Anotação em 2010 (postada em janeiro de 2011): Gângsters de Casaca, feito por Henri Verneuil em 1963, é um fascinante filme sobre um grande roubo com algumas características que o diferenciam bastante dos vários outros filmes sobre um grande roubo. Para começar, é repleto de maravilhosas observações sobre as diferenças sociais, o abismo entre os remediados e os muito ricos.
Em segundo lugar, tem diálogos especialmente caprichados, bem construídos, cheios de vibrantes inteligência e ironia.
Uma terceira característica especial é que, ao contrário de outros filmes respeitáveis sobre o mesmo tema, que são densos, pesados – O Segredo das Jóias/The Asphalt Jungle, de John Huston, de 1950, O Grande Golpe/The Killing, de Stanley Kubrick, de 1956, Os Sicilianos/Le Clans de Siciliens, do mesmo Henri Verneuil, de 1968, O Círculo Vermelho, de Jean-Pierre Melville, de 1970 –, este aqui não se leva muito a sério, nem leva muito a sério seus próprios personagens. Tem um tom sutil de humor, de gozação, de escracho.
Nesse sentido, ele se aproxima de Topkapi, que Jules Dassin fez em 1964, e da trilogia de Steven Soderbergh a partir da refilmagem de Onze Homens e um Segredo/Ocean’s Eleven, de 2001.
E, finalmente, uma quarta característica: toda a seqüência final é extraordinária – um brilho raro, uma sacada tão boa, tão marcante, que me lembrava muito bem dela mesmo tendo visto o filme só no distantíssimo ano de 1964, aos 14 anos.
É verdade que não me lembrava de mais nada da trama – lembrava, claro, que era com a dupla Jean Gabin e Alain Delon, o grande astro veterano e a jovem estrela então em ascensão meteórica. E lembrava da seqüência final, nitidamente.
É claro, é mais que óbvio que não vou contar o que acontece na seqüência final. Mas é preciso dizer (e isso não estraga prazer algum) que é um brilho.
Um tipo mal humorado, cara amarrada, que não quer saber de viver em paz
Quando a ação começa, o personagem interpretado por Jean Gabin está descendo de um táxi diante da Gare du Nord, em Paris. No trem, cara amarrada, de muito poucos amigos, ouve conversas de pessoas comuns, simples, classe média média, que comentam sobre suas férias em cidades francesas. Um homem se destaca para dizer que, nas suas férias, viajou de barco para Grécia. Aos que o vêem como um felizardo, um extravagante sujeito mais rico, ele conta que tudo ficou em 80 mil francos, e o total podia ser pago em duas vezes. Ao que o personagem cara amarrada de Jean Gabin diz para seus botões:
– “Férias a crédito. Isso é novidade. Uma viagem pelo mundo em uma semana, e depois, na volta, economize para pagar.”
Surge um novo personagem na conversa atrás dele, dizendo que trabalha por conta própria, não tem patrão, tem liberdade, e ele volta a comentar com os botões:
– “Liberdade com 60 mil francos por mês? Não é para mim.”
Nosso herói – daí a pouco veremos que se chama Charles – desce do trem em Sarcelles, e se surpreende com o que vê: prédios, prédios e mais prédios. Charles continua a conversar consigo mesmo:
– “E pensar que comprei a casa aqui por causa das árvores, dos jardins. Chamavam isso aqui de bosque. O bosque virou Nova York.”
É aí que começam os créditos iniciais, ao som de uma música de ritmo quente, um jazz à base de instrumentos de sopro que pontuará toda a narrativa. A trilha sonora é de Michel Magne; não conheço o autor, mas sua trilha é um elemento muito importante no filme de Verneuil – acentua o tempo todo o clima de suspense, de tensão.
Charles tem dificuldade para achar sua casa, e a essa altura o espectador já percebeu que ele está voltando de uma temporada na prisão. Sim, ele esteve preso por cinco anos.
O reencontro de Charles com sua mulher, Ginette (Viviane Romance) é chocantemente gelado, mais gelado que a Sibéria. Não se beijam, não se abraçam, não dão um sorriso um para o outro, não fazem um gesto de carinho. Algum tempo depois de retornar ao lar, nada doce lar, o ex-presidiário Charles ouvirá de sua esposa a proposta de vender aquela casa, mudar-se para o litoral do Mediterrâneo, comprar um bar, viver em paz.
Charles desdenha a perspectiva de vida simples e em paz. Pensa em um novo golpe. Um comparsa de velhos golpes apresenta a ele um plano de fazer um grande assalto a um cassino em Cannes – mas ele próprio, o comparsa, não vai participar; está velho e doente. Charles já tem em mente quem convidar para o grande assalto.
Um jovem que só pensa em luxo e riqueza
E em seguida o espectador fica conhecendo Francis, o personagem de Alain Delon. Tem 27 anos, e não quer saber de trabalhar; esteve preso por dois anos por assalto a um posto de gasolina – foi na prisão que ele e Charles se conheceram. É daquele tipo que quer todas as benesses da riqueza sem ter que trabalhar para obtê-las. Quando a mãe dá um bronca nele, por não se coçar e viver ainda do dinheiro do pai, Francis retruca que o que tem – um apartamentinho pequeno, pobre, dando vista para uma vizinhança pobre – é muito ruim e muito pouco.
Charles envolverá no seu plano não apenas Francis, mas também o cunhado dele, marido de sua irmã, Louis (Maurice Biraud). Louis é um cidadão honesto, tem uma pequena oficina mecânica, mas aceita participar por amizade ao cunhado.
O plano de Charles não é muito complicado. Exige um capital de giro razoável, mas o velho ladrão tem suas economias, e resolve investi-las no golpe definitivo, que os deixará ricos para o resto da vida. Seu amigo havia dado a ele as dicas todas de como entrar no cofre-forte do cassino Palm Beach, em Cannes. Francis vai na frente. Ficará hospedado em um hotel ao lado do cassino, se passará por um sujeito rico distribuindo boas gorjetas a todos. Sua primeira missão é tornar-se íntimo de alguém do show que se apresenta no restaurante-boate do cassino, para garantir acesso fácil aos bastidores, à área dos camarins, de onde, mais tarde, na hora do golpe, ele terá acesso ao teto da construção e dali ao elevador que semanalmente conduz o dono do Palm Beach e seus contadores ao cofre-forte.
Uma semana depois, o próprio Charles, fantasiado de ricaço e a bordo de um Rolls-Royce, chegará a Cannes com Louis como seu motorista.
Uma atriz bonitinha e fraquinha, chamada Rita Cadillac!
A semana que Francis passa em Cannes, antes do grande assalto, tem algumas das melhores coisas do filme – é onde a história vai realçar a diferença entre as classes sociais. Mas é essa semana que inclui também o que achei a parte mais frágil de Gângsters de Casaca – o relacionamento que Francis terá com uma das bailarinas que se apresentarão no restaurante-boate do Palm Beach.
A bailarina é uma moça sueca, chamada Liliane. O roteiro não consegue – na minha opinião, claro – criar um personagem verossímil, e o relacionamento tempestuoso que se cria entre Liliane e Francis me pareceu, e à Mary também, absolutamente incompreensível.
Aqui entra um detalhe interessante. Liliane é interpretada por um atriz – tão fraquinha quanto bonita – chamada Rita Cadillac (na foto acima). Rita Cadillac! Nunca soube da existência de uma atriz francesa com esse nome, até rever Gângsters de Casaca agora. O IMDb informa que ela nasceu – com o nome de Nicole Yasterbelsky – em Paris, em 1936; morreu em 1995, após uma carreira de 14 filmes, entre 1954 e 1985. Além deste filme aqui, o único outro de sua filmografia de que já ouvi falar é o alemão O Barco/Das Boot, de Wolfgang Petersen; aparentemente, ela fez um papel bem pequeno no filme.
A Rita Cadillac brasileira, chacrete, bailarina, cantora, atriz, tema do recente documentário Rita Cadillac – A Lady do Povo, de Toni Venturi, inspirou-se na obscura atriz francesa para criar seu nome artístico! Quer dizer, inspirou-se, não: copiou o nome mesmo!
O sujeito trabalhador não quer saber desse negócio de muito dinheiro
Se o personagem interpretado pela Rita Cadillac francesa é mal construído, com o de Louis, o cunhado de Francis, acontece o contrário. Louis é um trabalhador humilde, classe média média, casado com a irmã do jovem ladrãozinho. Aceita participar do golpe, como já disse, apenas por solidariedade ao cunhado. Após a primeira noite hospedado no hotel chiquérrimo em que se hospeda como motorista do falso ricaço, é flagrado pelo próprio Charles – e pela câmara – arrumando sua cama. Leva um esporro do chefe do golpe. Mais tarde, no dia do assalto, diz a Charles que não vai querer sua parte no dinheiro que vier a ser obtido. A fala que escreveram para o personagem é antológica:
– “Vou fazer o que combinamos, mas não quero minha parte. Compreendi que, se você tem dinheiro, você gasta. E, quando eu gastar, vou querer outra bolada fácil. Francis vai sugerir outro trabalho, e um terceiro… e um dia vou terminar na cadeia, como ele. É por isso que prefiro não tocar no dinheiro. Assim, aprendo a não gostar dele. Sapatos engraxados e entregues no quarto, camas que se arrumam sozinhas… Nunca tive isso antes, e estava tudo bem. Agora parece estranho para mim quando minha mulher me servir toda a refeição em um único prato.”
É fascinante. Ali, em Cannes, o lugar badaladíssimo, cheio de ricos de verdade e um monte de espertalhões atrás do dinheiro deles, há uma pessoa que não quer saber de nada daquilo – Louis, homem simples, modesto, trabalhador honesto.
Eles existem – até mesmo nos filmes. Eles existem. São os Francenildos, as pessoas decentes. A questão é que a maior parte dos filmes não trata deles, trata dos ladrões, dos criminosos.
O ladrãozinho diz para a puta: Estamos no mesmo tipo de trabalho
Em um filme cheio de bons diálogos, há outra seqüência fascinante. Está no mesmo hotel em que Francis se hospeda uma mulher que se passa por uma nobre polonesa, Condessa Doublianoff (Dora Doll). Quando ela aparece no bar do hotel onde Francis vai pedir um uísque, pouco antes do roubo, tanto Francis quanto o espectador já sabem que ela não tem nada de condessa, é puta mesmo, à caça de ricos bobos. Ao ver o jovem bonitão de black tie ao seu lado no bar, tenta o golpe da Condessa Doublianoff. Francis pede ao barman que sirva um uísque para ela e diz, pegando no início da coxa dela:
– “Não se preocupe, querida, estamos no mesmo tipo de trabalho.”
Depois que ele some, ela se vira para o barman e desabafa:
– “Acho que estou ficando velha. Já não consigo diferenciar um cavalheiro de um cafetão.”
O diretor usa e abusa da beleza de seu jovem astro
O personagem Francis tinha 27 anos. Era exatamente a idade que Alain Delon tinha quando o interpretou. Disse lá atrás que ele vinha tendo uma ascensão meteórica – e põe meteórica nisso. Tinha estreado no cinema em 1957; entre 1957 e 1963, o ano de Gângsters de Casaca, estrelou O Sol Por Testemunha/Plein Soleil, de René Clément, Rocco e Seus Irmãos, de Visconti, O Eclipse, de Antonioni, e O Leopardo, de novo de Visconti.
Verneuil não é Antonioni nem Visconti, mas não é bobo. Usa e abusa da beleza de Delon. Faz diversos closes do seu rosto, bota o ator de short ou sem camisa em diversas cenas.
Seis anos depois, o diretor voltaria a juntar o astro veterano com o astro jovem: em 1968, os três fizeram Os Sicilianos/Le Clan des Siciliennes – outro filme sobre um grande roubo.
A opinião de um francês, a opinião de um americano
O Guide des Films de Jean Tulard dá 3 estrelas em 4 para o filme: “Excelente thriller com diálogos de autoria de (Michel) Audiard que reuniu pela primeira vez Gabin e Delon. A direção perfeitamente domada de Henri Vernueil brilha com a seqüência final, inesquecível”.
No AllMovie, o texto assinado por Craig Butler diz que o filme é encharcado de atmosfera, tanto pelos lugares em que se passa quanto pelo período em que foi feito. “Há uma lânguida abordagem do filme, cortesia do diretor Henri Verneuil, que parece dizer: ‘Sim, sim, a trama é interessante, mas não mais do que a maneira com que Alain Delon se aproxima daquela garota na beira da piscina ou a maneira com que Jean Gabin dirige as ações de seu cúmplice.’ Em outras palavras, os personagens são tão intrigantes para Verneuil quanto a trama, e ele não tem medo algum de prolongar cenas para capturar detalhes e nuances que podem não afetar grandemente o desenrolar da história, mas que dão maravilhosamente vida real aos personagens. Claro, com Gabin e Delon à mão, há bastante para se trabalhar. (…) Delon estava no auge de sua beleza física aqui, e ele usa esse apelo impressionante e consegue grande efeito, mais ainda quando ele está vendo seu charme não obter o que esperava. O elenco de apoio é muito bom, e as locações ultra-chiques dos anos 60 são maravilhosas, mesmo em preto-e-branco. O cool jazz de Michael Magne na trilha merece ser notado.”
A música de Michel Magne, os diálogos brilhantes, a seqüência final inesquecível, a beleza de Delon… Hum… Eu tinha anotado tudo isso antes de ir atrás de outras opiniões para registrar aqui. De vez em quando até acho que, se eu tivesse 40 anos menos e fosse completamente doido, poderia me candidatar a um lugar entre os 438 críticos de cinema da Folha.
Gângsters de Casaca/Mélodie en Sous-Sol
De Henri Verneuil, França-Itália, 1963
Com Jean Gabin (Charles), Alain Delon (Francis Verlot), Claude Cerval (o comissário de polícia), Viviane Romance (Ginette), Maurice Biraud (Louis), Henri Virlojeux (Mario), Jean Carmet (o barman), José Luis de Villalonga (Grimp), Rita Cadillac (Liliane)
Adaptação Albert Simonin
Diálogos Michel Audiard
Baseado no romance The Big Grab, de John Trinian
Fotografia Louis Page
Música Michel Magne
Produção Cité Films, Compagnia Cinematografica Mondiale (CCM), Compagnie Internationale de Productions Cinématographiques (CIPRA). DVD CinemaX
P&B, 118 min
R, ***
Título em inglês: Any Number Can Win
Tenho quase a certeza de que já vi êsse filme há trezentos anos! Gostaria de revê-lo pois, pelo seu comentário, deve ser muito bom. Vou tentar alugá-lo. Hoje estou colocando em dia minha leitura nos 50 Anos de Filmes.
Lúcia
Um dos melhores filmes de todos tempo!E dois monstros sagrados do cinema Françês, excelente direção, uma linda música,belo roteiro,maravilhosa fotografia, grandes interpretações!
Assisti a esse filme quando tinha somente 13 ou 14 anos de idade. Sempre o tive na lembrança e, uma das cenas que nunca me saiu da cabeça foi a das malas boiando na piscina no final do filme. Jamais esqueci o título em Português mas havia a dificuldade de encontrar meios para descobrir o título na língua original. Agora, como advento da Internet, tudo se tornou mais fácil e, quando eu me lembro dos títulos dos filmes que assistia quando menino, ataco de Google na esperança de encontrá-los no original. Gostei muito do comentário mas preferi não lê-lo todo para não tirar o brilho deste filme magnífico que ainda espero encontrar em algum site ou locadora (coisa que já está sumindo também). Obrigado
Tenho 66 anos, vi esse filme no cinema há uns 50 e não me esqueço dele (pelo menos do final).
Onde poderia encontrá-lo. Existe em DVD com legendas em portugues?
Inicio de uma nova etapa de minha vida,renasce o amor pelo cinema…..
Hoje conto com 82 anos de idade , e naquela época erá fã de Jean Gabin e outros atores e
atrizes famosas . Gostaria assistir filmes
destes grandes atores , se possível , obrigado
Helio Silva
Sérgio
Sem questionar as inegáveis qualidades de Gangsters de casaca, que vi ontem numa boa cópia da Versátil, ficou-me a sensação do
“déjá vu”. Não sou especialista, mas um velho amante do cinema. Nos anos 50/60 já frequentava os Cines Ipiranga, Marabá, Metro, Art Palácio, Marrocos etc na capital paulista. E, por essas e por outras, é que admiro sua coluna, onde sempre encontro críticas, sempre brilhantes, daqueles filmes que assisti na minha já longínqua mocidade. Atrevo-me, então, a dizer que Segredo das jóias (1950) de John Huston, O grande Golpe (1956) de um Kubrick dando seus primeiros passos, e Rififi (1955) já exploraram o tema com o mesmo talento de Henry Verneuil. Você, seguramente, se lembrará de outros. São todos grandes clássicos do “Cinema Noir” e é bastante difícil escolher o preferido.
Este despretensioso comentário na verdade é para fazer dois agradecimentos. O primeiro, à sua competência, oferecendo em sua coluna, não uma simples sinopse ou resenha dos filmes, mas abordando detalhes e revelando particularidades que a nós, simples espectadores, passariam desapercebidas. Você é como aquele comentarista de futebol que mostra aquilo que o torcedor não capta, e não somente o óbvio, que é a regra. Utilizo muito o Glossário. Nas conversas de boteco – hoje proibidos – saco um fade in, um fade out pra impressionar os amigos de papo e de copo. Funciona (rsrsrs). Obrigado.
O outro agradecimento é à Versátil que tem lançado verdadeiras obras primas no mercado para alegria dos cinéfilos.
Abraço.
25.05.2021
Pô, Deraldo, assim você me deixa metido, presunçoso, bobão…
Hê hê…
Muito obrigado, caríssimo, pelos elogios – que juro que são exagerados…
Sim, também admiro muito o trabalho da Versátil. Só temos que agradecer a eles por nos darem a oportunidade de ver ou rever tantos bons filmes…
Um grande abraço!
Sérgio