A Pequena Loja da Rua Principal / Obchod na korze


Nota: ★★★★

Anotação em 2009: A Pequena Loja da Rua Principal é um dos melhores filmes, se não o melhor, da Primavera de Praga – e houve vários belos filmes feitos na Checoslováquia naqueles anos 60, quando o país tentou uma liberalização da rigidez do sistema comunista, um “socialismo de face humana”, até que os tanques de Leonid Brejnev invadiram o país em 1968 para restaurar a “ordem”, a pax soviética.

É um filme belíssimo, tão emocionante, tocante, revisto hoje, tanto tempo depois, quanto foi nos anos 60. É até hoje, me parece, um dos melhores filmes sobre o Holocausto dos judeus pelo nazismo durante a Segunda Guerra Mundial.

É uma maravilhosa história sobre solidariedade entre pessoas de mundos diferentes; e os dois personagens principais, trágicos, miseráveis, abatidos em meio à tormenta, são muitíssimo bem construídos. Ficam na cabeça da gente para sempre a velhinha judia Rozalie Lautman e o pobre carpinteiro Toni Brtko, maravilhosamente interpretados por Jozef Króner e Ida Kaminska – duas criaturas que não conseguem se fazer entender, cujos diálogos são como conversas de surdos, mas que estabelecem um relacionamento profundo, marcante, impressionante.

A história – de autoria de Ladislav Grosman, que assina o roteiro juntamente com a dupla de diretores Ján Kadár e Elmar Klós – realmente é um achado, uma preciosidade. Numa pequenina cidade da Checoslováquia invadida pelos nazistas, às vésperas de 1942, está se procedendo ao que os guardas colaboracionistas chamam de “arianização” dos negócios: as pequenas empresas de propriedade de judeus estão passando a ter um interventor “ariano”, não-judeu. Um dos chefes dessa guarda fascista no lugarejo é Marcus Kolkotsky (Frantisek Zvarík), sujeito em tudo por tudo abjeto, nojento, que já havia no passado sacaneado, em questões de herança, seu concunhado, o carpinteiro Toni Brtko, casado com Evelyna, irmã da mulher dele, Rose (Helena Zvaríková). O casal Kolkostky vai visitar o casal Brtko em sua casa humilde, quase miserável, levando muita comida, bebida e uma notícia que deixa Evelyna – mulherzinha igualmente abjeta, nojenta – bêbada de álcool e de felicidade: Toni Brtko foi nomeado o “arianizador” da loja da rica judia Lautman.

A seqüência desse jantar dos quatro na casa pobre dos Brtko é bastante longa – e extraordinária, sensacional, de uma força acachapante. É extremamente exagerada, a seqüência – é toda em tom de farsa, para salientar, expor visceralmente o caráter daquelas pessoas. Evelyna é como a irmã e o cunhado: só pensa em riqueza, em coisas materiais; é fútil, vazia, vã, uma nulidade, um zero à esquerda. Toni é um pobre coitado, humilde, bronco, simples, mas daquele tipo genuinamente de bem, do bem, incapaz de fazer mal a uma mosca.

         Uma câmara maravilhosa, uma visão brilhante da relação pessoa-Estado 

A câmara dos diretores Kadár e Klos é maravilhosa. Já na seqüência de abertura do filme – um domingo no centrinho daquela pequenina cidade, as pessoas passeando com suas melhores roupas – ela faz belíssimos travellings, pequenos planos-seqüência de arrepiar.

Nessa seqüência comprida do jantar a quatro, a câmara pinta e borda, faz de tudo. Já bastante bêbado – como bebe, o rapaz –, Toni Brtko passa a olhar para os três outros através de seu copo, e as imagens distorcidas da mulher, do cunhado e do concunhado escancaram a podridão do caráter daquelas pessoas.

O que virá depois será a narrativa da interação entre Toni Brtko e a velhinha sra. Lautman – uma interação difícil, quase impossível, de fato um diálogo de surdos. Sabemos, pela época em que o filme se passa, final de 1941, que as coisas vão piorar, só piorar, cada vez mais, e muito.

O filme transborda de humanismo, de simpatia e respeito por aqueles pobres, patéticos, infelizes seres humanos – e de ódio, de desprezo pelo totalitarismo, pelos totalitarismos todos, que são basicamente iguais, venham de onde vierem, coloridos com seja lá que capa ideológica. É tudo nojentamente igual.

Fala-se, no filme, do nazismo – mas é claro, é óbvio, é evidente que qualquer um entendia que se estava falando de invasor, de imperialismo, de estrangeiro mandando em seu país; é óbvio que se estava falando do regime comunista enfiado goela abaixo dos países da Europa Central pelos vencedores da guerra vindos do Leste – os soviéticos.

         Os dirigentes não gostavam dos filmes, mas eles faziam sucesso no Ocidente

O genial Milos Forman, um dos cineastas que surgiram naquela época na Checoslováquia – não por simples coincidência, mais ou menos a mesma época em que na vizinha Polônia surgiam Andrzej Wajda, Roman Polanski, Krzysztof Kieslowski –, diria, num extraordinário depoimento no National Press Club, de Washington, na época em que lançou O Povo Contra Larry Flynt:

“Pertenci a uma geração de diretores checos que foram favorecidos por um instante de abertura” (ele não usou a expressão Primavera de Praga), “que fizeram filmes que foram aprovados no Ocidente, e os dirigentes comunistas detestavam aqueles filmes, mas ao mesmo tempo ficavam absolutamente contentes com o fato de aqueles filmes estarem recebendo elogios no Ocidente. E por isso pudemos continuar fazendo filmes, até que os tanques russos invadiram a Checoslováquia, em 1968, e aí eu fugi para cá.”

O Ocidente se maravilhou, naqueles anos 60, com os filmes dos então jovens diretores poloneses, assim como dos jovens diretores checos. Na Checoslováquia, brilhavam Milos Forman, Vojtech Jasny, Pavel Hobl, Karel Kachyna – e, sobretudo, a dupla Ján Kadár e Elmar Klos.

A Pequena Loja da Rua Principal foi exibido em competição no Festival de Cannes (onde Kanal, de Wajda, de 1957, havia sido mostrado, deixando o mundo extasiado), e os atores Jozef Króner e Ida Kaminska ganharam uma menção especial do júri. E levou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. “Os dirigentes comunistas detestavam aqueles filmes, mas ao mesmo tempo ficavam absolutamente contentes com o fato de aqueles filmes estarem recebendo elogios no Ocidente.”

Foi tão grande a penetração dos filmes da Primavera de Praga no Ocidente que até no distante, longínquo, atrasado Brasil – então vivendo sob a ditadura militar direitista, anticomunista – eles encontraram exibidores. Fui conferir no meu caderno, o segundo caderno onde anotava os filmes que via, e encontrei que, entre 1966 e 1967, na fase menos dura da ditadura militar, vi O Anjo da Morte/Smrt si rika Engelchen, de Kadár e Klos (duas vezes em seguida), A Pequena Loja da Rua Principal, Um Dia, Um Gato, de Vojtech Jasny, Você Tem um Leão em casa?/Mate doma Iva?, de Pavel Hobl, Viva a República/At’zije Republika, de Karel Kachyna, Os Amores de uma Loira, de Milos Forman. É verdade que quase todos eles vimos – meu irmão Geraldo, meu amigo Jorge Teles e eu – no Cine Santa Maria, de Curitiba, que era uma espécie de cineclube, ou seja, não era propriamente circuito comercial. Mas o fato é que eles passaram aqui.

E é muito esquisito pensar que, naquele tempo, éramos todos comunistas, e víamos esses filmes checos – assim como os poloneses que chegavam aqui, e os poucos soviéticos – com a admiração de estarmos vendo obras de arte vindas do mundo novo, da sociedade nova, habitada pelo homem novo, o ser socialista, já vencida a etapa antiga do capitalismo, essa sociedade da competição, da falta de solidariedade, da injustiça social intrínseca ao sistema.

Forman, Kadár & Klos, Wajda, Kieslowski, assim como o próprio Serguei Mikhailovich Eisenstein no filmes derradeiros, estavam procurando brechas na rígida censura para contestar o totalitarismo, a ditadura, a ausência das liberdades, e nós aqui, os basbaques, entendíamos tudo ao contrário!

         Um fugiu, o outro ficou – mas caminhou em praças liberadas

Vejo agora que Jan Kadár, assim como Milos Forman, também escapou do totalitarismo comunista, e passou os últimos anos da sua vida no Império imperialista. Transcrevo o que diz o All Movie:

“Os estudos de Jan Kadar na Escola de Cinema na Bratislava foram interrompidos pelos nazistas, que o fizeram prisioneiro em um campo de trabalho. Depois da guerra Kadar fez um documentário de curta-metragem, Life is Rising from the Ruins, e depois tornou-se um roteirista e assistente de direção na indústria cinematográfica tcheca em Praga. Dirigiu seu primeiro longa, a comédia Katka (também conhecida como Katya), em 1950, e então começou a fazer uma série de filmes co-escritos e co-dirigidos com Elmar Klos, atingindo o máximo em meados dos anos 60 com seu penúltimo filme, o aclamado drama A Pequena Loja da Rua Principal. (Kadar recebeu o crédito sozinho pelo último filme deles, Adrift). Kadar passou a última década de sua vida dos Estados Unidos, onde fez a fantasia The Angel Levine, com Zero Mostel (ironicamente, me permito acrescentar, um dos nomes que constaram da lista negra do caça às bruxas do mcarthismo nos anos 50). Seus últimos filmes foram para a televisão.”

Kadár, nascido na Hungria, em 1918, morreu em 1979, em Los Angeles. Elmar Klos, nascido em 1910 numa cidade do então Império Áustro-Húngaro, mais tarde território da Checoslováquia, morreu em Praga, em 1993. Aparentemente, não abandonou seu país; não buscou refúgio no Império imperialista. Mas, felizmente, viveu o bastante para poder caminhar pelas ruas e praças de Praga liberadas da ditadura comunista.

As outras opiniões

Como a importância deste filme, por todos os motivos, é grande demais, não posso deixar de ver outras opiniões. Leonard Maltin, o autor do guia de filmes mais vendido do mundo, deu 4 estrelas em 4: “Potente drama passado na Checoslováquia durante a Segunda Guerra Mundial, onde uma velha mulher judia perde sua pequena loja de botões, e depende do homem que assume a loja para protegê-la de maiores perseguições. Vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.”

Pauline Kael faz pouco caso do filme, que classifica de “um conto popular apocalíptico”. Reclama que o filme procura mexer com as emoções do espectador, e que os diretores fazem com que o espectador fique o tempo todo muito consciente de que os atores são atores.

O CineBooks’ Motion Picture Guide Review deu 3.5 estrelas em 5, e concluiu assim sua avaliação: “A primeira parte de A Pequena Loja da Rua Principal, contada em estilo cômico, é muito divertida. A relação de Jozef Kroner com Ida Kaminska é genuína e bem tocante. A mudança súbita do filme de comédia para tragédia é toda muito real e funciona bem. A direção é excelente, apesar de alguns poucos momentos lentos. Kroner e Kaminska trabalham juntos magnificamente. Eles manejam as mudanças emocionais drásticas com grande sensibilidade. Este é um trabalho maravilhoso, tocante, que não deve ser perdido. O filme foi mostrado pela primeira vez nos Estados Unidos no Festival de Cinema de Nova York, onde foi aplaudido de pé; foi bem recebido tanto pelo público quanto pelos críticos.”

Em seu Off-Hollywood Movies, o americano Richard Skorman se derrete; dá 5 estrelas, a maior cotação, e escreve: “De tempos em tempos surge um filme que nos permite abrir nossas defesas e sentir ternas emoções profundamente enterradas. A Pequena Loja da Rua Principal é um desses filmes.”

Assino embaixo do que ele diz.

No iMDB, um leitor escreveu: “Faz A Lista de Schindler parecer um filme mediano”. Bem – isso, sim, é um exagero, um absurdo. (Depois dizem que eu é que sou exagerado, adoro um superlativo…) Acho que é como falei lá em cima: É um grande filme. E, ao revê-lo agora, me pareceu um dos melhores filmes sobre o Holocausto – ao lado de A Lista de Schindler e outras obras-primas.

A Pequena Loja da Rua Principal/ Obchod na korze

De Ján Kadár e Elmar Klos, Checoslováquia, 1965

Com Jozef Króner (Toni Brtko), Ida Kaminska (Rozalie Lautman), Hana Slivková (Evelyna Brtková), Martin Hollý (Imro Kuchar), Adám Matejka (Piti Báci), Frantisek Zvarík (Marcus Kolkotsky), Martin Gregor (Jozef Katz), Alojz Kramar (Balko), Helena Zvaríková (Rose)

Roteiro Ladislav Grosman, Ján Kadár e Elmar Klós

Baseado em história de Ladislav Grosman

Música Zdenek Liska

Fotografia Vladimír Novotný

Produção Filmové Studio Barrandoy

P&B, 128 min

R, ****

6 Comentários para “A Pequena Loja da Rua Principal / Obchod na korze”

  1. Très bon le filme,Sourtout lla liberación du sistème par la liberatión Dubcek et les autres membres du Partie Comuniste, J’avais vu cet filme avec autres membres du Partie Comuniste du Araraquara, Jean Hypolite et le professeur Silvio Marcondes Filho(Vivi). Note huite(8,0)

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