Novo Mundo / Nuovomondo


4.0 out of 5.0 stars

Anotação em 2008: Um filme espetacular, extraordinário, uma obra-prima. Além de ser uma homenagem às pessoas humildes, simples, trabalhadoras, ele é assim uma elegia ao cinema italiano, esse que já foi o melhor do mundo e permanece sendo um dos maiores.

Começa no interior duro, miserável, numa paisagem tenebrosa de pedras e pedras e mais pedras da Sicília do início do século XX – e aí ele é uma homenagem ao início do neo-realismo, de uma secura absoluta, do mais puro estilo documentário, que usa, ou parece usar, camponeses reais, gente comum, suja, encardida, como atores.

Depois entram na narrativa seqüencias oníricas que remetem ao melhor que Fellini fez. Ao longo de todos os 113 minutos, ele é cheio do mais profundo humanismo de que só o melhor cinema italiano foi capaz, de De Sica e o jovem Visconti a Monicelli, Scola. Traça um grande afresco, como Bertolucci tentou e até conseguiu, em Novecento, por exemplo, e Scola também perseguiu nas suas descrições de décadas e décadas de histórias dentro da grande História.

E, no entanto, todo o tom é simples, nada grandiloqüente – uma conquista dificílima de se conseguir. 

O filme tem algumas das imagens mais belas, impressionantes, acachapantes que vi nos últimos muitos e muitos anos.

 Um plano geral, em plongée, a câmara numa grua altíssima – centenas, milhares de pessoas vistas do alto, uma multidão compacta, as pessoas apertadas umas contra as outras; lentamente, suavemente, vai-se abrindo um espaço no meio da multidão, o espaço vai aumentando, crescendo – o navio apinhado de imigrantes começa a se distanciar do porto apinhado de gente que foi se despedir, ou simplesmente olhar a partida, talvez futuros imigrantes num próximo navio.

Mal o espectador está refeito dessa tomada maravilhosa, violentamente bela, e vem outra. De novo plano geral em plongée, câmara bem no alto, agora só da multidão no convés do navio. Ouve-se o apito fortíssimo do alto de uma das chaminés – e toda a multidão, espantada, chocada, se volta para cima, para o apito, para a câmara. É uma beleza de doer.

A seqüencia dos imigrantes amontoados sofrendo quando o navio enfrenta uma tempestade em alto mar é outro brilho. Fascinante: não é uma reconstituição naturalística; ao contrário, é estilizada, é quase um balé – trágico, desengonçado, torto. Mas, de novo, não passa a sensação de algo pretensioso, metido a besta, moderninho; não; o diretor consegue fazer uma seqüência trágica, violenta, de grande impacto, de forma inteligente, inventiva, sem no entanto cair numa coisa forçada, visivelmente cheia de criativol.

Ou seja: é aquela maravilha, aquele equilíbrio dificílimo de se conseguir. É usar criatividade na dose certa, sem ser pretensioso, chato. É como esculpir com o cuidado de ourives um verso até deixá-lo perfeito, e com a aparência de simplicidade. Coisa que, nas letras de música, só Dorival Caymmi e Paul Simon conseguiram.

E depois vem ainda a seqüência onírica, os protagonistas no meio de um rio de leite como a mente do personagem central imagina deva existir na América, o Novo Mundo, a terra dos sonhos. É tão simples e tão bonito que o diretor vai repeti-la no final, com um zoom para longe que transforma os imigrantes recém-chegados em algo como aves, de asas abertas rumo à terra nova.

Entre a primeira e a segunda seqüências do banho no rio de leite, mostra-se a chegada à Ellis Island, a porta de entrada da América dos sonhos, América América. Em Ellis Island, os imigrantes – ali os italianos se misturam aos tantos outros, russos, eslavos de várias nacionalidades, turcos, espanhóis – passam pelos exames médicos e pelos exames de capacidade intelectual: testes de aritmética básica (um porco e uma galinha, quantos pés têm, juntos?), de raciocínio espacial (como montar aqueles quebra-cabeças de madeira de oito ou dez peças, que nossas crianças aprendem antes dos dois anos de idade). E aí se dá o diálogo que é um tanto o cerne do filme, entre Lucy-Luce, a estranha no ninho dos imigrantes incultos, analfabetos, rústicos, rudes, interpretada por Charlotte Gainsbourg, e os oficiais da imigração.

Ela: “O que vocês estão querendo com esses testes? Identificar doenças transmissíveis?”

E o oficial, numa frase que fiz questão de copiar: “Infelizmente, senhora, foi cientificamente provado que a falta de inteligência é herdada geneticamente e é contagiosa, de uma certa forma. Não queremos gente de nível baixo se misturando com nossos cidadãos”.

E ela, embevecida, pobrezinha: “Que visão moderna!”.

Como se ainda faltasse algum brilho, uma das seqüências em Ellis Island e mais a seqüência final vêm acompanhadas pela voz de Nina Simone (ela própria, como eu pensei ainda enquanto via o filme, mais uma imigrante do que filha ou neta de imigrantes; uma africana que depois de algum tempo rejeitou a terra dos sonhos e a abandonou, enojada), primeiro em Feelin’ good (“it’s a new dawn, it’s a new day, it’s a new world”), e depois na versão longa, de mais de dez minutos, de Sinner Man.

         ***

Me lembro muito pouco de America America, o filme do imigrante Kazan, que só vi uma vez, aos 17 anos, na viagem que fizemos ao Rio, Geraldo, Jorge e eu. Me lembro bem do impacto que causa, logo após uma seqüência em que um imigrante é brutalmente espancado dentro do navio chegando à Ellis Island, o surgimento da Estátua da Liberdade. Na montagem das duas cenas, Kazan executa a lição dos russos, Einsenstein, Pudovkin, e provoca na cabeça do espectador a síntese delas – a certeza de que o Novo Mundo está muito, muitíssimo longe de ser a terra dos sonhos imaginada.

Recentissimamente, Mary e eu vimos As Noivas/Nyfes, de Pantelis Voulgaris, um belo filme grego sobre o mesmo tema, como este passado quase em sua totalidade num navio abarrotado de gente pobre, miserável, humilde, inculta, à procura da terra dos sonhos – que se provará, para muitos, a terra dos piores pesadelos.

 São dois grandes filmes, tanto America America quanto As Noivas. Este Terra Nova, no entanto, consegue ser ainda melhor – ou ao menos foi o que me pareceu agora. Com uma incrível parcimônia de palavras – que certamente extasiaria o imigrante Billy Wilder, que detestava o imigrante Chaplin pós-cinema falado porque ele teria passado a falar muito e mostrar muito menos -, esse Emanuele Crialese fala mais do que uma enciclopédia sobre imigração e o sonho de uma terra melhor. 

         ***

 O filme foi lançado em vídeo na França em 8 de novembro de 2007. Anúncio de página inteira na revista Studio daquele mês traz esta frase da L’Express, que eu, naturalmente, só vim a ler bem depois de fazer a anotação acima: “Emanuele Crialese convoque Federico Fellini, dépasse Elia Kazan. C’est du grand cinéma.”

C’est du grand cinéma.

Novo Mundo/Nuovomondo

De Emanuele Crialese, Itália-França, 2006.

Com Vincenzo Amato, Charlotte Gainsbourg, Aurora Quattrocchi, Francesco Casisa

Roteiro Emanuele Crialese

Música Antonio Castrignano

Produção RAI Cinemafiction. Estreou em São Paulo 7/12/2007.

Cor, 113 min (segundo o IMDB) ou 124 min (segundo a Vejinha)

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