Os Jogadores do Fracasso / Shatranj ke Khilari


3.0 out of 5.0 stars

Anotação em 2009: Não é um filme fácil de se ver, de forma alguma, este Os Jogadores do Fracasso, um dos últimos da carreira prestigiosa do grande Satyajit Ray (1921-1992), o maior cineasta indiano do século XX. Muito ao contrário. Mas é poderoso, imponente. Tem toda a marca de um grande diretor.

Tento explicar o que quis dizer com a primeira afirmação. Já não é nada fácil comprender muitas das situações apresentadas em filmes indianos, mesmo quando a ação se passa mais perto de nossos dias, e em ambientes urbanos, porque a gente conhece muito pouco dos valores, dos símbolos, dos signos daquela sociedade. Os Jogadores do Fracasso (o título em inglês, para o mercado internacional, foi The Chess Players, os jogadores de xadrez) se passa em um reino da Índia então colônia britânica, mais propriamente colônia de uma empresa britânica, a East India Company, em 1856. Ah, sim: e o reino em questão sequer é hinduísta, e sim de maioria muçulmana.

E o diretor Satyajit Ray escolheu um tom de fábula, de sátira, para contar sua história passada nesse reino tão distante de nós, geográfica e temporalmente.

Coloca em discussão temas complexos, delicados, difíceis, como o choque cultural, a responsabilidade e a irresponsabilidade dos governantes, a apatia das elites, o alheamento dos nobres, dos ricos, seu distanciamento total da realidade social de um povo e um país submetido ao jugo de uma potência colonialista. E usa, para isso, símbolos, signos, valores, formas de expressão que nós, ocidentais, absolutamente não dominamos, não compreendemos.

         Um monarca inapetente e um colonialista etnocêntrico

O monarca do lugar, cuja capital é a cidade de Lucknow, o marajá, o nababo, o rei, Nawab Wazed Ali Shah (Amjad Khan), é ao mesmo tempo um homem bom e um pobre diabo. Não foi talhado para o papel que lhe deram na sociedade; é absolutamente inapetente para tudo que tem relação com administração, governo, tomada de decisão. É um poeta, um compositor – está no lugar errado, na hora errada. O representante da East India Company e de sua Majestade a Rainha Victoria, o general Outram (interpretado por Richard Attenborough), por sua vez, é um supremacista, um etnocêntrico, um inglês que jamais deveria ter botado a cabeça para fora do clubes dos ricos londrinos de então – não compreende nada que seja diferente de seu mundo, de seus valores, só é capaz de enxergar o mundo a partir de seu próprio umbigo. Tem um desprezo profundo pelo rei com quem tem que negociar.

Os personagens que acabam dominando a fábula contada por Ray, no entanto, são dois nobres, Mirza (Sanjeev Kumar) e Mir (Saeed Jaffrey). Descobriram o xadrez, estão apaixonados pelo jogo de xadrez, jogam loucamente, alucinadamente, o dia inteiro. Bem no início do filme, depois dos créditos iniciais em que há imagens belíssimas em close-up das peças dos jogos e das mãos cheias de anéis dos dois jogadores movendo-as, um narrador com voz em off nos situa no tempo e no espaço, até dizer uma frase assim: “Poderíamos perguntar se eles não trabalham, pois passam todo o dia a jogar. Não, eles não trabalham: são nobres.”

Mirza e Mir dedicam-se tanto ao xadrez (enquanto fumam seus narguilês e comem o que os criados lhes trazem) que um deles é incapaz de perceber que o sobrinho que tenta se esconder debaixo de sua própria cama quando ele aparece de repente no quarto está comendo a sua mulher, e não fugindo dos guardas do rei, explicação besta que apresenta ao ser flagrado.

         Um artista preocupado com as grandes questões morais

Satyajit Ray, um artista profundamente humanista, sempre preocupado com as grandes questões morais – alguns de seus filmes enfocam basicamente a questão da corrupção, do dinheiro sujo, por exemplo – devia certamente estar se referindo à incompetência das elites indianas em lidar com os problemas do país, na época em que o filme foi feito, 1977. Os patéticos personagens de Mirza e Mir seguramente são o espelho de lideranças da Índia da época – mas o que conhecemos da Índia de 1977 para saber a quem ele estava se referindo?

Com essa pergunta, não estou pretendendo de forma alguma questionar a qualidade do filme. Só tento explicitar como é difícil para nós, brasileiros comuns, que conhecemos pouco sobre a Índia, esse país tão absolutamente complexo, compreender a obra de Ray em toda a sua grandeza.

E que grandeza. Que maravilhoso cineasta é esse senhor, que dirige, escreve, dirige a fotografia e ainda compõe a trilha sonora – tudo com maestria.

Ray apresenta longas – e belíssimas – seqüências em que há cantos e danças. É uma tradição do cinema indiano as seqüências de cantos e danças; a Índia, é sempre bom lembrar, é o maior produtor mundial de filmes. Só para dar um exemplo: em 2006, a Índia produziu 930 filmes. Os Estados Unidos, o grande Império, que atrai cineastas do mundo inteiro, é o segundo colocado, com 800 filmes. Entre o segundo e o terceiro colocados há um abismo – o Japão teve 350 produções. O planeta China, onde vive um de cada cinco terráqueos, fez 260 filmes. E a França, que se julga, com todo o direito, o berço do cinema, assim como se julga, sem direito algum, o berço de tudo o que há de bom na civilização, fez 203.

Dos 930 filmes produzidos na Índia em 2006, quantos terão chegado, de alguma forma, ao mercado brasileiro? Não tenho esses números. Mas, se forem 10, já terão sido muitos. Infelizmente, temos pouquíssimo acesso aos filmes do maior produtor de filmes do mundo. E é bom lembrar que esse não é um problema apenas do Brasil; mesmo na civilizadíssima Europa divulga-se relativamente pouco o cinema indiano.

         Pouco divulgado nas salas, Ray chega em DVD

O próprio Ray, o mais importante diretor indiano, é pouco conhecido aqui. De vez em quando uma sala especial, como a Cinemateca, exibe um filme dele. O Telecine Classic, quando existia, antes de virar essa bobagem de Cult, e passava filmes importantes e raros, uma vez exibiu a trilogia de Apu – três filmes realizados por Ray entre 1955 e 1959. Mas é sempre coisa rara – infelizmente, absurdamente.

Mas felizmente existe a maravilha que é o DVD. Foram lançados aqui em 2009 este Os Jogadores do Fracasso e A Sala de Música, dois dos filmes do mestre, pela Wonder Multimídia, ou www.dvdcontinental.com.br, numa coleção chamada CinemaX. Maravilha.

Um registro sobre a participação de Richard Attenborough – perdão, Sir Richard Attenborough – como ator no filme, no papel do general inglês etnocêntrico. O baixinho, veteraníssimo, felizmente longevo inglês, nascido em 1923 em Cambridge, que estreou no maravilhoso Nosso Barco, Nossa Alma/In Which We Serve, de 1942, de Noël Coward e do jovem David Lean, é conhecido do grande público como o empresário que monta o Parque dos Dinossauros nos filmes de Spielberg. Está dito na capa do DVD de Os Jogadores do Fracasso que ele trabalhou no filme de Ray sem cobrar cachê, para ter a oportunidade de atuar dirigido pelo mestre indiano. Não sei se isso é verdade, mas pode perfeitamente ser. Attenbourough, bom diretor, xingado por muitos críticos por ser tradicionalista, academicista (vivam os academicistas!), é o autor de Gandhi, de 1982, vencedor de oito Oscars. Tem, portanto, uma ligação forte com a Índia. É dele também Um Grito de Liberdade/Cry Freedom, de 1987, belo panfleto contra o apartheid quando o apartheid ainda ofendia a vergonha da raça humana. 

Os Jogadores do Fracasso/Shatranj ke Khilari/The Chess Players

De Satyajit Ray, Índia, 1977

Com Amjad Khan (Nawab Wazed Ali Shah), Sanjeev Kumar (Mirza),

Saeed Jaffrey (Mir), Richard Attenborough (General Outram), Shabana Azmi (a mulher de Mirza), Farida Jalal (a mulher de Mir), 

Victor Banerjee (primeiro-ministro) 

Roteiro Satyajit Ray, diálogos Javed Siddiqui e Shama Zaidi

Baseado em história de Munshi Premchand

Música Satyajit Ray

Produção Devki Chitra

Cor, 129 min

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4 Comentários para “Os Jogadores do Fracasso / Shatranj ke Khilari”

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