4.0 out of 5.0 stars
Anotação em 2010: Uma maravilha, um filmaço, este Faces da Verdade. O diretor Rod Lurie fala de política, de liberdade de imprensa, de Justiça, dos graves perigos de um Poder Executivo forte demais – temas sérios, importantes, pesados, densos – em uma belíssima história, com um ritmo que parece de um thriller.
De cara, um letreiro informa o espectador que o filme se inspira em fatos verdadeiros, mas que é uma história fictícia. Mais tarde vou tentar ver se acho quais são os fatos verdadeiros que inspiraram a trama que o próprio diretor Rod Lurie criou e desenvolveu – ele é o autor do argumento e do roteiro.
E é uma beleza de história. Envolve o presidente dos Estados Unidos – um presidente fictício, chamado Lyman; o filme é de 2008, o último dos oito anos do governo Bush filho. Na primeira seqüência, bem rápida, o presidente Lyman é vítima de um atentado. Corta, e estamos vendo um ônibus escolar, onde duas mães acompanham um grupo de alunos numa excursão. Os créditos iniciais vão rolando enquanto ouvimos um noticiário de TV; pelo noticiário, ficamos sabendo que o presidente Lyman ordenou um ataque a bases militares da Venezuela, cujo governo teria participado do atentado; há, no entanto, fontes que dizem que os relatórios da CIA não eram conclusivos a respeito da participação do governo venezuelano.
Uma das duas mães que estão no ônibus escolar é uma jornalista, Rachel Armstrong (Kate Beckinsale), que trabalha para o jornal (fictício) Sun Times, de Washington. Passaram-se algumas semanas depois do atentado contra o presidente americano, e Rachel está trabalhando numa matéria explosiva: ela obteve, de fontes seguras, a informação de que a mulher de um embaixador, Erica Van Doren (Vera Farmiga), é uma agente secreta da CIA, que teria ido à Venezuela e escrito um relatório mostrando que, afinal, o governo daquele país não estava envolvido no atentado; seu relatório foi menosprezado pela Casa Branca, que ordenou o ataque ao país mesmo assim.
Se o espectador fizer alguma comparação entre esse ponto do filme e o ataque do governo Bush ao Iraque, com base em informações de que o país de Sadam Hussein possuía armas químicas de alto poder destrutivo, o que se provou ser uma mentirada deslavada, uma história da carochina, o espectador está muito é certo.
Mas vamos em frente.
O país mais poderoso do planeta contra uma repórter
Reunião de pauta no Sun Times. Mandam chamar a repórter Rachel Armstrong; Bonnie (Angela Bassett), a diretora de redação, diz que quer publicar a matéria dela na edição daquele dia, pergunta o que falta para ela apurar. Rachel diz que só precisa ouvir a própria Erica Van Doren, a agente secreta da CIA, e que é fácil para ela fazer isso: seu filho Timmy freqüenta a mesma escola de Allison, a filha de Erica.
Rachel encontra Erica no colégio dos filhos das duas (na foto); apresenta-se, diz que o jornal vai publicar a matéria dizendo que ela, Erica, é agente da CIA, e escreveu um relatório assim assado. Erica fica furiosa e nega tudo, é claro. Rachel ouve um porta-voz da Casa Branca, que diz que a presidência não comenta assuntos envolvendo segurança nacional.
A matéria é publicada.
No mesmo dia em que o jornal traz a reportagem, Rachel é abordada por agentes do FBI e levada a um funcionário do governo, Patton Dubois (Matt Dillon), que será nomeado promotor especialmente para aquele caso. Dubois quer o nome da fonte – a pessoa que disse para a repórter que Erica Van Doren é agente da CIA.
Estamos aí com apenas 15 minutos de filme, e vai começar a ser discutida a questão: legalmente, um repórter, um jornal pode não revelar sua fonte?
Teoricamente, pode – é uma garantia dada pela Primeira Emenda à Constituição americana, a que assegura a liberdade de expressão. Acontece que uma lei federal bem recente obriga os jornais e os jornalistas a revelarem suas fontes em casos que envolvam a segurança nacional. E o governo – representado pelo promotor especial Dubois – entende que expor a identidade de um agente secreto é uma ameaça à segurança nacional. Caso a Justiça exija que a fonte seja revelada, e Rachel Armstrong se negue a fazê-la, ela será presa por desacato à Justiça.
Entra em cena um advogado famosíssimo, veterano, um defensor dos direitos civis, Albert Burnside (Alan Alda), para defender Rachel.
Não estamos com mais do que meia hora de filme, e um juiz, Hall (Floyd Abrams), ouve o promotor Dubois, ouve o advogado Burnside, e anuncia sua decisão.
Um diretor que gosta de política, entende de política
O diretor Rod Lurie gosta de política. É do ramo. E, nas três últimas eleições presidenciais, não votou em Bush, nem em John McCain, ah, não, senhor. Suas idéias são absolutamente opostas às de Sarah Palin, conforme fica claro por qualquer uma de suas obras. Dirigiu sete dos 18 episódios de Commander-in-Chief, uma beleza de série feita para a TV entre 2005 e 2006, em que a vice-presidente dos Estados Unidos, interpretada por Geena Davis, assume a presidência com a morte do titular.
Dirigiu também, em 2000, A Conspiração/The Contender, outro excelente filme político, sobre o qual escrevi: “Um ótimo filme político, extremamente liberal (no sentido de que se opõe ao conservadorismo; nada a ver com o que no Brasil se usa sobre economia), progressista, avançado – mais uma das dezenas e dezenas de provas de que o cinema americano está muito à frente do resto do país.”
A mesma visão extremamente liberal, progressista, avançada, ilumina este Faces da Verdade. O filme é um panfleto contra o Estado forte, o Executivo todo poderoso – garantia de menos liberdade de imprensa, garantia de menos direitos do cidadão. É um panfleto a favor da imprensa independente, vigilante, inquiridora, investigativa – o tipo de imprensa que o apedeuta presidente brasileiro amigo de Bush detesta.
Alan Alda, ele também um liberal, sempre próximo das boas causas, está ótimo como o advogado Burnside, um tipo complexo, bom de serviço, batalhador, um believer, mas capaz de vaciladas, e um gosto por símbolos de riqueza – roupas, relógios – que empanam o brilho de sua oratória grandiosa.
Kate Beckinsale, a jovem atriz inglesa de rosto belíssimo, está excelente no papel da jornalista bem educada, bem formada em ótimas e caras escolas, que vai ter que comer o pão que o diabo amassou muito bem amassado. Sua interpretação neste filme a exime da culpa por todos os filmes de monstros e super-heróis, os Van Helsing da vida, em que ela vem se metendo.
Também está ótima no papel da agente da CIA Vera Farmiga, essa atriz que tem sido coadjuvante em muitos filmes bons, e nos últimos anos tem tido boas oportunidades, em papéis mais importantes. Quem me pareceu mal, destoando do resto do elenco, foi Matt Dillon; está bastante careteiro, o rapaz, como o procurador tirânico representando um governo tirânico.
Uma fala brilhante contra o Estado forte, a favor da liberdade
Quando anotei sobre o filme A Conspiração, transcrevi um texto brilhante, dito por um dos personagens – uma ode às liberdades básicas, fundamentais. Não dá para deixar de transcrever uma fala do advogado Albert Burnside – brilhante, emocionante – diante da Suprema Corte. O iMDB traz o trecho – é só traduzir, então lá vai.
“Em 1972, no caso Branzburg versus Hayes, esta Corte decidiu contra o direito de repórteres de não divulgar os nomes de suas fontes diante de um grande júri, e isso deu ao governo o poder de prender aqueles repórteres que se negassem a fazê-lo. Foi uma decisão de 5 a 4, apertada. Ao discordar da decisão da maioria, o juiz Steward disse: ‘Com o passar dos anos, o poder do governo se torna mais e mais penetrante. Aqueles que estão no poder’, ele disse, ‘qualquer que seja sua política, querem apenas se perpetuar no poder, e as pessoas são as vítimas.’ Bem, os anos se passaram, e aquele poder é penetrante. A sra. Amrstrong poderia ter cedido às exigências do governo – ela poderia ter abandonado a sua promessa de confidencialidade. Ele poderia simplesmente ter ido para casa, ficar com sua família. Mas fazer isso significaria que nenhuma fonte iria falar de novo com ela, e nenhuma fonte iria falar com o jornal dela de novo. E então amanhã, quando prendermos jornalistas de outros jornais, vamos tornar essas publicações irrelevantes, e assim tornaremos irrelevante a Primeira Emenda. E então como saberemos se um presidente escondeu crimes? Ou se um oficial do exército cometeu tortura? Nós, enquanto nação, não mais seremos capazes de exigir que aqueles que estão no poder prestem contas àqueles sobre os quais exercem seu poder – e qual é a natureza de um governo quanto ele não tem mais medo de prestar contas? Deveríamos levar isso em consideração. Prender jornalistas – isso é para outros países, isso é para os países que temem seus cidadãos, não para países que cuidam deles e os protegem. Algum tempo atrás, comecei a sentir a pressão pessoal, humana, sobre Rachel Armstrong, e disse a ela que eu estava ali para representar a ela, e não seus princípios. E foi só quando eu a encontrei que compreendi que, com as grandes pessoas, não existe diferença entre os princípios e a pessoa.”
Brilho! Brilho puro!
O fato real: jornalista do NY Times foi presa por não revelar a fonte
Bem, vou agora buscar informações sobre o filme.
Há muitas, e são fascinantes. O iMDB conta que Floyd Abrams, que interpreta o juiz do filme, e também aparece nos créditos como consultor técnico, é na vida real um advogado que trabalha para a ACLU, a União Americana pelas Liberdades Civis, e já defendeu pessoas em casos que envolvem a Primeira Emenda e a segurança nacional – o tema central do filme.
Uma informação triste: a empresa distribuidora do filme, Yari Film Group, pediu falência, e, nos Estados Unidos, Faces da Verdade só foi exibido nos cinemas de Nova York e Los Angeles; não chegou às demais cidades. Uma pena.
Os fatos reais que inspiraram a história – história essa que é fictícia, conforme o filme nos adverte no início e no fim – envolveram uma ex-agente da CIA, Valerie Plame, e uma repórter do New York Times, Judith Miller. Valerie Plame – assim como a agente da CIA do filme – foi casada com um embaixador. Judith Miller foi um dos jornalistas que identificaram que Valerie trabalhou para a CIA; a Justiça exigiu que ela revelasse sua fonte, ela negou e por isso ficou 85 dias presa em 2005. Duros tempos, os anos Bush.
É isso. Uma beleza de filme. Virei fã desse Rod Lurie.
Faces da Verdade/Nothing but the Truth
De Rod Lurie, EUA, 2008
Com Kate Beckinsale (Rachel Armstrong), Matt Dillon (Patton Dubois), Angela Bassett (Bonnie Benjamin), Alan Alda (Albert Burnside), Vera Farmiga (Erica Van Doren), David Schwimmer (Ray Armstrong), Floyd Abrams (juiz Hall)
Argumento e roteiro Rod Lurie
Fotografia Alik Sakharov
Música Larry Groupe
Produção Battleplan Productions, Yari Film Group
Cor, 107 min
****
Título em Portugal: A Verdade e só a Verdade
De fato, filme excelente e gostei muito de tua crítica. Gostei demais das atuações de Beckinsale, Alda e Farmiga, e do tom sóbrio do filme, que se amarra vigorosamente à realidade e não cai nunca na pieguice. Matt Dillon teve um personagem desagradável a interpretar, e acho que o fez bem. Mas, acima de tudo, acho que o ponto alto do filme é o discurso de Alda versando sobre Totalitarismo x Liberdade de Imprensa lá quase no fim. Dinamite puro. De primeira.
Este filme foi indicado pela professora da faculdade que faço. Na verdade, acho que o importante para nosso curso é mostrar o perigo do Executivo forte. O Estado pode usar sua estrutura para comprometer os ideais dos próprios cidadãos. Além da brilhante mensagem sobre princípios, o filme foi uma ótima pedida. Vale a pena assistir!!!
Assisti este filme meio por acaso, no final da semana passada, quando estava no interior de Rondônia cobrindo uma feira agropecuária. Sou jornalista de perfil independente, e não é raro passar por siuações parecidas (mas, com certeza, menos brutais), que a personagem da película, quando produzo material que causa celeuma.
Uma circunstância da história remeteu-me a experiência recente: ninguém contesta a notícia da repórter, apenas querem que ela abra a fonte. No ano passado enfrentei situação semelhante, inclusive com abertura de processo, posteriormente arquivado a pedido dos próprios denunciantes. Os caras não negavam a informação, mas me pressionaram de todas as formas para que eu revelasse como obtive a notícia. Chegaram a incentivar empresas que anunciam onde eu trabalho para cancelar as publicidades, me ofereceram dinheiro, ofereceram dinheiro ao patrão, pediram minha cabeça… Enfim, um inferno, que só terminou graças a atuação de um jurista da cidade onde vivo (Vilhena), respeitado no meio e que se ofereceu para me defender sem custo do absurdo que vivi. Passei por essa mais ou menos ileso, mas confesso que em alguns momentos pensei até em abandonar o ofício. No entanto, abrir a fonte NUNCA!
Caro Mário,
Agradeço a você pela bela e interessantíssima mensagem.
Um grande abraço.
Olha que interessante. Assisti a “Faces da Verdade” há alguns dias; achei bem interessante o filme. Acabei de ver “Jogo de Poder”, um novo filme (com Sean Penn e Naomi Watts) e percebi, depois de ler algumas coisas relacionadas ao filme, que os dois têm tudo a ver. No “Jogo de Poder”, não aparece a história dessa jornalista do “Faces da Verdade”, mas o filme conta a história desse caso “Valerie Plame” e traz outras questões bem interessantes. Muito bons os dois filmes e a ligação dos filmes é ainda mais interessante, justamente porque não é explícita. Os dois filmes altamente recomendados!!!
Verdade, Felipe. São dois filmes sobre o mesmo tema. “Jogo de Poder”, que
ainda não vi, parece que é a reconstituição fiel da história de Valerie
Plame, enquanto “Faces da Verdade” é uma ficção que se inspira no caso real,
focalizando basicamente não Valerie, mas a jornalista que conta a história
dela.
Obrigado pelo comentário. Espero que você volte de vez em quando ao site.
Um abraço.
Sérgio
Sérgio,
Resolvi assistir esse filme devido à sua indicação. Não li a sua crítica, para não “contaminar” meu olhar com relação ao filme. Só vi que está entre os seus 4 estrelas.
Que filme brilhante! Uma história maravilhosa — e maravilhosamente bem contatada.
Além do aspecto político que você muito bem destacou, creio que essa história daria uma boa discussão sobre princípios morais e seus dilemas. Até onde deve ir o auto-sacrifício em nome de um princípio? Vale a pena defendê-lo, sabendo que vai perder sua família, amigos, o contato com o filho, sua vida? Pensando no caso concreto, dada a condição especial da fonte da informação, teria sido tão importante preservá-la? E, pra levantar polêmica mesmo: foi ético da parte da jornalista utilizar-se da fonte que usou?
A sobriedade do filme nos provoca uma verdadeira tensão. Quem é essa mulher, uma rocha? Como ela pode suportar? Esse, aliás, foi um ponto delicado do filme. Acho que ele teve um pouco de dificuldade em humanizar essa personagem. Claro que ele mostra o conflito da repórter, mas não chegou a convencer totalmente. Mesmo sendo um filme político, teria valido a pena investir nessa construção da personagem como alguém real.
Eu não daria a nota máxima a ele. Mas sem dúvida é um grande filme.
Um abraço!
Nossa isso que é um verdadeiro filme.Todos os atores sao perfeitos,principalmente Rachel e o Dr.Albert.Valeu.
Este filme é mesmo ‘um brilho’. Assisti meio que por acaso – fui pelo título – depois li seu comentário. Concordo em gênero, número e grau.
Abraço!
Analisando as personagens: em minha opinião, Erica foi a verdadeira rocha… como pôde suportar? Perdeu tudo… jamais o sorriso meigo… sorriso que estava em seu rosto ao perder a vida… tudo por uma projeção alheia e gananciosa… teve sua vida invadida, até seu derradeiro final. Rachel não mediu as conseqüências: quis sua manchete, não pensou no ônus alheio de sua conquista. Seu egoísmo só a levou a pensar em bônus próprio. Politicamente falando, prostro-me e faço reverência ao diretor Rod Lurie, porém Kate Beckinsale está longe de ser uma heroína por proteger uma criança…
Isso nao foi uma crítica. Foi um resumo.
Mas, Amanda, alguém prometeu para você que isso seria uma crítica?
Eu não prometi.
Um abraço.
Sérgio
O filme merece bem a nota máxima, concordo com o Sérgio.
Está muito bem feito, nem encontrei nada de errado, perfeito.
O outro filme que aborda este assunto “Jogo de Poder” é inferior a este, quanto a mim.
Gostei do Matt Dillon, não vi nada de errado na sua actuação e fico na dúvida do “careteiro”, não sei bem o que significa.
Respeito as opiniões expressas nos comentários, mas preciso dizer que fiquei impressionado com a unanimidade das críticas positivas ao filme.
Assisti ao mesmo com minha esposa e ambos o consideramos uma péssima obra! Apesar das boas atuações, o roteiro e a direção, em minha opinião, falharam em estabelecer alguma possível identificação ou empatia com algum personagem da história. Foram, no mínimo, preguiçosos (ou negligentes) com a amarração do enredo e a construção dos papéis.
O filme não se aprofunda em praticamente nenhum dos temas da narrativa: não esclarece as circunstâncias, por exemplo, da tentativa de assassinato do presidente americano; não explica o motivo do interesse do jornal em publicar sobre a vida dupla da agente da CIA; apresenta de forma muito rasa a problemática conjugal vivida pela protagonista; trata de modo superficial o sofrimento causado pelo distanciamento entre ela e seu filho…
Por fim (mas não menos importante), dá a entender que, após toda a devastação estoicamente suportada, a jornalista cede à pressão da promotoria, invalidando a conversa que teve com seu filho no ônibus escolar (mostrada duas vezes, no início e no fim do filme). E, pior do que tudo isso, a película não revela como ocorreu o término do processo ou os efeitos causados pela polêmica revelação final.
Em suma, a obra anuncia ou “promete” um envolvimento do espectador com os personagens e um crescente interesse pela solução da trama, mas “entrega” histórias e perfis psicológicos vagos, além de um enredo frouxo, que repele o engajamento e causa, no fim, apatia e frustração.