Polícia, Adjetivo / Politist, Adjectiv

3.0 out of 5.0 stars

Anotação em 2010: Já lá se vão 20 anos que a ditadura comunista comandada por Nikolai Ceauscescu caiu de podre, mas a Romênia vai mal, bastante mal. Não conseguiu se livrar da atmosfera claustrofóbica, castradora, do estado policial; a burocracia paquidérmica e anti-meritocracia herdada do Estado todo-poderoso emperra o funcionamento das instituições, e a vida dos cidadãos é vigiada constantemente.

Isto é o que diz Polícia, Adjetivo, filme de Corneliu Porumboiu, o mesmo autor do fascinante A Leste de Bucareste. Ou, no mínimo, se não foi essa exatamente a intenção do diretor, é uma das formas pelas quais pode ser visto seu filme.

É um filme em tudo por tudo extraordinário, nas acepções fundamentais da palavra – fora do comum, excepcional, raro, singular, notável. Não é, de forma alguma, um filme fácil. Bem ao contrário. Porumbopiu constrói sua narrativa de uma forma enervante, perturbadora, desagradável mesmo, de uma certa maneira. É como se ele quisesse reproduzir, na forma do filme, o seu conteúdo, o que ele quer mostrar: como é exasperante a vida do cidadão que tenta ser correto e cumprir direito os seus deveres dentro daquele tipo de Estado.

São várias as características básicas com que ele conta sua história. Em primeiro lugar: em geral, a câmara fica absolutamente estática. Segundo: os planos são longos, extremamente longos. As gerações acostumadas aos planos curtinhos, à montagem rápida, à la linguagem da MTV de meados dos anos 80, e de todos os filmes de ação feitos depois disso, seguramente ficarão bastante nervosas com os planos tão longos.

Terceiro: como nos filmes do Dogma 95 dos dinamarqueses, não há música. Ouvimos os ruídos naturais, as vozes – quando há vozes, porque na maior parte das seqüências não se fala nada – e ouvimos o silêncio. Só.

Quarto: não há close-ups de nada, de ninguém. Jamais vemos de perto o rosto dos atores, ou qualquer objeto. São sempre tomadas amplas – planos gerais, ou no máximo de conjunto. Há, que eu tenha reparado, apenas um plano entre o de conjunto e o americano, uma longa tomada sem cortes do jantar do protagonista e sua mulher.

Mas minto: em duas seqüências, bem no final do filme, no ápice do drama, haverá dois close-ups. Dois, apenas, para realçar a importância do que está sendo mostrado, depois de toda uma narrativa em que a câmara está mais longe das pessoas e dos objetos. Um, de um dicionário de romeno, na página em que se mostram os significados da palavra romena equivalente à nossa “policial”; e outro, de um quadro-negro, onde se desenha o assalto final do estado policialesco à vida de um grupo de cidadãos.

         Um jovem policial honesto, sem provas contra o suspeito

Esta é a trama básica deste filme estranho e fascinante, às vezes exasperante:

Um jovem policial de uma pequena cidade romena, Cristi (Dragos Bucur), é encarregado de fazer a vigilância de um estudante, Victor, que havia sido denunciado como usuário e traficante de droga. Ao longo de dias, Cristi segue os passos de Victor; vê que ele, uma vez por dia, fuma um baseado, junto com uma colega e um amigo, Alex – exatamente o sujeito que fez a denúncia. Mas, fora isso, fora o fato de que Victor fuma o baseado (e junto com o próprio denunciante), Cristi não observa mais nada. Não há qualquer elemento para provar que Victor é traficante. O traficante pode ser um irmão de Victor, ou até um irmão de Alex, o denunciante. Mas de uma coisa Cristi tem certeza: Victor não é traficante.

Quando o filme está ali com dez minutos, Cristi faz uma manobra arriscada: passa por cima de seu chefe e vai falar com o procurador que cuida do caso. Acredita que será mais fácil convencê-lo de seu ponto de vista; sabe muito bem que, se for falar com o chefe – o qual, aliás, anda exigindo uma conversa com ele –, o chefe exigirá que seja feito logo o flagrante, “para resolver nos interrogatórios”.

A velha fórmula de toda polícia incompetente, de todo Estado policial, que todos nós, no mundo inteiro, conhecemos tão bem – certo? Prende-se o suspeito, e resolve-se no interrogatório – num bom interrogatório (segundo o ponto de vista do policial incompetente, do Estado policial), ah, o suspeito confessa, sim, senhor.

Pois então o jovem policial Cristi vai ao procurador, quando o filme está aí com uns dez minutos. Chega a contar para ele que, na sua recentíssima lua-de-mel, esteve em Praga, e lá viu o que acontece em todos os países da Europa, menos na Romênia: consumir droga não é crime, crime é traficar.

O procurador não quer saber: sugere a Cristi que faça o flagrante. Cristi tenta argumentar: se fizer o flagrante, o garoto Victor passará sete anos na cadeia; ele não quer ter esse peso em sua consciência.

O procurador contra-argumenta que não serão sete anos: depois de três anos e meio, o garoto será libertado:

– “Foi você que pôs o baseado na boca dele? É a lei, ponto final.”

E Cristi: – “É uma lei bem ruim.”

– “Cristi, você não tem competência para falar de lei.”

          Um brilho de panfletaço contra o Estado forte, inchado, incompetente

Então é isso: além de fazer um panfletaço firme, forte, violento, contra o Estado policial, contra a burocracia infernal, contra o serviço público que – na falta de promoções por mérito e de demissões por incompetência ou corpo mole – incentiva a letargia dos funcionários, o diretor Corneliu Porumboiu faz uma crítica virulenta à forma como muitos governos tentam combater a praga das drogas. Uma forma que vitimiza o usuário, não derrota o traficante e só serve para inflar a corrupção e a criminalidade.

Não é pouca coisa. De forma alguma. É um brilho.

         Como vingança contra o realismo socialista, a farsa, o fantástico

Dois outros filmes fascinantes feitos em países que emergiram das cinzas após o desmoronamento do império soviético me impressionaram por seu clima anti-naturalista, selvagemente surreal. Em Os 27 Beijos Perdidos, feito em 2000 na Geórgia, a terra natal de Stálin, há um navio que passeia pelas ruas da pequena cidade e pelos campos ao seu redor, um marinheiro que perdeu o mar, um oficial que manda a artilharia disparar seus canhões em direção ao local em que sua mulher o trai com outro homem, um sujeito que amarra rolamentos no pauzão de 27 centímetros e depois não consegue tirá-los de lá e a cidade inteira tem que acudi-lo; e, numa seqüência antológica, um camarada que está comendo uma mulher de pé, encostando-a numa mesa, usa, para ficar mais alto e facilitar o trabalho, dois livrões de Karl Marx sob os pés – livros que em seguida vão pegar fogo. 

Em Casamento Silencioso/Nunta Muta, feito em 2008 na própria Romênia, a narrativa do diretor Horatiu Malaele passeia pelo paranormal, vê fantasmas, bota os atores para atuar como em um teatro farsesco, faz um surrealismo que deixaria Fellini humilhado de inveja.

Esses dois filmes me deixaram com a sensação de que, depois de muitas décadas de realismo socialista, aquela coisa horrorosa imposta pela ditadura comunista para enaltecer a pátria, o patriotismo, o valor do operariado, blábláblá, os diretores Nana Djordjadze e Horatiu Malaele resolveram se vingar, partindo para o realismo fantástico mais absurdo que se pudesse imaginar.

         Como numa repartição, esperando que o funcionário se digne a nos atender

 Já o romeno Corneliu Porumboiu não vai por aí. Com ele, não tem nada de realismo fantástico, de surrealismo. Ele também vai na contramão do didático realismo socialista, e vai também raivosamente – só que vai direção contrária: opta assim por uma espécie de hiper-realismo, de um quase naturalismo. Há momentos do filme em que não acontece absolutamente nada – exatamente como na vida real.

 É extraordinária, chocante, por exemplo, a seqüência em que um exaurido Cristi chega em casa, após um duro dia de trabalho, e sua jovem mulher, Anca (Irina Saulescu), está na ínfima salinha do apartamento ouvindo música no YouTube. Tão jovens, tão recém-casados – e Cristi e Anca parecem distantes um do outro, milhas e milhas de distância, mais ou menos como Ben Braddock e Elaine Robinson – os personagens de Dustin Hoffman e Katharine Ross – na seqüência final de A Primeira Noite de um Homem/The Graduate.

Cristi sequer vai até Anca para dar um beijo de boa noite. Vai para a ínfima cozinha do apartamento, jantar. Plano de conjunto, câmara paradona, estática – Cristi se serve, abre a geladeira, pega uma cerveja, vai comendo, vai bebendo, e vai ouvindo, junto com o espectador, uma canção pop romena tão brega quanto um Waldick Soriano (brega é brega em qualquer lugar do mundo). Cristi pede para Anca baixar o som, mas Anca não ouve o que ele diz, e assim Cristi e o espectador continuam ouvindo a canção brega, enquanto a câmara continua paradona e Cristi continua comendo.

Acaba a canção. Cristi e o espectador respiram aliviados – mas lá vem de novo a música, desde o início: Anca, como alguns doidos (eu, por exemplo), tem a mania de ouvir dez vezes em seguida a mesma canção.

Epa, mas então há um erro aqui: lá mais pra trás tinha sido dito que o filme não tem música.

Não, não é um erro. O filme não tem trilha sonora, música de fundo. Tem uma ou duas canções que tocam lá dentro da história, que são ouvidas pelos personagens, e portanto o espectador ouve também.

Um detalhezinho: a Waldick Soriano romena que inferniza o jantar do pobre Cristi chama-se Mirabela Dauer. Pelo menos isso é o que Anca contará mais tarde para Cristi.

Mas haverá ainda uma outra tomada mais longa e mais exasperante do que essa que descrevi. Será bem para o final da narrativa. Cristi e seu colega Nelu (Ion Stoica) estão na ante-sala do chefe, à espera de que ele os mande entrar. Plano de conjunto, câmara paradona, estática: a secretária do chefe trabalha num computador pré-antigo, com um monitor daqueles de um metro de profundidade, que se usava uns 20 anos atrás, e, ao lado dela, Cristi espera.

A tomada dura uns cinco minutos. Nada acontece, ao longo de uns cinco minutos. Exatamente como se estivéssemos – como todos já estivemos, e ainda vamos estar – numa repartição pública, à espera de que um funcionário finalmente se digne a nos atender.

         Na Romênia assim como no triste Brasil de hoje

Evidentemente, não dá para deixar de falar das proximidades óbvias entre o que filme mostra e o que nós, brasileiros, vivemos. Mal saídos de duas décadas de ditadura militar de direita, em que imperava essa mesma atmosfera claustrofóbica, castradora, do estado policial mostrada em Polícia, Adjetivo, vivemos agora, em 2010, esse mesmo clima de Estado forte – quanto mais forte o Estado, mais frágil o cidadão –, essa mesma coisa da máquina goliática, leviatânica, paquidérmica, em que o servidor público deixa de servir ao público para servir a si próprio, aos seus companheiros mais próximos, ao seu clubinho, ao seu partido político. Nunca antes, em 510 anos de história, nem mesmo durante a ditadura militar, o Estado brasileiro tinha sido tão privatizado pelos interesses de um grupelho, uma casta, uma quadrilha, que se arvora em dona da verdade e do povo e não admite qualquer tipo de crítica ou contestação. Uma quadrilha que usa os instrumentos do Estado para espezinhar os cidadãos, violar seu sigilo, acabar com suas liberdades mais ínfimas.

A grande diferença entre o Brasil do lulo-petismo e os países que viveram sob o jugo do comunismo é que, lá, os cineastas sempre fizeram oposição, enquanto durava a ditadura ou depois – Roman Polanski, Andrzej Wajda, Milos Forman, Ján Kadár & Elmar Klos, Krzysztof Kieslowski, o próprio Eisenstein no final da vida, Nana Djordjadze, Horatiu Malaele, Corneliu Porumoiu.

Cinema, assim como imprensa, é oposição ao Estado forte – o resto é armazém de secos e molhados, é chapa-branca.

Aqui, lambem-se as botas do idiota que se proclamou Pai da Pátria.

Corneliu Porumoiu nasceu em 1975 (credo, no mesmo ano que minha filha!). Tem, portanto, muito chão à frente. Bom para todos nós.

Polícia, Adjetivo/ Politist, Adjectiv

De Corneliu Porumboiu, Romênia, 2009

Com Dragos Bucur (Cristi), Vlad Ivanov (Anghelache), Irina Saulescu (Anca), Ion Stoica (Nelu), Marian Ghenea (procurador), Cosmin Selesi (Costi), George Remes (Vali)

Fotografia Marius Panduru

Produção 43 Km Film. DVD Imovision

Cor, 115 min

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