0.5 out of 5.0 stars
Anotação em 2009: A impressão que eu tive foi de que a diretora italiana Liliana Cavani colocou para si mesma um desafio: fazer um dos filmes mais nojentos, asquerosos, porcos, abjetos, degradantes, aviltantes da história. Conseguiu.
A Pele mostra a Nápoles logo após a saída das tropas nazistas e fascistas, em 1943, e a chegada dos americanos, vindos primeiro do Norte da África e depois do extremo Sul da Itália, desde a Sicília. Os americanos são mostrados como senhores do mundo, umbigo do mundo, uns imbecis, uns bárbaros. Os próprios italianos – famintos, depois de anos de guerra – são mostrados como mercadores, vendedores de tudo, a começar de seu próprio corpo e dos de seus filhos. São milhares, centenas de mulheres à venda nas ruas sujas da cidade, abrindo literalmente as pernas para a soldadesca, muitas usando perucas louras sobre os pelos pubianos.
Numa longa seqüência, centenas de mães oferecem seus filhos aos soldados americanos e marroquinos.
Em outra, o personagem central – Curzio Malaparte (interpretado por Marcello Mastroianni), um ex-fascista que havia aderido aos aliados e servia de relações públicas para os oficiais americanos junto ao povo da terra – leva uma aviadora americana, Deborah Wyatt (Alexandra King), a uma orgia que reúne uns 200 homens homossexuais, dando gritinhos histéricos à visão de uma escultura de um grande pau duro.
Em outra ainda, centenas, milhares de soldados americanos se comprimem numa fila para entrar em um quarto e observar a xoxota da jovem Maria Concetta (Liliana Tari), a única virgem de Nápoles, por quem um oficial americano, Jimmy Wren (Ken Marshall), havia se apaixonado. Cheio de nojo e ódio, o tal Wren avança escadarias acima até o quarto da garotinha, passa na frente de todo o resto, e enfia os dedos na menina, tirando com eles a virgindade que era o sustento da família.
E há um soldado que pisa em terreno minado e exibe para a câmara o intestino saindo para fora do corpo.
E tem também um homem que é aplastrado pelo trilho de um tanque de guerra americano, para a delícia da câmara sadomasoquista da diretora Cavani.
O que é horripilante ela mostra, o que é belo ela esconde. Claudia Cardinale mal pode exibir sua beleza espantosa; seu papel, como a mulher de Malaparte, é pequeno demais, e não há sequer um close daquele que é um dos mais belos rostos que já passaram pela frente de uma câmara de cinema.
‘Two dollars the boys, three dollars the girls’
Não li o livro A Pele, de Kurt Erick Suckert, que escolheu o pseudônimo de Curzio Malaparte – e, depois de ver o filme, tenho a certeza de que não vou querer ler. Mas dei uma folheada nele, e, pelo jeito, a diretora Liliana Cavani só exagerou um pouco, criando uma narrativa que beira o surreal – ou simplesmente mergulha nele. Mas o livro, publicado em 1949 – um relato autobiográfico sobre a experiência de Malaparte durante a chegada dos americanos a Nápoles – aparentemente já contém bastante daquela atmosfera retratada no filme:
“Mulheres lívidas, decompostas, de lábios pintados, rosto descarnado e coberto de pó de arroz, horríveis e lastimosas, paravam às esquinas das ruelas, oferecendo aos que passavam a sua miserável mercadoria: meninos e meninas de oito, de dez anos, que os soldados marroquinos, indianos, argelinos, malgaxes, apalpavam, levantando-lhes as vestes ou enfiando a mão entre os botões dos calçõezinhos. As mulheres gritavam: ‘Two dollars the boys, three dollars the girls’.”
E em seguida:
“Enquanto os preços do açúcar, do azeite, da farinha, da carne, do pão haviam subido e continuavam a aumentar, o preço da carne humana baixava de dia para dia. (…) Durante as últimas semanas, os negociantes por atacado haviam lançado no mercado um forte contingente de mulheres sicilianas. Não era tudo carne fresca, mas os especuladores sabiam que os soldados negros têm gostos delicados e preferem a carne não demasiado fresca.”
Uma cineasta que corre atrás de uma polêmica
Nos créditos iniciais, se diz que o roteiro, da diretora Liliana Cavani e Robert Katz, é “livremente adaptado” da obra de Malaparte. Mas, pelo pouco que vi, é até bastante fiel.
Liliana Cavani tem detratores e fãs. Em seu Dicionário de Cineastas, Rubens Ewald Filho diz sobre ela: “Seu Porteiro da Noite provocou um escândalo mundial que obscureceu um possível talento. Desde então prosseguiu na busca de polêmicas e novos escândalos. Mas não dava mais para esconder o mau-caráter. (…) Até justificou a perseguição aos judeus em O Porteiro.”
Já o historiador francês Jean Tulard defende a diretora: “Novas contestações com A Pele: teria Cavani traído Malaparte? Seu filme retoma o melhor da obra original: a virgem de Nápoles, os falsos pelos pubianos loiros das prostitutas, o banquete oferecido pelo general (interpretado por Burt Lancaster). Criticou-se em Cavani as cenas atrozes do italiano esmagado por um tanque americano e de forma geral o espírito do filme. Bem acima dessas críticas vãs, Liliana permanece uma das grandes figuras do cinema”.
O que seria do amarelo se todos gostassem de rosa? Ou então: tem gosto pra tudo.
Leonard Maltin desanca: “Panorama desagradavelmente amargo das tropas americanas em Nápoles depois da Liberação, baseado nas memórias de Curzio Malaparte (interpretado aqui por Mastroianni). Longo demais; pobremente dirigido e escrito. Um desastre”.
Desta vez, concordo plenamente com Maltin.
E ainda por cima vi a versão que saiu no Brasil em DVD, lançado por uma obscura empresa chamada Spectra Nova. O filme é uma co-produção Itália-França – dos anos 60 aos 80, uma boa parte dos filmes franceses era co-produção com a Itália, e uma boa parte dos italianos era co-produção com a França. Então imagino que deve ter havido uma versão original, com italianos falando em italiano e americanos falando em inglês, e uma versão para exibição na França. Pois a versão lançada no Brasil é dublada para o francês! É ridículo ver Burt Lancaster e os demais americanos dublados, falando em francês – e mais ridículo ainda é ver os americanos falando em francês, os italianos não entendendo o que eles disseram, e Marcello Mastroianni, dublado para o francês, traduzindo para o mesmo francês as frases que aí então os personagens italianos entendem.
Cáspite.
A Pele/La Pelle
De Liliana Cavani, Itália-França, 1981.
Com Marcello Mastroianni, Burt Lancaster, Alexandra King, Ken Marshall, Carlo Giuffrè, Claudia Cardinale, Liliana Tari
Roteiro Liliana Cavani e Robert Katz
Música Lalo Schifrin
Produção Opera Film Produzione, Gaumont
Cor, 131 min
Bola preta.
Vi o filme nessa mesma versão da Spectra Nova e, realmente, ver Mastroianni traduzindo o francês dos norte-americanos para o francês dos italianos beira o non sense.
Pelo menos há um mérito dessa empresa, que é o de lançar filmes que as outras produtoras não se entusiasmam em por no mercado. E a um preço baixo, embora a qualidade das cópias vá pelo mesmo caminho. De qualquer maneira, melhor que a Continental, que alia a má qualidade das cópias ao máximo preço de mercado.
Há um filme de Cavani que eu adoraria rever: Para além do bem e do mal, lançado em uma das edições da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, sem legendas, e que nunca entrou em circuito comercial. Um olhar bem particular para a obsessão de Nietzsche por Lou-Salomé, com a bela Dominique Sanda no papel de Lou.
não tenho vontade de fazer um julgamento moralista do filme.
Precisamente porque tenho a p+ercepção de que tanto o Autor como a realizadora pretendiamdar um soco no eztômago aos falsos moralismos e por a nu uma realidade abjecta: o tráficohumano, sobretudo a prostituição infantil e a desumanização das relações humanas decorrente da guerra. faz-me lembrar Céline.
é um filme a ver e a ser ~discutido. Claro que direccionado para adultos.
Eu vi-o em adolescente na TV e fiqui obviamente chocada. Mas é inesquecível.Como fixar o olhar da Górgona. Vemos o mundo tal como ele é. Perdemos a inocÊncia. Mas crescemos.
peço desculpa pelas gralhas do meu texto anterior. “estômago” e afins…é o que faz a pressa…
Assisti recentemente. À parte os problemas técnicos de toda ordem, tentei entender a intenção da obra, difícil de perceber à primeira vista. Penso que se buscou demonstrar o non sense do comportamento humano em períodos extremos como a guerra onde “qualquer um é capaz de ser cruel”, conforme apontado no filme, o que torna todos vítimas. A luta pela sobrevivência dispensa qualquer moralidade. O homem esmagado pelo canhão ao final talvez seja a própria Itália da época, perdida em meio às forças inimigas e vítima de sua própria fraqueza.
Nojenta é sempre a realidade em condições de guerra, assim como nos dias atuais o é em lugares onde o ser humano continua a ser sistematicamente humilhado pelo tráfico, a exploração sexual, a fome, o descaso de seus políticos (ê Brasil!) etc.
Nojento e sem propósito evidente pareceu-me alguns outros filmes, alguns do Pasolini por exemplo onde a miséria humana é fruto de pura perversão de seu criador. Ops, to sendo moralista!
Provavelmente em situações-limite a inocência/ignorância vá pro saco, mas crescer já se demonstrou que não é um resultado certo.
Vi o Filme a uns dias atrás. Tenho a Versão original, com italianos falando em italiano e americanos falando inglês, faz parte da minha coleção de cassetes. Realmente achei o filme muito ruim, mas teve uma utilidade cultural, afinal eu me interessei em pesquisar sobre essa fase da história, sobre a miséria daqueles dias, sobre as perucas pubianas, coisa que nunca imaginaria que poderia existir, e nem sei se existe. Mas de modo geral não aconselharia ninguém a vê-lo.