Dúvida / Doubt


4.0 out of 5.0 stars

Anotação em 2009: Uma maravilha de filme. Coisa de gente grande, para gente grande, com uma bela trama, um tema importante, um texto soberbo e atuações irretocáveis dos quatro atores que fazem os personagens principais, um padre, duas freiras e uma mãe – Philip Seymour Hoffman, Meryl Streep, Amy Adams, Viola Davis.

É um filme sobre religião, educação, amor ao próximo, certeza e dúvida, sobre os julgamentos que fazemos sobre as pessoas e seus atos sem ter prova concreta de nada, sobre como boatos podem destruir vidas. Um filme sobre conceitos morais, valores. Em suma: sobre temas fundamentais que a gente não vê toda hora no cinema, especialmente depois que ele passou a se voltar mais para os adolescentes que para os adultos.

Para simplificar, vou usar como base da sinopse, no parágrafo abaixo, um texto feito pela própria Miramax, a produtora e distribuidora do filme, reproduzido no iMDB, acrescentando uma ou outra coisinha:

dúvida - philip

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A ação se passa em 1964 – o espectador sabe a data porque bem no início do filme, no sermão do Padre Flynn, exatamente sobre certezas e dúvidas, ele se refere ao assassinato de John Kennedy, ocorrido no ano anterior. Estamos no Bronx, uma região habitada por muitos descendentes de irlandeses e italianos, e portanto católicos, e toda a ação se concentra numa igreja e na escola católica para rapazes e moças anexa a ela, a St. Nicholas. Um padre carismático, o Padre Flynn, está tentando modificar um pouco as estritas e restritivas regras de conduta impostas pela diretora da escola, a irmã Aloysius Beauvier (Meryl Streep), uma mulher repressora, careta, conservadora a não mais poder, que acredita no poder do medo e da disciplina. Os ventos das mudanças sociais, comportamentais e políticas estão soprando pela comunidade, e, de fato, a escola acabou de aceitar seu primeiro estudante negro, Donald Miller. A professora de Donald, uma jovem freira dedicada e inocente, Irmã James (Amy Adams), é levada a desconfiar que o padre Flynn está dando muita atenção a Donald. Ao expressar essa desconfiança à diretora, o mundo vem abaixo.

         Os tempos estavam mudando 

 O texto da Miramax diz “the winds of political change”. Acrescentei por minha conta (acrescentei várias outras coisas, na verdade, como os adjetivos para designar a Irmã Aloysius) as mudanças sociais e comportamentais, porque é fundamental realçá-las. 1964, para nós, foi a quarta-feira de cinzas no país, o golpe militar. Mas lá era o meio da década que mudou tudo. A eleição de Kennedy, em 1960 (derrotando o então vice Richard Nixon, o candidato dos republicanos que estavam no poder com Eisenhower), teve na época um efeito semelhante à de Barack Obama em 2008, pelo que significava como símbolo de mudança, renovação, arejamento. Como aconteceu em 2008, a eleição de um presidente jovial, charmoso, cheio de vitalidade – até então o mais jovem presidente americano vitorioso nas urnas – veio depois de um tempo negro: os anos 50 tinham sido marcados pela paranóia anticomunista, a caça às bruxas do marcarthismo no cinema, no teatro, na TV e na música, a caça às bruxas comportamentais (como bem mostrou, por exemplo, o recente Bettie Page), e uma profunda repressão aos costumes.

A luta pelos direitos civis, contra o fim do racismo até então institucionalizado nos Estados do Sul, estava no auge. Os universitários se engajavam na guerra aos preconceitos, ao som de canções como Blowin’ in the Wind, do disco de Dylan de 1963, e The Times They Are A-Changin’, do disco de Dylan de 1964 (não é coincidência que o texto da Miramax fale em ventos de mudança soprando; e, apesar de todo o esforço do senador Suplicy em transformar Blowin’ in the Wind numa bobagem, a canção é bela, emblemática, e de fato virou hino). Bem mais tarde, em uma emocionante canção autobiográfica sobre sua juventude, Paul Simon resumiria que 1964 “foi o ano dos Beatles, o ano dos Stones, um ano depois de JFK”. Foi o ano em que Lyndon Johnson, o vice de Kennedy, no poder depois do assassinato do presidente, transformou em lei a carta dos direitos civis, abolindo oficialmente a segregação racial no país.

A Igreja velha e a Igreja renovada

O mundo mudava, os Estados Unidos mudavam – e a Igreja Católica Apostólica Romana, com seus 1960 anos de história, mudava, e muito. Eleito em 1958, o Papa João XXIII, havia convocado o Concílio Vaticano II, que mudaria a face da Igreja, abrindo espaço para o que seria chamado de ala progressista, que resultaria na opção preferencial pelos pobres, na Teologia da Libertação – não é preciso ir tão longe, mas é absolutamente necessário que se lembre de João XXIII ao se ver este filme quase inteiramente passado dentro de uma igreja e de uma escola católica.

dúvida - meryl Há uma cena em que a madre diretora, a personagem de Meryl Streep, diz à jovem Irmã James que ela deveria colocar o quadro com a foto do papa logo acima da lousa, e Irmã James diz “mas este não é o papa atual, é o velho”, pois o quadro que a madre diretora segura é de Pio XII, o papa que havia morrido em 1958, deixando para sempre insepultas as suspeitas de que ou colaborou com o nazi-fascismo ou no mínimo, no mínimo, não teve postura claramente contrária a ele. Ao que a madre diretora responde que não importa o papa, importa é que a professora possa usar o vidro do quadro como um espelho para, enquanto escreve na lousa, vigiar o que os seus alunos estão fazendo.

“Não importa o papa. Não importam os meios, se os fins forem bons.” Na defesa das trevas, é sempre a mesma velha história.

A irmã Aloysius, a madre diretora, é contra as canetas esferográficas, essa modernidade que segundo ela deixa os alunos preguiçosos. É contra balas, qualquer tipo de doce, absolutamente contra açúcar no chá. É contra canções de Natal populares que falem de fantasias que possam lembrar lendas pagãs. Defende, como já se disse, a mais absoluta e rígida disciplina inspirada não no respeito, mas no medo, no terror. Tem uma profunda aversão a qualquer tipo de novidade, mudança.

Mais jovem que ela, em tudo mais arejado que ela, o padre Flynn fala em seus sermões dominicais da vida real das pessoas comuns; fala de dúvidas, de temores, como os que todos sentiram quando Kennedy foi assassinado: “A dúvida pode ser um elo tão forte e duradouro (entre as pessoas) quanto a certeza”, diz, no primeiro dos belos sermões que faz para sua paróquia diante dos espectadores do filme. Quer os pastores mais próximos do rebanho.

A irmã Aloysius é a velha Igreja Católica do Deus barbudo, vingativo, que aponta o dedo para os pecadores. O padre Flynn é a Igreja Católica pós-Concílio Vaticano II, que tenta se arejar, chegar mais perto dos fiéis, falar das coisas espirituais ligando-as ao dia-a-dia material das pessoas. O choque entre os dois é absolutamente inevitável – e, imprensados entre eles, ficarão a inocente Irmã James e o garotinho Donald Miller.

         Uma obra dedicada às freiras

O texto da peça escrito por John Patrick Shanley e tudo o que se fez a partir dele foram absolutos sucessos de crítica. O texto ganhou o Prêmio Pulitzer de Drama em 2005. A peça teve 525 apresentações em Nova York. Todos os quatro atores principais – Cherry Jones como a irmã Aloysius, Brian F. O’Byrne como o padre Flynn, Heather Goldenherst como a irmã James e Adriane Lenox como Mrs. Miller, a mãe do garoto Donald – foram indicados para o Tony, o prêmio mais importante do teatro americano. (Na peça, diferentemente do filme, o garoto Donald não aparece; só é mencionado.) A peça ganhou quatro Tonys: melhor peça, melhor diretor (Doug Hughes), melhor atriz para Cherry Jones, melhor atriz coadjuvante para Adriane Lenox.

O próprio autor fez a adaptação da peça para o cinema, e dirigiu o filme – que também teria prêmios e indicações. Embora não tenha levado nenhum Oscar, teve cinco indicações da Academia: ator para Philip Seymour Hoffman, atriz para Meryl Streep (mais um entre tantos, tantos), atriz coadjuvante para Amy Adams, atriz coadjuvante para Viola Davis, e roteiro adaptado para John Patrick Shanley. Fora o Oscar, teve outros dez prêmios e 32 indicações.

dúvida - amyAo final do filme, o diretor dedica a obra à Irmã James. Isso poderia levar o espectador a pensar que o filme se baseia em uma história real. Não, não é uma história real. É uma trama inteiramente fictícia – mas baseada, claro, em um pano de fundo real. Óbvio, todo o pano de fundo histórico, o macro, o da Grande História, Kennedy, a Igreja tentando se arejar, isso a gente sabe que é real. Mas também todo o pano de fundo do microcosmo descrito é verdadeiro. John Patrick Shanley, nascido no Bronx em 1950, estudou no St. Nicholas, o colégio mostrado no filme, naqueles anos de 1963, 1964. Mais ainda: todo o filme foi feito em locação no Bronx mesmo; o prédio que aparece como sendo o do St. Nicholas é o próprio colégio. Aos 58 anos, o diretor filmou suas seqüências nos exatos lugares em que passou a infância.

Se quiser ser universal, fale da sua aldeia, diz o mandamento.

Existiu, sim, uma Irmã James – e ainda existe; ela aparece nos especiais do DVD do filme. Foi professora do diretor ali no St. Nicholas, e ele a admirava. Deu o nome dela à personagem que criou, a da jovem freira inocente e bem intencionada que se vê no meio de um duelo de titãs.

Num dos especiais do DVD, há uma frase do autor e diretor que, na minha opinião, deveria estar no filme, nos créditos finais, logo depois que ele faz a homenagem à irmã James, sua professora da adolescência. O texto dele no especial é o seguinte: “Dedico Dúvida às muitas ordens de freiras católicas que devotaram suas vidas a servir aos outros em hospitais, escolas e casas de repouso. Embora elas tenham sido alvo de críticas malignas e terem sido ridicularizadas, quem entre nós foi tão generoso?”

         No meio da grande obra, uns errinhos bobos de ortografia

Autor de um texto brilhante, de um filme brilhante, profissional experiente, autor de 12 roteiros, John Patrick Shanley só havia dirigido um outro filme antes, Joe contra o Vulcão/Joe Versus the Volcano, de 1990, com Tom Hanks e Meg Ryan. Como este aqui é apenas seu segundo filme como diretor, e como é um filme excelente, dá para perdoar o pecadinho que ele comete: por cinco ou seis vezes, ele entorta a câmara, põe o chão na diagonal. Isso é um recurso em geral usado por diretores estreantes, uma boba tentativa de chamar a atenção do espectador, espantá-lo, assustá-lo, ou prepará-lo para um susto. Uma bobagem absurda, sem sentido.

Num filme como este, perdoa-se facilmente o pecadinho. É como um erro de ortografia em um belíssimo livro.

Há informações curiosas sobre o filme no iMDB. Consta que Oprah Winfrey – que estreou em A Cor Púrpura, de Spielberg, em 1985, e virou, como todos sabem, uma das maiores estrelas da TV americana, um dos maiores salários do mundo – mexeu pauzinhos para ter o papel da mãe de Donald Miller, mas o diretor teria se recusado até mesmo a submetê-la a um teste. Não sei se isso é verdade; estou, talvez irresponsavelmente, repassando um peixe que o iMDB vendeu. O fato é que Viola Davis está não menos que extraordinária nesse papel importantíssimo, embora apareça na tela em apenas duas seqüências seguidas que duram não mais que dez minutos.

O iMDB diz também que Natalie Portman – a maravilhosa atriz que esbanja talento desde os 13 anos de idade, quando fez O Profissional/Léon/The Professional – recusou o papel da Irmã James. Sabem-se lá as razões de Natalie Portman, mas o fato é que a carreira dela já tem brilho demais, e certamente terá ainda muito, daqui para a frente. E não poderia ser mais acertada a escolha dessa Amy Adams, que eu não conhecia, mas está ótima, soberba, no papel. Com um filme só, virei fã de carteirinha de Amy Adams.

De Meryl Streep e Philip Seymour Hoffman, nem é preciso falar. Eles são maravilhosos sempre, e estão estupendos aqui.

A seqüência em que o Padre Flynn faz seu segundo sermão, o sobre a fofoca, a maldade que se espalha como um veneno que ninguém depois tem condições de aprisionar de volta, é de um brilho absoluto. É o tipo da união perfeita de forma e conteúdo, o que se diz e como se diz. É de babar.

Dúvida/Doubt

De John Patrick Shanley, EUA, 2008

Com Meryl Streep, Philip Seymour Hoffman, Amy Adams, Viola Davis

Roteiro John Patrick Shanley, baseado em sua peça teatral

Música Howard Shore

Produção Miramax, Scott Rudin. Estreou em SP 6/2/2009

Cor, 104 min

****

18 Comentários para “Dúvida / Doubt”

  1. Gostei do filme, mas não muito. Dos atores, gostei mais do Philip Seymour Hoffman e da Amy Adams. Já vi freiras piores no cinema do que a de Meryl Streep…a mim ela não deu o mínimo medo. Acho que ela foi over várias vezes. O filme lembra vagamente Dom Casmurro, não? por essa coisa toda da dúvida e tal. Mas achei que ficou teatral demais pra um filme, várias cenas tiveram veias do teatro (não é à toa que foi o autor da peça quem adaptou e dirigiu). Ah , sei lá, pensando bem, acho que não gostei do filme, rsrs. E aquele final foi desapontador, meio frustrante.

  2. Adorei esse filme!!! Interpretações excelentes, ótimos direção e roteiro.
    Além de toda a questão história e ética que o filme aborda, é possível fazer um grande ensaio psicanalítico dos personagens.

  3. Sérgio, você deu o benefício da dúvida ao Padre Flynn! Fiz a mesma coisa. O que estava na cabeça do diretor ao escrever o roteiro não sabemos, mas tua explicação cabe perfeitamente.

    Você não conhecia Amy Adams? Precisa ver “Enchanted” o quanto antes!
    Adoro teu site! Um abraço,
    Stella

  4. Olá, Stella.
    Na verdade, acho que o filme é que dá o benefício da dúvida ao Padre Flynn, e deixa com o espectador a decisão. Como Machado com Capitu e Bentinho – conforme a Jussara, perspicaz sempre, já havia comentado aí acima.
    Eu, pessoalmente, acho que o Padre Flynn não cometeu o crime/pecado.
    Que bom que você gosta do site. É recíproco, você sabe – o http://bystarfilmes.blogspot.com/ está entre as minhas indicações…
    Um abraço.
    Sérgio

  5. Na minha visão completamente leiga e descompromissada com o macro, foquei no micro. Não me importei com a postura rígida da irmã interpretada pela Meryl Streep, pois de onde vejo (do alto de meus vinte e poucos anos) não há rigidez que se imponha por muito tempo, o mundo mudou e essa postura acabou sendo sobreposta. Na primeira vez que vi o filme, realmente a questão histórica não me foi relevante. Dessa personagem eu me impressionei um pouco de sua paranóia. Por quê e o quê a fazia pensar aquela situação daquela maneira. Me impressionei também com o caso do menino e ainda mais, muito mais, com a postura da mãe dele. Conhecendo um pouco sobre esse assunto (minha familia tem um tio religiosíssimo e “desvirtuado”) comecei a pensar no que fez essa mãe ver algo de bom onde podia e, acredito eu, havia algo de muito prejudicial. É uma visão válida também e que revela um outro lado, sei lá, às vezes um outro jeito de ver esse tabu. Também pensei em como podemos seguir, por teimosia, demonstrando certeza, quando nós mesmo temos diversas dúvidas, em todos os aspectos.

    Acho que isso acontece às vezes, dependendo do quanto e do quê conhecemos da vida, a leitura de qualquer coisa muda. Fiquei com a impressão de ter visto um filme totalmente deferente de você. Mas ainda assim um belo filme, que me acrescentou muito.

  6. Nao creio que a intencao dos realizadorez tenha sido de mostrar uma freira maligna(como escreveu uma leitora num comentario) e sim representar um lado conservador da igreja e um certo misto de inveja e obssecao desta por parte do Padre Flin. Mais um dos filmes que considero perfeito, pois aposto muito na narrativa como parte principal das obras. O suspense e muito bem construido e o clima de eterna tensao trabalbado com cadencia e eticiencia. Sao poucos os filmes, musicas ou livros que agregam as sensacoes do espectador para completar a obra. Duvids consegue isso com maestri, um dos melhores titulos de filme que ja vi, pois conta toda a historia e se resume a tal da bendita duvida. No meu universo paralelo o padre e inocente, acho isso perigoso rsrsrsrsr. Lembrou mesmo Dom Casmurro. Outro filme que necessita do espectador pra funcionar e A Origem e uma musica que acho muito misteriosa e digna de interpretacoes e Santa Chuva, linda cancao interpretada por Maria Rita e composta por Marcelo Camelo. Parabens po texto e pelo gosto musical, Dylan e um genio.

  7. Percebo qie voces valorizam muito a escrita dos textos e comentarios. Confesso que erro muito.rsrsrsrsr. levem a mal nao, e porque escrevo de celular, dai ja viram hein, nem um acentinho ele me ajuda. Abraco.

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