O texto abaixo foi escrito para o portal estadao.com.br, em junho de 2000. Boto aqui no meu site neste momento, agosto de 2009, em que uma lei fascista, totalitária, do governador José Serra proíbe o fumo em praticamente todos os lugares do Estado de São Paulo. E convido os eventuais leitores a apreciar o excelente artigo do sociólogo Demétrio Magnoli, publicado no Estadão e no Globo, demonstrando por A mais B como e por que a lei é fascista.
Nunca houve uma mulher como Gilda. Todos os homens com mais de 40 anos sabem muito bem disso. Assim como todas as mulheres sabem que houve pouquíssimos homens como Rick.
Charmosíssimos, elegantes, sensuais, Gilda e Rick acendiam um cigarro após o outro naqueles bares enfumaçados e cheios de glamour, ela em Buenos Aires, ele no Marrocos, ambos em todos os cinemas do mundo, e viraram parte do imaginário coletivo do século. E de uma maneira tão profunda que para boa parte da humanidade tornou-se absolutamente impossível dissociar as noções de charme e fumo.
E no entanto – pode-se pensar – nunca houve uma transformação assim: o melhor mocinho virou o mais cruel vilão.
A escalada é firme, forte, inexorável, e em todos os cantos do planeta. Inglaterra, Estados Unidos, Canadá, Irlanda, Noruega, Finlândia, França, Japão, Brasil – o cerco vai se fechando no mundo todo, num ritmo alucinante, na mesma velocidade com que Rita Hayworth e Humphrey Bogart acendiam os seus sem-filtro, a mesma com que os cientistas vão divulgando seus estudos e as dezenas, centenas de organizações antitabagistas do mundo, govenamentais ou não, vão alardeando suas estatísticas – 85 mil brasileiros mortos por ano, 11 mil pessoas mortas por dia no mundo, mais do que pela aids, crime, suicídio, uso de drogas ilícitas e álcool juntos.
Escalada segura, gradual e nada lenta
Tome-se o exemplo dos aviões, essa coisa que, afinal, para muita gente também dá medo de morrer, e nada como um cigarro para tentar distrair. Foi em 1969 que a PanAm pioneiramente criou um setor isolado para não-fumantes; em menos de 20 anos, a situação inverteu-se, e em 1988 o fumo passou a ser proibido nos vôos domésticos americanos de menos de duas horas.
Em 1996 o governo brasileiro proibiu o fumo em vôos de menos de 60 minutos, e nos primeiros 60 minutos dos vôos maiores. Apenas três anos depois o cigarro tornou-se proibido em qualquer vôo em companhia aérea brasileira, não importa o número de horas em que se tem medo de morrer e vontade de fumar. Até mesmo nos aeroportos, enquanto se espera a mala e se agradece aos céus por ter sobrevivido a mais aquela, é proibido acender um.
A TAP, a empresa aérea de Portugal, ainda manteve até há pouco áreas para fumantes em seus vôos do Brasil à Europa – e a procura por um assento em seus aviões aumentou. No dia 26 de março deste ano, a empresa acabou com esse refúgio. A Air France deve acabar com o seu até o final do ano.
Os Estados Unidos tornaram obrigatórios os avisos sobre os danos à saúde nos maços em 1º de janeiro de 1966; apenas cinco anos depois, em 1971, os anúncios de cigarro foram banidos da TV americana. No Brasil, as advertências nos maços tornaram-se obrigatórias em 1988; em 1995, todo tipo de anúncio de cigarro – em revista, outdoor, TV – passou a ter de conter os avisos.
E este mês (junho de 2000) chegou ao Congresso o projeto do ministro José Serra, da Saúde, proibindo todo e qualquer tipo de publicidade de cigarro – além de bebida. Conviverá lá com cerca de cem outros projetos tratando da regulamentação da propaganda de cigarro e do ato de fumar. Um deles, proveniente do próprio Senado, também proibindo totalmente a publicidade de cigarro, passou pela Comissão de Constituição e Justiça no dia 7 de junho; os nobres senadores parecem não querer ficar atrás do ministro, e aceleram a tramitação.
Quando chegar ao plenário do Senado, o projeto do Ministério será discutido a seco: ali não se fuma. Na nossa Câmara Alta, fuma-se apenas no cafezinho e em algumas áreas comuns. No plenário da Câmara dos Deputados, no entanto, esse projeto, como qualquer outro, será debatido como se estivéssemos no Rick’s Café Americain de Casablanca. Oficialmente é proibido fumar ali desde 1990, mas essa regulamentação não colou. Como também não colou totalmente a proibição de fumo no outro lado da Praça dos Três Poderes, no Palácio do Planalto: lá, na prática, estão liberados os gabinetes das autoridades que fumam.
Por enquanto, ao menos.
Pipocam por toda a parte as leis proibindo o fumo em prédios públicos e pura e simplesmente em locais públicos, como bares e restaurantes. Nos shopping centers de São Paulo, por exemplo, podem-se tomar quantos café se queira; o inescapável cigarrinho pós-café, no entanto, é proibido. Bem, na verdade, na verdade mesmo, vigia-se a proibição em alguns deles; em outros, nem tanto – e há os que simplesmente dispõem de grandes cinzeiros.
Mas o cerco vai-se fechando em todos os fronts. E gente que estava de um lado passa para o outro. É o caso de Clint Eastwood, este ícone tão charmoso como Humphrey Bogart ou Gary Cooper ou John Wayne – todos fumantes nas telas e fora delas -, que mascou e fumou tantas dezenas de cigarrilhas e cigarros nos bangue-bangues e nos policiais. Em Crime Verdadeiro, de 1999, ele interpreta Steve Everett, um jornalista bom de serviço, rebelde, independente, que ousa fumar na redação – hábito presente em dezenas e dezenas de filmes e também na vida real, mas que nos últimos anos caiu em desuso, ele também vítima do avanço dos politicamente corretos. Pois bem. Até mesmo Steve Everett, até mesmo ele, Clint Eastwood, resolve abandonar o vício.
Do mesmo ano de Crime Verdadeiro – 1999 – é o excelente O Informante, em que Russell Crowe interpreta Jeffey Wigand, personagem real, o cientista que trabalhou para a Brown & Williamson, uma das maiores empresas de tabaco do mundo, e, no início dos anos 90, pôs em risco a família e a própria vida ao testemunhar ao mundo o que então era um segredo bem guardado e hoje não é novidade alguma: que a indústria estava cansada de saber que a nicotina vicia – como o álcool ou a heroína.
Um santo remédio
O hoje grande vilão teve seus dias de mocinho. Os índios das Américas acreditavam que o tabaco tinha propriedades medicinais, e os desbravadores europeus levaram essa noção embrulhada com as folhas e as sementes do produto nas viagens de volta para o Velho Mundo. O embaixador francês em Portugal Jean Nicot de Villemain descreveu o fumo como uma panacéia para diversos males em 1560, e enviou para sua rainha, Catherine de Médici, uma porção de tabaco – nos anos 70, se diria “uma presença”, mas esta é outra história. O fato é que Catherine tratou com aquilo das dores de cabeça do filho, e deve ter tido bom resultado, porque decretou que aquela coisa dos índios americanos passaria a ser chamada de Herba Regina – regina, de rainha.
(Qualquer semelhança entre o nome do embaixador francês, Nicot, e a palavra nicotina não é, evidentemente, mera coinciência. O botânico De La Champ deu o nome científico de Herba Nicotiana ao gênero de plantas a que o tabaco pertence numa homenagem ao diplomata. A nicotina é um dos 4.000 componentes do cigarro, o mais estudado de todos; como diz texto da Liga de Apoio ao Abandono do Cigarro da Faculdade de Medicina da Santa Casa de São Paulo, cria sensação de bem estar, aumenta o estado de atenção e a capacidade de memória – e, como outras drogas, provoca dependência.)
É de 1571 um documento de um médico chamado Monardes relatando que a prescrição do uso do tabaco havia virado uma mania entre os médicos de Sevilha. O trabalho de Monardes foi traduzido para o inglês em 1577; o tabaco era recomendado contra 36 doenças, entre elas dor de dentes, vermes e até problemas nas unhas. Em 1587 saiu na Antuérpia um trabalho médico chamado “De herbe panacea”, com receitas e histórias de cura de doenças. Cerca de um século depois, por volta de 1665, durante a grande praga na Europa, difundiu-se a idéia de que o fumo tinha um efeito protetor contra a doença.
E, bem mais perto dos nossos dias, o genial perscrutador da alma humana Sigmund Freud – notório fumante de charutos – sentenciou: “Não se tenha dúvida de que fumar é uma forma de prazer oral”.
Uma centenária guerra mundial
Não era uma visão unânime, claro. Muito ao contrário. “O argumento de que fumar faz mal à saúde é quase tão antigo quanto o uso do tabaco” – a frase, exemplar como a de Freud, é da Encyclopaedia Britannica.
Os índios haviam passado séculos fumando na mais santa paz, de Norte a Sul das Américas. Bastou o homem branco aprender o hábito com eles, no entanto, para começar a guerra entre fumantes e não-fumantes.
É considerando apenas as últimas décadas que se tem aquela noção, citada acima, de que o cigarro era o charme e de repente virou o inimigo público número 1. Olhando-se mais para trás na História, percebe-se que o fumo é algo assim como o doutor Jeckyll e o senhor Hyde, uma única entidade congregando médico e monstro, o bem e o mal, o glamour de Gilda e o poder assassino de Hitler. Ocorre é que, cada vez mais, o que tem predominado na mídia é o seu lado monstruoso.
Quatro séculos antes do projeto do ministro Serra – precisamente em 1604 -, o rei James I da Inglaterra saiu-se com a primeira condenação oficial do tabaco entre os anglo-saxônicos, em um documento chamado “A Counterblaste to tabacco” (counterblast, sem o “e” da grafia antiga, é uma resposta violenta ou raivosa). O inglês James e o brasileiro José filiam-se a uma linhagem que inclui o Papa Urbano VIII – que em 1624 ameaçou de excomunhão quem fizesse uso de tabaco em locais sagrados – e o sultão Murad IV, da Turquia, que, mais xiita, em 1633 mandou executar os usuários. (Pouco depois, em 1647, a proibição do fumo na Turquia foi retirada; data dessa época um texto turco segundo o qual o tabaco, o café, o vinho e o ópio eram as “quatro almofadas do sofá do prazer”.)
Na China, um édito imperial de 1612 proibiu a plantação e o uso do tabaco; na Rússia, os Romanoffs o baniram entre 1613 e 1689. Hoje, muitos czares e o comunismo depois, a Rússia é o quinto maior fabricante mundial de cigarros, e a China, muitos imperadores e outra revolução comunista depois, é de longe o campeão mundial – com cerca de um quinto da população, fabrica e consome cerca de um terço de todos os cigarros do globo.
Além de no Oriente, segundo destaca o presidente da Abifumo, Associação Brasileira da Indústria do Fumo, Nestor Jost, o consumo cresceu no ano passado (1999) na França, na Alemanha e na Espanha. Cresceu também aqui – a venda legal de cigarros no País em 1999 foi de 103 bilhões de unidades, um aumento de cerca de 4% sobre os 97 bilhões de 1998, segundo Jost. Mas somos, juntamente com os franceses, alemães e espanhóis, exceções. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que o número de fumantes em todo o planeta aumente 1% ao ano, contra um crescimento populacional de 1,7%.
Nos Estados Unidos, houve uma queda 5,5 bilhões de unidades nas vendas de cigarro, de 1996 para 1997 – a venda total no país em 1997 foi de 478,6 bilhões, segundo dados da Comissão Federal de Comércio apresentados em julho passado. Um número astronômico, diriam os antitabagistas. Mas muito pouco se comparados aos 624 bilhões vendidos em 1982, o ano em que o consumo interno chegou ao máximo. Mais ainda: segundo estatísticas de 1993, 70% dos fumantes adultos americanos (no total, havia 46 milhões de fumantes nos EUA) declaravam que gostariam de parar.
Claro: é lá, no país mais rico e poderoso do planeta em qualquer época da História, que é mais rigorosa a legislação, maiores são os empecilhos, mais ativos e mais numerosos são os grupos antitabagistas – enfim, que é mais estridente a gritaria contra o hábito de fumar, e mais aberta a guerra entre fumantes e não-fumantes.
Pode ser, talvez, por falta de outra guerra com que eles possam se ocupar, agora que o comunismo foi escanteado para os fumódromos do mundo (e não vale aqui dizer que ainda há comunismo na China, porque aquilo é outro planeta).
O destino é caprichoso
Ou talvez tenha a ver com um secular sentimento de culpa. Afinal, o tabaco, como também lembra a Britannica, foi a principal commodity trocada pelos colonizadores americanos por produtos manufaturados da Europa, nos séculos XVII e XVIII. Na Virgínia, Sul dos Estados Unidos, o tabaco começou a ser usado como moeda em 1619, e permaneceu como padrão monetário por mais de dois séculos, muito mais tempo do que a humanidade adotou o ouro. E foram duas instituições sagradamente americanas – Hollywood, a meca do cinema, e a Madison Avenue, a meca da publicidade – que mais venderam o charme do fumo para o mundo.
“Eles viciaram a gente em fumar. Nós vimos todas aquelas imagens de glamour. E você vai lá agora e não pode fumar em lugar nenhum”, diz Bob, o personagem interpretado por Jim Jarmusch, ele próprio diretor de cinema, no delicioso Sem Fôlego, um filme – como seu irmão gêmeo Cortina de Fumaça – todo passado em torno de uma tabacaria do Brooklyn, uma tremenda gozação à atmosfera sufocante (para os fumantes) dos politicamente corretos anos 90. “É assim – prossegue Bob –: você acende um cigarro depois de comer num restaurante, e lá vêm eles: ‘Desculpe, senhor, é proibido por lei fumar em restaurantes’. O que é que há? Eles é que começaram tudo, não foi?”
“Começaram tudo” é um pouco de exagero, claro, mas não se pode dizer o mesmo da frase anterior, “eles viciaram a gente”. A importância do cinema é inegável. Se este texto traz tantas referências ao cinema, não está sozinho. Sérias instituições de defesa da saúde se preocupam, e muito, com o que se mostra nas telas.
A Associação Americana do Pulmão fez um estudo sobre 133 filmes lançados entre 1994 e 1995, o coração da década não-fumante, e concluiu que 77% deles mostravam o uso de tabaco. As platéias de cinema, segundo o estudo, estão cinco vezes mais sujeitas a ver cenas de fumo explícito do que as audiências de TV.
O professor Stanton Glantz, da Univerdade da Califórnia em San Francisco, estudou os filmes feitos entre 1960 e 1990, e concluiu que o uso de tabaco continuou firme no período – e ficou ainda pior depois de 1991. O jornal USA Today investigou 18 filmes que estavam em cartaz no país em julho de 1996; 17 dos 18 incluíam pelo menos uma cena de fumo, e dez deles apresentavam mais de 15 cenas.
“Vamos pôr a verdade sobre a mesa”, convidou um crítico de cinema no San Francisco Chronicle chamado Mick LaSalle, em 1996. “Tudo o que as pessoas negam sobre o cigarro é verdade nos filmes. É sexy. É glamouroso. É gostoso.”
Mais adiante, o crítico enumera uma trágica lista de vítimas fatais do fumo – mas lembra que nem todo fumante morre de câncer: “Barbara Stanwyck e Louise Brooks terminaram seus dias com enfisema. E Gary Cooper, Buster Keaton, Humphrey Bogart e John Wayne morreram de câncer no pulmão. Por outro lado, fumantes como Marlene Dietrich (foto) e Claudette Colbert viveram até os 90 anos. E James Dean e Carole Lombard, que fumavam, morreram em acidentes. O destino é caprichoso.”
As novas gerações têm todo o direito de nunca terem ouvido falar nos nomes acima – apesar das reprises na TV, do videocassete, do DVD. Afinal, os jovens acham que o mundo começou no dia em que eles nasceram. Por isso é que, em seguida, o crítico de San Francisco enumera nomes de atores vistos fumando recentemente, nos filmes ou na vida real: Drew Barrymore, Julie Delpy, Cameron Diaz, Leonardo DiCaprio, Anne Heche, Jennifer Jason Leigh, Matthew McConaughey, Julianne Moore, Gwyneth Paltrow, Brad Pitt, Keanu Reeves, Wionona Ryder, Christian Slater, Uma Thurman…
Fazer o quê? Proibir a publicidade, proibir o fumo aqui e ali, em todos os lugares possíveis, isso já se fez. Proibir que os filmes mostrem gente fumando, isso seria absolutamente inimaginável, mesmo para quem carrega na história o peso da censura do Código Hays dos anos 30 e do macarthismo dos anos 50.
“Me dá um daqueles que só dão câncer”
Nos estúdios da Rede Globo, de onde saem as novelas vistas todas as noites por milhões de brasileiros, jovens ou não, fumantes e não-fumantes, não existe uma proibição de que os atores fumem. Há fumantes entre os personagens, como o da compulsiva interpretada por Nívea Maria em Suave Veneno, ou o de Lima Duarte em Pedra sobre Pedra, que não largava o charuto.
O autor Sílvio de Abreu conta que há uma orientação, ainda do período Boni – José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o ex-todo poderoso vice-presidente de Operações – no sentido de evitar que os atores fumem ou bebam sem qualquer motivação, apenas por não saber o que fazer com as mãos. “Os atores só devem fumar se aquilo fizer parte do personagem, se for importante para o contexto, se for para demonstrar um momento de extrema tensão, ou se o cigarro for motivo de uma discussão num casal, por exemplo”, conta ele. “Eu, pessoalmente, nunca quis usar cigarro em cena de novela. Já usei alcoolismo, que é uma coisa que tem muita dramaticidade, em Rainha da Sucata. Em Torre de Babel tinha um personagem viciado em crack e cocaína. Mas nunca precisei usar personagens que fumam. Lembro até que teve um ator que começou a fumar numa novela minha, aquele caso típico de quem não sabe o que fazer com as mãos, e eu mandei parar.”
Um apaixonado por cinema, Sílvio de Abreu lembra que na sua época de juventude – anos 50, 60 –, por influência de Hollywood, as pessoas achavam que quem não fumava não tinha charme. “Eles venderam ao mundo a Coca-Cola, os jeans e o cigarro. Em todos os filmes dos anos 40 e 50 as atrizes fumavam. Havia sempre um belíssimo cinzeiro, uma caixa de prata com os cigarros e um isqueiro de mesa, que falhava na primeira tentativa e só acendia na segunda. Não havia um filme com Rita Hayworth, Barbara Stanwyck, Bette Davis (na foto, com Paul Henreid em A Estranha Passageira) ou Joan Crawford que não tivesse essa cena.”
É uma questão de modismo, raciocina Sílvio. “Nos anos 60, a classe média bebia e fumava, e droga era coisa de marginal. No final dos anos 70 e 80, o charme virou cocaína; quem não cheira é careta, não é jovem, não é moderno. Aí virou moda as pessoas pedirem cigarro assim: ‘Me dá aí um daqueles que só dão câncer’. Depois virou moda parar de fumar.”
Todos dizem eu quero parar
Bob, o personagem de Jim Jarmusch no filme Sem Fôlego, quer parar de fumar. Ele vai à tabacaria onde se passa a ação para fumar o último cigarro junto dos amigos.
Também quer parar de fumar o detetive Mike Church, um dos dois personagens interpretados por Kenneth Brannagh no extraordinário Voltar a Morrer. O filme é de 1991, início da década mais antitabagista da história – sem contar com a próxima, que, claro, será pior, ou melhor, de acordo com o lado em que se estiver nesta guerra.
No começo do filme, o detetive Mike Church encontra-se com um ex-psiquiatra, Cozy Carlisle, interpretado por Robin Williams. O diálogo é fascinante. Carlisle oferece um cigarro, ao ver que o outro volta e meia olha para o seu maço de Winston. Church primeiro diz que não fuma, depois admite que está querendo parar. E o psiquiatra responde:
– Ou se é fumante ou não-fumante. Não há meio termo. Não diga que está tentando parar. Quem diz isso é um covarde que não consegue se comprometer. Descubra o que você é – e seja. Só isso. Se você for um não fumante, você saberá.
Bem mais tarde, o detetive Church vai se encontrar com um homem que é a peça chave do enigma que ele tenta desvendar. O homem, Gray Baker – o espectador já sabe bem disso – é um fumante compulsivo; está muito velho, estraçalhado pela doença, certamente câncer; previsivelmente, pede um cigarro assim que Church entra no quarto; insiste, diz que está morrendo mesmo, que diferença faz? O detetive dá o cigarro – e então há a cena violentíssima, chocante, do mais profundo horror, ele fumando e a fumaça saindo pelo buraco da traqueostomia no pescoço.
Baker empurra de volta o maço de Marlboro na mesa, em direção a Church, e ele responde:
– Não. Fique com ele. Mesmo. Eu parei de fumar.
Onde começa o vício
Só 5% das pessoas que querem parar de fumar conseguem sem ajuda médica, segundo as estatísticas da OMS.
E a maior parte das pessoas se vicia na adolescência, mostram todas as estatísticas e evidências.
É por isso que a maior questão em pauta nas discussões sobre o fumo tem sido os jovens. Uma vez que fumantes e não-fumantes – que não se bicam em quase absolutamente nada – concordam em que o fumo é um vício, parece unânime que não é coisa para os jovens.
No discurso, na boca pra fora, sequer chega a haver polêmica: a própria indústria assegura que fumar é uma decisão de adultos. “A Abifumo sempre fez campanha contra a venda para menores”, diz o presidente da entidade, Nestor Jost. “Há muito tempo acreditamos que fumar é uma esolha exclusiva para adultos”, diz, institucionalmente, a Souza Cruz, maior produtora brasileira. “Apoiamos programas para prevenir e reduzir o ato de fumar entre crianças e adolescentes”, professa a empresa, após admitir que “parar de fumar pode ser difícil para muitas pessoas”.
A proteção dos jovens é o principal argumento usado pelos que defendem o fim da propaganda de cigarro.
“A propaganda de cigarro e de bebidas está hoje muito voltada para o adolescente, e isso é criminoso”, diz Neil Ferreira, um dos maiores nomes da publicidade brasileira, com a autoridade de quem conhece o assunto como muito poucos – já trabalhou em campanhas para a Souza Cruz, foi o criador da figura do Baixinho da Kaiser; já fumou (dois maços de Continental sem filtro por dia), e parou 32 anos atrás, depois de ler apenas um trecho de um relatório de umas 80 páginas da Associação Médica Americana: “Li só a parte da garganta, nem cheguei a ler sobre o pulmão e o estômago; parei na hora”.
Ele lembra que 20, 30 anos atrás, os adolescentes tomavam suas primeiras cervejas na sexta-feira – e tomavam só uma; hoje tomam várias, a semana inteira, na padaria perto do colégio. “O cigarro, assim como a cerveja, ficou mais barato, mais ao alcance do consumidor, em especial o adolescente. Ora, o jovem é indefeso; os adolescentes acham que sabem tudo, estão sempre cheios de razões, mas a gente sabe que eles não sabem nada.”
Neil lembra que o consumo hoje cai no mundo inteiro – só aumenta entre os adolescentes. “Não acredito que seja constitucional o direito de anunciar drogas permitidas”, diz. “Sou contra a publicidade de cigarro e cerveja, em qualquer meio, em qualquer veículo. Coloco no mesmo nível a propaganda de cigarros e a pornografia. Sou a favor da existência de defesas para a sociedade mesmo que parte dela diga que não queira. O direito de anunciar cigarro é o direito de anunciar o câncer.”
Amanhã, todos sabem
Nem nos Estados Unidos, o epicentro do movimento antitabagista mundial, se proibiu toda e qualquer propaganda de cigarro. Proibida na TV, que atinge abertamente crianças e adolescentes, ela é permitida na imprensa escrita. De acordo com o mesmo levantamento já citado da Comissão Federal de Comércio, em 1997 a indústria de tabaco gastou US$ 5,66 bilhões em propaganda e promoção, 10,8% mais do que no ano anterior. Esses gastos vêm aumentando ano a ano, desde 1987, com a exceção de 1994, quando houve uma queda de US$ 1,2 bilhão em relação a 1993.
“A diferença da propaganda entre os vários meios de comunicação é imensa”, diz Eduardo Viotti, diretor editorial da Market Press, que edita a revista Charuto et Cia – uma publicação em crescimento e expansão. Embora possa ser acusado de estar puxando brasa para a sua sardinha – e alguém não está? – ele lembra, com grande dose de lógica, que uma coisa é mostrar um comercial de 30 segundos na TV, com todas aquelas imagens associando o fumo ao prazer, ao sexo, à riqueza, e em seguida, por uns dois segundos, contra um fundo chapado, mostrar uma frase que começa com “O Ministério da Saúde adverte” – e outra coisa completamente diferente é um anúncio impresso, em que a a advertência sobre as doenças trazidas pelo fumo está ali parada, sempre alerta, ao lado da imagem que vende o produto.
O publicitário Flávio Antônio Corrêa, presidente da Abap, a Associação Brasileira das Agências de Publicidade, levanta outra questão séria. Hoje se discute a propaganda do cigarro. Amanhã pode ser a vez da sacarina, do café, do hambúrguer, do chocolate – ele também vicia, todos fazem mal, tudo do que a gente gosta é ilegal, imoral ou engorda, como dizem Roberto e Erasmo. Logo alguém estará apresentando um projeto de lei banindo a publicidade.
Millôr Fernandes, um humorista que gosta de falar sério, às vezes até demais, já levantou um temor ainda maior: o de que alguém, no futuro, levante a idéia de proibir o fumo, pura e simplesmente. Uma espécie assim de Lei do Ar Puro, décadas depois da Lei Seca – que levou os Estados Unidos ao período de maior criminalidade e corrupção da história. Proibição – lembrou Millôr – só leva a isso, corrupção e criminalidade.
Esperemos todos que não se chegue a tanto. Mas uma coisa parece certa, tão certa como a beleza estonteante de Rita Hayworth e o charme inigualável de Humphrey Bogart: os fumantes ainda terão saudades dos anos 90, este inferno. Dias piores virão.
Os dias piores estão chegando
Acréscimo em 8/2009: Não espero que alguém leia na íntegra o longo acima, que escrevi em 2000, e que, estranhamente, prenunciava um pouco o que viria. Mesmo assim, resolvi postar o texto neste meu site por um puro sentimento de revolta. Sou fumante, estou cansado de saber que o fumo causa males – mas me apavora o fascismo, a ditadura, a coisa de um sujeito ou uma corja decidirem o que cada ser humano pode fazer e não pode fazer. Acho essa coisa da lei do governador José Serra proibindo o fumo no Estado uma coisa tão asquerosa, grotesca, ditadorial, e ainda por cima idiota, contraproducente, quanto a Lei Seca de 1929, que proibiu o consumo de álcool nos Estados Unidos e abriu caminho para todo o tipo de crime. Serra vai contra não apenas a democracia, mas contra a própria razão – num momento em que o mundo todo discute formas da legalização das drogas, já que a guerra contra o tráfico foi perdida, conforme todos sabemos, o cara vai no sentido contrário.
Este é um site sobre filmes, mas, cacilda, é feito por um ser humano, que, felizmente, ainda é capaz de indignação diante do absurdo do absurdo do absurdo.
Como, felizmente, sei que não estou sozinho, convido novamente os eventuais possíveis leitores deste site a lerem o brilhante artigo do sociólogo Demétrio Magnoli, publicado no Estadão e no Globo em 9 de julho de 2009.
Em ‘Três Homens em Conflito (O Bom, O Mau e O Feio)’ há uma cena memorável com cigarro: quando Blondie e Tuco finalmente chegam ao outro lado do rio após explodirem uma ponte e porem fim a uma sangrenta batalha entre os exércitos da União e da Confederação, Blondie (Clint) se depara com um jovem soldado bastante ferido à beira da morte no meio de ruínas de uma construção destruída pelos tiros de canhão. O diálogo mudo que se segue com os olhares dos dois termina com Blondie – não por acaso o ‘Bom’ do trio que dá nome ao filme – colocando uma cigarrilha na boca do jovem, que traga com um misto de dificuldade e prazer antes de dar o último suspiro.
Não sou – nunca fui – fumante, mas me solidarizo com eles. Sobretudo pelo histerismo de alguns antitabagistas. Não só agora, com o veto.
Eu nunca tinha notado esse desconforto até um dia que fui a uma festa de casamento em Santos alguns três anos atrás. Festa divertida, todo mundo dançando, bebendo, comendo e eis que alguém no meio dessa diversão toda diz: ‘vou lá fora fumar’. Eu me espantei: ‘mas não é proibido fumar aqui! É uma festa…’ Ao que o cara disse: ‘prefiro ir lá fora para não me encherem o saco…’ Fui ao banheiro um pouco depois e passando perto da porta vi que havia outras pessoas estavam lá do lado de fora fumando. Senti pena. Eu até entendo que em determinados locais alguém fumando incomoda, mas acho que isso se resolve facilmente na conversa, como sempre aconteceu. Nunca vi fumante que não começasse a tomar cuidado quando alguém dizia que a fumaça estava incomodando. Geralmente pediam desculpas e até se prontificavam a apagar o cigarro.
Não dá para entender porque alguém que vai a um bar beber não pode conviver com a fumaça e o cheiro do cigarro. Tenho ouvido muito um papo assim: ‘é uma delícia voltar para a casa (depois de uma festa ou bar) sem aquele cheiro de cigarro na roupa ou no cabelo…’ Daqui a pouco, pelo mesmo princípio, os não bebedores vão começar a dizer que o bafo de cachaça dos bebedores também faz mal à saúde alheia. E proíbe-se bar de vender bebida.
E esses estudos sobre os efeitos da fumaça nos não fumantes me parecem exagerados.
Voltando ao filme, a cigarrilha do Blondie é um importante elemento da construção do personagem, que muda o lado do cigarro na boca apenas com um movimento labial em momentos chaves do filme.
E falando no personagem do Clint nesse filme, uma pequena curiosidade: é nessa cena dele com o soldado do cigarro que se define uma das principais características desse homem solitário sem nome (apesar de o Tuco o chamar de Blondie), protagonista desse filme e dos outros dois da trilogia do dólar de Sergio Leone. Após o soldado morrer com o cigarro caído no canto da boca, Blondie o cobre com o seu casaco e pega um poncho do morto. Poncho que vem a ser o figurino principal de Clint nos dois primeiros filmes da série, o que dá a entender que esse último dos três filmes seria o início da trilogia.
Abração
Há alguns momentos, situações, em que me pego pensando que valeu a pena ter criado este site. Ler este texto do Edmundo foi um deles.
Sim, eu li o artigo todo, pensando no mundo de dez anos atrás e me lembrando do que se vê hoje: mais e mais proibições, mais “ditaduras virtuosas” a caminho, como já se previa.
Não há como não associar os métodos dos que nos impõem essas legislações delirantes com os do nazismo: propaganda em massa, discriminação, demonização de uma minoria, segregação.
A imensa maioria de inocentes úteis e obedientes, dessa nossa sociedade individualista de hoje, aceita, aplaude – inclusive boa parte dos fumantes, com vergonha de si próprios, convencidos de que, sim, representam um riso à sociedade.
O que não se enxerga é o que está diante de nossos narizes: que o factóide da Lei Anti-Fumo, serviu mesmo para marcar o início da campanha de pavimentação do caminho de Serra à presidência, com amplo apoio de grande mídia – devidamente agraciada com generosas verbas publicitárias – e a relação promíscua entre jornalismo e publicidade oficial.
Também escrevo sobre isso, amigo, muito.
Visite-me quando puder.
http://www.ocolecionadordehistorias.com.br
Assino embaixo, do artigo e dos comentários. A indignação deve ser traduzida em ação: não votar e fazer campanha contra esses nazistóides. Serra & Cia. jamais terão o meu voto. Campanha contra o tabaco, tudo bem; mas perseguir e discriminar o fumante, qual é?
O cigarro adverte: o Estado mata!
Pô, Wanderley, esta sua frase é um brilho absoluto – O cigarro adverge: o Estado mata! Um brilho. Parabénsm e obrigado por abrilhantar o site com ela.