3.0 out of 5.0 stars
Anotação em 2010: Belo, belo filme. Um mergulho no dia-a-dia de um grupo de músicos e suas famílias na Havana de hoje, com uma surpreendente, inimaginável franqueza a respeito da realidade na ilha meio século após a revolução. Um filme que, de maneira fascinante, deixa as ideologias de lado para fazer uma elegia ao povo cubano, ao país que é muito maior que o regime dos Castro.
“A Cuba, esa loca e maravillosa isla” – a dedicatória, emocionada e emocionante, surge no final desta co-produção de França, Espanha e Cuba, feita com talento, gana, garra, bom humor e um evidente e apaixonado amor pela terra, pelas pessoas, pela cidade linda com prédios e casario que parecem abandonados, à beira da destruição, mas permanece quente, cheia de vida.
A trama gira basicamente em torno de dois jovens músicos, grandes amigos, Ruy (Alberto Yoel García) e Tito (Roberto Sanmartín). Fazem rock – um rock com alguma influência da riquíssima e diversificadíssima música cubana e caribenha de uma maneira geral, mas rock. Uma “música menos oficial, uma música underground que não é subvencionada nem apoiada. É o som dos músicos que trabalham em prol de um sonho, que vivem para a música e não da música”, conforme definiu muito bem o produtor-executivo do filme, o espanhol António Pérez.
Quando a ação começa, Tito, que tem um Chevrolet 1952 vermelho, está botando dentro daquela bela peça de museu um grande grupo de amigos, que vão gravar um CD demo. Através de um amigo que trabalha numa rádio oficial, vão conhecer uma dupla de espanhóis que está em Cuba justamente à cata de talentos jovens e ainda desconhecidos, para lançar no mercado espanhol e para a imensa população hispânica nos Estados Unidos.
É uma maneira engenhosa encontrada pelos roteiristas Benito Zambrano e Ernesto Choa para mostrar diversas bandas jovens que fazem rock, hip-hop, reggae e heavy-metal na ilha comunista. Em parte, o filme é assim uma espécie de Buena Vista Social Club, quase um documentário sobre uma música cubana que o mundo e a própria cultura oficial da ilha desconhecem.
Bela história, personagens ricos, interessantes
É preciso realçar a expressão “em parte”. Em parte o filme é isso, mas é muito mais. Não tem qualquer tom de documentário, de forma alguma; o diretor e seu co-roteirista conseguiram criar uma boa história, personagens ricos, interessantes, para fazer essa viagem pela música underground da Havana dos anos 2000.
O protagonista da história é Ruy. Ele está aí com uns 30 e poucos anos; seu casamento com Caridad (Yailene Sierra) está acabando – o filme não mostra explicitamente por que, não considera que seja o caso, mas o espectador pode presumir que um dos motivos é o fato de que Ruy, tipo bonitão, é um mulherengo. Vai, lá pelas tantas, comer a produtora espanhola Marta (Marta Calvó) que está na ilha caçando talentos. Ruy ainda vive com Caridad num apartamento com terraço em um prédio decadente como todos os de Havana, enquanto não encontra um lugar para morar; o casal tem dois filhos, um garoto apaixonado por música e uma garotinha. Em vias de se separar, Ruy e Caridad têm uma relação melhor do que a maioria dos casais que não pensam em divórcio, e são muito apegados aos filhos.
Tito, o grande amigo, parceiro, é solteiro; vive com a avó, Luz María (Zenia Marabal), uma senhora sensacional, de bela formação musical, que ainda canta, e muito bem.
A mãe de Caridad fugiu da ilha, vive agora em Miami, e insiste para que a filha faça o mesmo. Caridad acabará se decidindo a fugir com os filhos para viver com a mãe.
Fala-se abertamente dos problemas todos – e eles são mostrados com clareza. A dificuldade de conseguir alimentos, produtos básicos de consumo, o comércio paralelo, o mercado negro; a vida dura, difícil; a impossibilidade de sair do país e depois voltar, no caso dos que queiram voltar. Mas não se ideologiza nada. Isso é absolutamente fascinante no filme – é bastante parecido com o que Yoani Sanchez faz em seu blog que se tornou famosíssimo, o Generación Y, a descrição do dia-a-dia na ilha, as dificuldades todas do cotidiano, sem fazer discurso político.
É isso. É exatamente isso. Habana Blues é assim em parte uma espécie de Buena Vista Social Club sobre a música que os jovens cubanos fazem hoje, num tom semelhante ao dos textos de Yoani Sanchez – a vida das pessoas, o dia-a-dia, o cotidiano, com os problemas todos, mas longe de ideologia. As pessoas (é isso que o filme mostra) não são castristas ou anticastristas, revolucionárias ou contra-revolucionárias – são pessoas, têm sonhos, têm amores, têm amizades. Não estão nem aí para Castro ou não Castro – só gostariam que as coisas fossem melhores, que houvesse mais pão e mais liberdade.
E tudo é mostrado com um imenso, um apaixonado amor por Cuba e os cubanos.
Igualzinho, igualzinho à Bahia
Uma pequena digressão.
A Havana que o filme mostra apaixonadamente, os personagens, seu comportamento, tudo lembra Brasil, de uma maneira geral, e mais especificamente a Bahia. É uma verdade incontestável que Brasil e Cuba têm muita coisa em comum – e nem poderia ser diferente, já que os dois países receberam, durante o tempo da desgraçada escravidão, levas de africanos vindos dos mesmos lugares, com a mesma cultura. Salvador e Havana, em especial, parecem cidades irmãs – a diferença mais visível é que o casario antigo de Havana ocupa um espaço muito maior do que o do centro histórico de Salvador. Boa parte de Havana parece assim um Pelourinho agigantado – até mesmo no abandono dos prédios centenários.
O humor do povo é igualinho: as pessoas são bem humoradas, adoram música, são musicais até a raiz do cabelo, e o cabelo é em geral pixaim, com muito orgulho, graças a Deus. As pessoas são criativas, sempre dão um jeitinho, sempre se arranjam, mesmo na pobreza. São festeiras, são gregárias, adoram uma festa, uma reunião, uma cachaça e um batuque – ou um som elétrico, moderno, fusão de ritmos africanos impregnados no sangue com guitarras elétricas, instrumentos de sopro. Têm a mesma ginga, o mesmo balanço.
Não tive a sorte de conhecer Cuba, mas este filme demonstra mais uma vez que, se um dia eu andar pela Habana Vieja, vou me sentir absolutamente em casa, como se estivesse subindo ou descendo o Pelô.
O diretor Zambrano estudou cinema em Cuba
Para compensar a digressão, agora vamos a informações.
Benito Zambrano é espanhol da região de Sevilha; nasceu em 1965. Estudou teatro no Instituto de Arte Dramática de Sevilha; fez roteiros para a televisão; começou trabalhando como operador de câmara no Canal Sur, enquanto participava de curtas-metragens. Em 1992, iniciou uma temporada em Cuba, onde estudou na Escola Internacional de Cinema e Televisão de Havana, que na verdade fica em San Antonio de los Baños. Fez documentários e um curta-metragem.
De volta à Espanha, realizou seu primeiro longa, Solas, de 1999, e depois foi roteirista e diretor de uma série para a TVE, Padre Coraje. O iMDB registra que o diretor já ganhou 26 prêmios em diversos festivais.
Filmou Habana Blues durante dez semanas, em 2004. O filme foi totalmente rodado em Havana e Cienfuegos. Muitos dos atores não tinham experiência anterior. Conta o diretor: “Desejávamos buscar novos atores, desconhecidos. Na verdade, a maioria dos atores do filme é assim. Em Cuba é muito difícil porque não existem agências, os atores não são cadastrados, sejam profissionais ou iniciantes. Procurávamos pelos personagens como eles estavam retratados no roteiro e terminamos ajustando-os às diversas pessoas que encontramos. Procuramos então os músicos. Primeiro buscamos os que soubessem atuar e, por fim, escolhemos atores que sabiam atuar como músicos. Tivemos que organizar uma oficina de dois meses para que os atores pudessem se familiarizar com os instrumentos. Foi árduo e prazeroso.”
Mary notou um paralelo fascinante entre a ficção e a vida real: na trama do filme, dois espanhóis vão a Cuba em busca de novos talentos, e o diretor e seu produtor, ambos espanhóis, fizeram exatamente a mesma coisa.
Talento, inclusive na direção de atores sem experiência
O rapaz tem talento – inclusive para dirigir seus atores sem experiência. Há momentos em que é visível a falta de preparo dos atores – mas, de uma maneira geral, o elenco está bem, com momentos de bela atuação.
Tiveram sabedoria e sorte na escolha do elenco. O trio central – os atores que fazem Ruy, Tito e Caridad prometem. Vejo no iMDB que Yailene Sierra, que conseguiu compor uma Caridad multifacetada, ora imersa em tristeza, ora alegre, batalhadora, em dúvida sobre se deixa a pátria ou não, em dúvida se o certo é mesmo abandonar o marido que amou, saiu da ilha; está na Espanha, onde trabalhou em 26 episódios de uma série para a TV espanhola.
A câmara de Zambrano é sóbria, sem invencionice. Durante várias passagens ao longo do filme, ele coloca a câmara em um carro e vai fazendo longos travellings pelas ruas de Havana; são belas tomadas, que desvendam para quem não conhece a beleza extraordinária do casario antigo da cidade, a pobreza que toma conta de tudo – um grande Pelourinho abandonado.
É um belo filme, que merece ser visto. Mais: que deve ser visto.
O YouTube tem vários clipes do filme. Aí vão dois deles:
Arenas de soledad – a seqüência final do filme – um spoiler, portanto.
Habana Blues
De Benito Zambrano, França-Espanha-Cuba, 2005.
Com Alberto Yoel García (Ruy), Roberto Sanmartín (Tito), Yailene Sierra (Caridad), Marta Calvó (Marta), Zenia Marabal (Luz María), Mayra Rodríguez (Lucía), Ernesto Escalona (Carlitos),
Argumento e roteiro Benito Zambrano e Ernesto Choa
Fotografia Jean-Claude Larrieu
Produção Maestranza Films, Canal+ España, ICAIC
Cor, 115 min
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