exibidores portugueses foram literais: lá o filme se chamou Mulher por Cima. Os franceses mantiveram o título original e acrescentaram outros ingredientes; lá o filme foi exibido como Woman on Top – Amour, Piments et Bossa Nova.
“Só existe como um veículo para a charmosa Cruz”
Dá vontade de ver a opinião de críticos, e de não-brasileiros.
Leonard Maltin dá 2 estrelas em 4, faz breve sinopse e sentencia: “Comédia romântica conto de fadas forçada que só existe como um veículo para a charmosa Cruz.”
O AllMovie diz na apresentação geral que amor sexo e comida se misturam nesta sensual comédia romântica, o primeiro filme americano da diretora venezuelana Fina Torres. Já na crítica, assinada por Jason Clark, o belo site o define como um cruzamento de Como Água para Chocolate e Bossa Nova, “só que sem o charme de qualquer um desses dois filmes ou respeito por romantismo genuíno”. Segundo o crítico, o filme pretendia introduzir a irresistível Penélope Cruz ao público americano, mas, infelizmente, “a natural luminosidade da atriz é apagada pela trama tola, que mistura desajeitadamente realismo mágico com pendor para a culinária”. “Mais ainda, para um filme que usa pimentas como uma analogia para romance quente, é surpreendentemente tépido.” E finaliza assim: “Este foi o primeiro papel principal de Cruz em um filme de língua inglesa, mas, para observar melhor seus talentos, tente ver Tudo Sobre Minha Mãe de Pedro Almodóvar ou então qualquer um de seus filmes espanhóis de maior valor.”
Para lembrar, então: este foi o quarto filme de língua inglesa de Penélope Cruz. Dois anos antes, em 1998, ela havia feito, sob a direção do inglês Stephan Frears, Terra de Paixões/The Hi-Lo Country, em que ainda era coadjuvante. Este aqui foi de fato o primeiro filme falado em inglês em que ela foi a protagonista.
Tá bom. Para mim, é isto: uma imensa bobagem saborosa, divertida, que faz bem para os olhos e os ouvidos. E dá vontade de voltar à Bahia, comer uma boa moqueca de camarão. Sem falar, claro, em Penélope Cruz.
Sabor da Paixão/Woman on Top
De Fina Torres, EUA, 2000
Com Penélope Cruz (Isabella Oliveira), Murilo Benício (Toninho Oliveira), Harold Perrineau Jr. (Monica Jones), Mark Feuerstein (Cliff Lloyd), John de Lancie (Alex Reeves)
Roteiro Vera Blasi
Fotografia Thierry Arbogast
Música Luis Bacalov
Produção Fox Searchlight Pictures. DVD Fox
Cor, 92 min
**
Título em Portugal: Mulher por Cima. Título na França: Woman on Top – Amour, Piments et Bossa Nova
O filme é tão ruim que periga virar Cult.
Interessante como um filme que parece singelo, bobo, romantico barato…pode ser, se olhado por outro ponto de vista, um excelente argumento antropologico! Basta se olhar com um pouco menos de arrogância e uma pitadinha a mais de simplicidade e curiosidade para o o povo brasileiro, para se ver tudo o que mostra o filme, na realidade da vida de uma grande, mas grande parte da população do Brasil; representado com o que tem de doçura na alma e na cultura musical do povo brasileiro. De minha parte, curti de montão!