Antes que o Diabo Saiba que Você Está Morto / Before the Devil Knows You’re Dead


3.5 out of 5.0 stars

Anotação em 2009: O grande Sidney Lumet e o autor e roteirista Kelly Masterson pegaram pesado, e pesado demais, neste filme aqui. É assim uma espécie de cruzamento de Fargo com a danação eterna da tragédia grega.

Para realçar as semelhanças com Fargo, o filme tem a música suavemente cortante de Curter Burwell, o autor das trilhas para as obras dos irmãos Coen, Fargo inclusive, é claro. E tem ainda a frase que explicita tudo, que escancara a falta de sentido daquele jogo de erros que não pára nunca, só cresce, e cresce, e cresce.

– Tudo isso por causa de um pouco de dinheiro – diz a policial Marge Gunderson, a personagem de Frances McDormand em Fargo, depois de ver mais um cadáver da lista quase incontável de cadáveres que vão aparecendo um após outro.

Aqui a frase tem o mesmo significado, mas é mais longa. Surge, assim como a de Marge Gunderson, quase no finalzinho do filme. É dita a Charles, o pai dos dois personagens centrais, Andy (Philip Seymour Hoffman, provando mais uma vez que é um dos maiores atores em atuação no cinema americano) e Hank (Ethan Hawke ), interpretado pelo grande Albert Finney:

– (Quando você era jovem), não sabia nada como o mundo funciona. O que alguns são capazes de fazer por dinheiro. Acho que agora você sabe, Charlie. O mundo é um lugar perverso. Algumas pessoas ganham dinheiro em função disso.

Fargo tinha uma espécie de graça, ainda que fosse uma graça horrorosa, do mais negro humor que pode haver. O filme de Lumet, ao contrário, não tem nenhum tipo de graça. É porrada atrás de porrada no estômago do espectador.

O filme abre com uma trepada. Andy está comendo sua mulher Gina (Marisa Tomei, muito bem no papel de uma mulher fraca, sem personalidade); quando terminam, comentam que havia muito tempo não se comiam assim, com tanta vontade, e dizem que deve ser por causa das férias, da atmosfera do Brasil, do Rio.

(Mais um filme estrangeiro que fala sobre sensualidade do Brasil, sobre criminosos e o Brasil; se Lúcia Murat algum dia pudesse fazer uma edição revista e ampliada de Olhar Estrangeiro, deveria incluir este filme aqui, que até cita um dos filmes citados pela diretora brasileira, Feitiço do Rio/Blame it on Rio.)

Corta. Um letreiro diz:

Que você possa estar no paraíso meia hora

Corta, outro letreiro mostra o título do filme:

Antes que o Diabo Saiba que você está morto.

Corta, e sobre uma tomada de um carro em velocidade, um letreiro informa: “O dia do roubo”.

O carro pára diante de um shopping center, ainda deserto no início da manhã. Uma senhora abre uma joalheria cuja porta dá para a frente do shopping, para o estacionamento. Logo atrás dela, enquanto ela começa a arrumar as jóias nas vitrines, entra um ladrão armado e encapuzado, que vai recolhendo as jóias, tudo o que encontra, e jogando tudo num saco. Diz o tempo todo para a senhora idosa ficar parada, ou ele atira. Mas ele se entretém tentando quebrar um vidro forte, talvez blindado, de uma das vitrines, e ela pega o revólver numa gaveta e atira nele; ferido, ele atira nela; mesmo ferida, no chão, ela atira de novo nele, o corpo do bandido é lançado para trás, quebra a porta de vidro da joalheria, cai no chão. O motorista que estava no carro à espera do comparsa sai a toda velocidade. É Hank, o personagem interpretado por Ethan Hawke, e ele sai xingando Andy; logo veremos que é o irmão mais novo de Andy, o que na seqüência anterior estava comendo a mulher no Brasil.

Do lado de fora do carro, a câmara pega um close-up do rosto de Hank. E aí o veteraníssimo Lumet, aos 83 anos de idade, usa um pequeno truque para fazer uma quebra na narrativa: faz uma frenética montagem de tomadas rapidíssimas, enquanto a trilha de Curter Burwell faz um efeito como se estivéssemos ouvindo um vidro sendo estilhaçado. Aí surge mais um letreiro: “Hank: 3 dias antes do roubo”, e a narrativa volta atrás para mostrar o que Hank estava fazendo três dias antes.

O roteirista Kelly Masterson e Lumet usarão esse recurso formal de montagem frenética, efeito sonoro e quebra da ordem cronológica da narrativa diversas, diversas vezes, ao longo dos 115 minutos do filme. Não chega a ser novidade, de forma alguma – mas é um belo recurso dramático, e Lumet, exatamente por ser veterano e competentíssimo, extrai dele um poderoso reforço de narrativa à história que está contando. Mary comentou que o filme conseguia criar um clima forte de suspense, embora a gente já soubesse o que iria acontecer em seguida, o assalto à joalheria que é mostrado na segunda seqüência do filme.

É verdade – só que o espectador, naturalmente não sabe tudo o que vai acontecer em seguida. Sabe que haverá o assalto, e como será o assalto; mas, a cada nova interrupção da narrativa, cada volta atrás no tempo, a história avança um pouco mais, e vai revelando novos e novos detalhes da história – cada um mais assustador que o outro.

É um roteiro brilhante, o desse Kelly Masterson, sobre quem o iMDB, que tem tudo sobre todos, traz pouquíssimas informações. Diz apenas que o roteiro deste filme teve quatro indicações para prêmios. Não há citação de outros trabalhos dele – será que é possível que seja um jovem, com um trabalho tão absolutamente competente?

Nem os personagens das tragédias gregas clássicas conseguiram fazer tão profundamente mal uns aos outros.

Tudo por causa de um pouco de dinheiro.

Antes que o Diabo Saiba que Você Está Morto/Before the Devil Knows You’re Dead

De Sidney Lumet, EUA-Inglaterra, 2007

Com Philip Seymour Hoffman, Ethan Hawke, Albert Finney, Marisa Tomei

Argumento e roteiro Kelly Masterson

Música Carter Burwell

Produção Capitol Films.

***1/2

Título em Portugal: Antes que o Diabo Saiba que Morreste

7 Comentários para “Antes que o Diabo Saiba que Você Está Morto / Before the Devil Knows You’re Dead”

  1. Este é um filme de grande qualidade e que me surpreendeu por ser realizado por Sidney Lumet, que eu pensava que estaria inactivo ou até morto.
    Felizmente não é o caso e mostra que está em grande forma.
    Ainda são os velhotes como ele ou Clint Eastwood que dão qualidade ao cinema americano actual.

  2. Não obstante à boa ou à má qualidade cinematográfica dos filmes estrangeiros, tipo “Blame It On Rio”, “Blame It On Lisa” (da série de animação “Os Simpsons”) e este “Before the Devil Knows You’re Dead”, eu fico enojado em saber o quanto o Brasil é ridicularizado pelos cineastas estrangeiros e, na verdade, pela mídia internacional de uma maneira geral. Em seus filmes, suas crônicas ou comentários, faz-se constatado por todos a presença dos tradicionais estereótipos da “criminalidade sem limites”, “promiscuidade sexual”, “nudez libertina”, “mulata sambando”, “a favela e a imundice que ela traz”, etc, etc, etc. Se o Brasil lá fora é considerado como “A puta das Américas”, a culpa disto é nossa mesmo, do povo brasileiro, que sempre permitiu passiva e alienadamente que isto acontecesse. O Brasil sempre foi, e parece que sempre será, um país pessimamente administrado, desde sos tempos de D. Pedro I. Eu sinto vergonha desta ridícula imagem internacional que o meu país de nascimento tem, e se isto que está aí (esses filmes que ridicularizam o Brasil) é feito para divertir e entreter, eu, muito envergonhado, não estou achando graça alguma na piada.

  3. Tem uma fala do Andy que me marcou. Achei no imdb: “But my life, it, uh, it doesn’t add up. It, uh… Nothing connects to anything else. It’s, uh… I’m not, I’m not the sum of my parts. All my parts don’t add up to one… to one me, I guess.” Acho que ele sintetizou aí o zeitgeist, o espírito do nosso tempo.

  4. Olá, Sérgio
    Assisti esse final de semana e tive a mesma percepção que você em relação a esse filme, a premissa é semelhante a Fargo, mas Lumet não tem interesse nenhum no humor, pelo contrário, ele quer mostrar que o ser humano pode ser bom (a parte da irmã traz um pouco desse lado), mas que quando quer, o ser humano pode ser bem ruim.
    Sobre Kelly Masterson (é um homem e já está atualmente acima dos 50 anos) ele participou do roteiro de outro excelente filme: O Expresso do Amanhã (2013) do Bong Joon-ho.

  5. Caro Júnior,
    Muitíssimo obrigado por seu comentário – e por me informar sobre Kelly Masterson, que achei erradamente que fosse mulher. Graças a você, pude corrigir o texto!
    Um abraço.
    Sérgio

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