Eu Não Tenho Medo / Io Non Ho Paura

3.5 out of 5.0 stars

Eu Não Tenho Medo/Io Non Ho Paura, feito em 2003 por Gabriele Salvatores, Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1992 por Mediterrâneo, é um belo filme, surpreendente, de grande beleza visual – e apavorante. Me deu medo como se fosse um filme de terror dos bons.

Não é propriamente um filme de terror. O mundo, os homens que ele mostra é que são aterrorizantes.

Na verdade – já vou logo adiantando –, Eu Não Tenho Medo é daquele tipo de filme que é melhor a gente ver sem ter lido nada sobre ele. Quanto menos se souber previamente sobre o filme, maior serão o impacto e o prazer de vê-lo.

Isso dito, esclareço que não vou estragar o prazer do espectador que eventualmente vier parar neste texto. Tenho me esforçado para não apresentar spoilers nos meus comentários, e, quando às vezes apresento algum, aviso com antecedência.

Vou relatar o que acontece bem no início da narrativa. Só o que acontece bem no início.

As primeiras seqüências são num belíssimo campo, numa plantação de trigo. Plantação de trigo é uma coisa absolutamente bela – aquele mundo de caules dourados balançando ao sabor do vento, como os pelos de uma deusa tremendo ao vento ateu, para lembrar a imagem extraordinária de Caetano.

Planos gerais de um dourado campo de trigo, sob o céu perfeitamente azul. No meio do trigal corre um bando de crianças, enquanto ouvimos uma bela trilha sonora, uma grande orquestra, violinos à frente.

Não se diz onde fica aquele lugar. Pelo que veremos depois – é verão, um verão quente, abafado, as pessoas suam muito, dentro das poucas casas do vilarejo rural os ventiladores estão sempre ligados, dia ou noite –, deve ser Sul da Itália. Só nos créditos finais será dito que o filme foi feito na Província de Potenza. Confiro no mapa: é Sul, sim, bem no Sul, e longe do mar, bem no centro da base do cano da bota.

São umas seis crianças correndo, brincando nos campos do Senhor.

Chegam a uma casa abandonada, um tanto em ruínas. O último a chegar é Michele (Giuseppe Cristiano); chega depois de todos porque parou para ajudar a irmãzinha menor, Maria (Giulia Matturo, na foto abaixo), que quebrou os óculos. Maria tem aí uns seis anos. Michele, assim como o resto do grupo, tem uns dez.

O grupo discute quem vai pagar a prenda. Michele diz que não tem culpa por ter chegado por último – parou para ajudar a irmãzinha. O líder do grupo indica a garota gordinha – as garotas gordinhas são favoritas na hora do bullying. Ela reclama que é sempre ela, pede uma votação. É feita a votação, a garotinha gorda é a escolhida com cinco votos. Terá que pagar a prenda. A prenda é mostrar. Maria, a irmãzinha, pergunta a Michele – “Mostrar o quê?”

A garotinha sabe o que terá que mostrar. Começa, lentamente, embaraçada, envergonha, a desabotoar o cinto.

Michele intervém, grita que pagará a prenda – afinal, ele foi o último a chegar.

Um garoto que de cara mostra que é bom caráter

Com menos de cinco minutos de filme, Michele já deu duas demonstrações do seu caráter: para ajudar a irmã, ficou para trás na corrida; para impedir que a pobre amiguinha fosse submetida ao vexame de tirar o short e a calcinha, topa ser ele a pagar a prenda – que, decide o líder, será andar num andaime no teto da casa em ruínas.

Michele anda na corda bamba, conforme o determinado. Para afastar o medo de cair, diz para si mesmo algumas palavras de encorajamento.

Daí a pouco todos vão embora, de volta para o minúsculo vilarejo em que vivem. Já tinham andado um tanto quando a pequena Maria dá pela falta dos óculos, que Michele havia guardado no seu bolso. Michele diz a ela para esperar ali, e volta até a casa à procura dos óculos.

Ao encontrar os óculos, percebe que há algo no chão, uma espécie de portão de lata. Levanta suavemente um pedacinho daquela coisa de lona – e vê que embaixo dela há um grande buraco, fundo, largo. A lata tinha sido colocada ali para tapar o buraco.

Está escuro lá embaixo. Mas, como Michele afasta um pedaço da lata, a claridade ilumina o buraco. E ele vê, assim como o espectador, um cobertor, e, fora do cobertor, o pé de uma pessoa.

Fecha cuidadosamente o buraco, deixa a lata como estava antes, e corre para encontrar a irmã, e de lá de volta à casa.

Estamos com dez minutos de filme quando Michele e o espectador vêem que dentro do buraco há o pé de uma pessoa.

Gabriele Salvatores consegue criar um clima apavorante, um senso de suspense que é raro

A curiosidade, naturalmente, fará com que Michele volte até o buraco, nos dias seguintes.

Na segunda vez em que ele olha o que há lá dentro do buraco, ele – assim como o espectador – leva um susto tremendo.

Eu tremi de medo, uma onda fria na espinha – coisa rara, porque não costumo tremer, ter frio na espinha, diante de filmes de terror.

Gabriele Salvatores, que ganhou o Oscar por um filme pacifista, em que os soldados invasores ficam amigos de infância do povo do lugar invadido, consegue criar um clima apavorante, um senso de suspense que é raro.

Onde, diabos, essa história vai dar? (Só depois de 47 minutos o filme abre o jogo.)

Não consegui deixar de ficar pensando: mas cazzo, onde essa história vai levar?

Será uma história sobre a crueldade que existe também nas crianças, esses anjinhos? Será algo como aquele espanhol apavorante, Os Meninos/Quien Puede Matar a um Niño?, de Narciso Ibañez, que vi quando era adolescente e ficou marcado na minha memória? Será uma espécie de Os Inocentes, desconcertante terror inglês de Jack Clayton, de 1961, com uma sensacional interpretação de Deborah Kerr?

É muito bom ver filmes pela primeira vez sem saber absolutamente nada sobre eles. Sobre este Eu Não Tenho Medo, não sabia de nada, a não ser que é de Gabriele Salvatores; ele me foi indicado por uma moça da locadora; resolvi experimentar. Naturalmente, não li a sinopse na contracapa do DVD – jamais leio sinopse antes de ver um filme.

Sempre acho que estas minhas anotações aqui podem eventualmente ser úteis para quem já viu os filmes e quer checar a opinião de outra pessoa – muito mais do que para quem ainda não viu.

Lá pelas tantas, começam a surgir indícios, mas só aos exatos 47 minutos dos 108 de duração do filme ele diz exatamente a que veio. Exatos 47 minutos. Não que eu tenha ficado cronometrando – é que no Blu-ray é fácil ver a cronometragem, e aí anotei o número.

O diretor abusa da beleza de Aitana Sánchez-Gijón – e aí comete pecadilhos

Eu Não Tenho Medo é um belo filme. É quase um grande filme. Uns pequenos defeitinhos, na minha opinião, impedem que seja de fato uma obra-prima.

Há falhas nas interpretações – pelo menos na minha opinião. É demais exigir que um elenco de garotos, muitos deles provavelmente sem experiência anterior, apresente atuações uniformememente maravilhosas. Os garotos não trabalham mal, de jeito algum – mas há vacilos num ou noutro momento.

O garoto que faz Michele, Giuseppe Cristiano, sai-se muito bem. Aqui e ali comete algum pecadilho, coisa pouca, coisa menor.

A garotinha que faz Maria, Giulia Matturo, é uma maravilha, assim como o garoto que faz o Caveira, o líder do grupo de meninos. Esse garoto cujo nome não consegui descobrir é surpreendente: tem cara de mau, de sádico, do Mal em si.

Já os atores adultos não me pareceram bem dirigidos. Achei Dino Abbrescia, que faz Pino, o pai de Michelle, bem ruinzinho. Diego Abatantuono, que faz Sérgio, amigo de Pino, está caricato.

 

Aitana Sánchez-Gijón (na foto acima), a atriz que faz o papel de Anna, a mãe de Michele e Maria, alterna ótimos momentos com outros menos felizes. Essa romana filha de mãe italiana e pai espanhol, ex-presidente da Academia del Cine Español, ilumina a tela com sua beleza resplandescente – mas, talvez exatamente por ser tão bela, tenha levado o diretor Salvatores ao que me pareceu um pequeno equívoco.

É o seguinte: em diversas tomadas, a Anna de Aitana Sánchez-Gijón aparece com vestidos curtos, acima do joelho; em outras, embora com visitas em casa, aparece de lingerie fina. Sob o calor intenso, Anna sua, fica molhada, e a câmara voyeur de Salvatores faz big close-ups de sua pele morena. Para os olhos de espectadores tão voyeurs quanto Salvatores (como eu, por exemplo), é uma festa, mas, para a lógica, me parece um atentado. Não me parece lógico que um maridão italiano do Sul permitisse aquela exibição toda de seu tesouro.

Mas, como eu falei, são minudências, detalhes. É um belo filme.

O cinema já fez trocentos filmes que mostram a realidade vista pelos olhos de uma criança. Este aqui é dos bons, dos muito bons, entre esses tantos.

O trailer do filme diz uma frase perfeita: é a realidade vista pelos olhos de uma criança – que, a partir de então, passará a ver o mundo como um adulto.

Anotação em novembro de 2011

Eu Não Tenho Medo/Io Non Ho Paura

De Gabriele Salvatores, Itália-Espanha-Inglaterra, 2003

Com Giuseppe Cristiano (Michele), Mattia Di Pierro (Filippo), Aitana Sánchez-Gijón (Anna), Dino Abbrescia (Pino), Giulia Matturo (Maria), Adriana Conserva (Barbara), Fabio Tetta (Teschio), Stefano Biase (Salvatore), Fabio Antonacci (Remo), Diego Abatantuono (Sergio)

Roteiro Niccolò Ammaniti e Francesca Marciano

Baseado no livro de Niccolò Ammaniti

Fotografia Italo Petriccione

Música Ezio Bosso e Pepo Scherman

No DVD. Produção Cattleya, Medusa Film, Colorado Film Production, Alquimia Cinema, The Producers Films. DVD Imagem Filmes.

Cor, 108 min

***1/2

8 Comentários para “Eu Não Tenho Medo / Io Non Ho Paura”

  1. Este filme está disponível na minha locadora (disse bem?)pelo que o vou trazer qunado lá for.
    Depois boto aqui qualquer coisa.

  2. Sergio, ótima postagem! Lendo sua crítica estimulante, revi minha própria postagem sobre o filme e aproveitei para remover um spoiler. Percebi que não era nada necessário e diminuía a surpresa. Feliz Ano Novo!

  3. Finalmente vi este filme e confesso que gostei, mas com algumas reservas que aliás o Segio apontou.
    Os actores adultos são mesmo fraquinhos, mas eu gostei do filme no seu conjunto.
    Ah! Não senti medo nenhum, é curioso.

  4. Assisti este filme ontem a noite. Comungo com voce, Sergio, e o José Luiz, gostei do filme e, de fato, a turma adulta tirando a mãe de Michele ( na minha opinião )é bem fraquinha. Quanto ao medo passou longe, só um pequeno susto quando mostra o rosto do menino no buraco pela primeira vez.
    Não sei se foi uma pequena falha,um pequeno vacilo ou uma falha maior , um detalhe que vi
    mas,não falarei agora para não parecer ridículo. Voltarei ao assunto quando e se me
    sentir seguro.

  5. Olá! Filme diferente este, não? Gostei bastante… não senti que as interpretações dos adultos pudessem macular a obra… e é um tanto assustador mesmo aquele garoto no buraco! Mas senti certos pecadinhos, não sei se vai concordar comigo (spoiler) Que mãe é aquela que nem chora ao falar do filho desaparecido há 2 meses? E outra: me surpreendeu o final hollywoodiano – de onde saiu aquele helicóptero da polícia (acho)justamente na hora em que todos saem do esconderijo? Ta bom, talvez se o filme tivesse outro final, poderia ser trágico, aí optaram por esse, pois como o garoto se salvaria por si só naquele fim de mundo? É isso. Abraço (falei até, não?)

  6. Passeando pelo site e revisando alguns filmes cheguei aqui.
    Um ano e um mes depois do comentário da Patricia , ufa ! ! !
    Concordo com ela ( Patricia ) principalmente quanto ao final.
    Aquele helicóptero foi a ” Cavalaria ” .
    Está coberta de razão.
    E, a pequena falha que eu falei,nem foi isso.
    Tem relação com a corda.
    Em um momento ela está num lugar e em outro momento não está mais. Mas, como poderia ?
    Mas esses detalhezinhos não tiram o valor do filme. É como voce diz , um belo filme .
    Um abraço !!

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