Inferno / L’Enfer


Nota: ★★★☆

Anotação em 2007: Os créditos finais informam que o filme se baseia na trilogia Paraíso/Inferno/Purgatório, imaginada por Krzysztof Kieslowski (1941-1996) e Krzysztof Piesiwsky.

Pelo que eu sei, Kieslowski, depois do decálogo dos Mandamentos e da trilogia das cores, planejou fazer essa nova trilogia, mas morreu antes de iniciá-la. Paraíso/Heaven foi feito em 2002, dirigido por Tom Tykwe, o alemão do Corra, Lola, Corra, com Cate Blanchett e Giovanni Ribisi. Não foi um grande filme. Este Inferno, de 2005, dirigido por um jovem cineasta bósnio, é muito, muito bom. É um filme denso, pesado, desesperançado.

Os créditos iniciais vêem com imagens belíssimas, brilhantemente feitas, como se estivessem sendo vistas através de um caleidoscópio, de aves que atacam ovos em ninhos e de aves recém-nascidas que expelem do seu ninho outros ovos.

Temos, então, que quando o filme começa já sabemos que ele vai tratar de parentes que fazem mal aos filhos.

A ação começa com uma cena que se mostra obviamente como um flashback: uma mulher e sua filha garotinha entram de sopetão na sala de um homem num colégio e o surpreendem diante de um garoto inteiramente nu. 

Na cena seguinte, vemos esse um homem saindo da prisão; ao chegar do lado de fora ele se depara com uma ave bebê caída de um ninho. Gentilmente, ele pega o filhotinho e o recoloca no ninho.

Depois ficamos conhecendo três mulheres – todas elas com evidentes problemas psicológicos. Céline (Karin Viard, ótima atriz), a mais velha delas, cuida da mãe, inválida e muda, em uma instituição para idosos doentes. Céline sofre de insônia crônica e não consegue estabelecer relacionamentos afetivos.

Sophie (Emmanuelle Béart, estrondosamente bela como sempre), a do meio, enfrenta com histeria louca a infidelidade do marido – embora seja ela mesma infiel. Anne (Marie Gillain) tem uma paixão descontrolada e louca por um professor (Jacques Perrin) casado e pai de uma colega dela.    

Alternam-se na tela episódios da vida das três mulheres, aparentemente sem conexão entre eles ou entre elas. Eu já queria desistir de mais um filme francês em que os personagens morrem de angústia quando surgiu um choque: um desconhecido procura Céline, identifica-se como a pessoa que quando criança foi flagrada por ela nu, no gabinete do pai.

 Se você não viu o filme, não leia a partir de agora

 Um flashback conta ao espectador o que se seguiu à libertação do pai após cumprir sentença pelo abuso infantil. O pai voltou à sua antiga casa, quis conversar com as filhas, foi impedido pela mulher, a agrediu com violência e em seguida se matou.

O espectador finalmente entende por que as três mulheres têm sérios problemas psíquicos. Mas é pior: o tal desconhecido confessa a Céline que o pai era absolutamente inocente; ele, quando criança, era apaixonado pelo professor, procurou-o em seu gabinete na escola, declarou seu amor, tirou a roupa – e o professor não encostou um dedo nele. Foi naquele momento que ele foi flagrado pela mulher e pela filha, e em seguida julgado culpado.

O inferno, o inferno.

As três irmãs se reúnem pela primeira vez em muitos anos, e vão juntas visitar a mãe, para contar a ela que ela botou na cadeia um inocente, e depois levou-o a se matar. A mãe ouve a história e escreve no bloquinho que usa: “Je ne regrette rien” – não me arrependo de nada.

O inferno, o inferno.

Fiquei sem saber muito bem o que Kieslowski quis dizer com tudo isso. Talvez seja mais ou menos o seguinte: às vezes não sabemos muito bem quem provoca os profundos traumas no filho, se o pai, se a mãe; às vezes acreditamos que é um, quando na verdade é outro. Mas o fato é que os pais são, sim, capazes de ferir para sempre o espírito dos filhos.

 O inverso não é verdade. Pais que fazem tudo da maneira mais correta possível não necessariamente terão filhos saudáveis, produtivos, felizes. Podem ser surpreendidos e ver seus filhos se tornarem adultos desajustados, problemáticos, drogados, depressivos.

 Mas, se os pais erram, falham, se omitem, é quase certo que isso se refletirá nos filhos.

 Não sei se foi bem isso o que o Kieslowski quis dizer. Mas é o que eu acho na vida.

Inferno/L’Enfer

De Danis Tanovic, França-Itália-Bélgica-Japão, 2005.

Com Emmanuelle Béart, Karin Viard, Marie Gillain, Jacques Perrin, Carole Bouquet, Jean Rochefort

Roteiro Krzysztof Kieslowski e Krzysztof Piesiwsky

Cor, 98 min.

***

2 Comentários para “Inferno / L’Enfer”

  1. Gostei desse filme, e voltei hj pra ler a parte com spoiler. Não gostei tanto das atuações. A Emmanuelle Béart é uma atriz razoável mas ficou o filme todo fazendo biquinho, um saco. Gostei mais das outras duas, embora a Karin Viard esteja muito melhor que a atriz que faz a caçula. Eu adoro o Kieslowski, pena ele ter falecido antes de poder fazer mais esse filme. Mas muitos dos melhores ângulos de algumas cenas eram a cara dele, cópia fiel.

    Eu não sei o que ele quis passar… Mas pra mim , a mãe sabia que o pai era inocente e por maldade ou vingança, o denunciou (ela era uma pessoa totalmente transtornada, tratava a filha com certa crueldade ; e quando ela diz no final que não se arrependia de nada, pra mim ficou claro). Freud explica que todas tiveram relações atormentadas por causa do ocorrido , e da ausência do pai. Eu acho que um casal com uma relação problemática, seja pelo motivo que for, vai sempre afetar negativamente a vida dos filhos. Infelizmente , o que vc falou é certo, uma boa criação não livra os filhos de serem desajustados, mas ao menos os pais fizeram a parte deles. No caso, a culpada de tudo, pra mim, foi a mãe, embora o filme nos leve a pensar que tenha sido o pai. Ele dá margem a muitas interpretações…

    Eu não tinha captado que a Sophie tb traía o marido, foi cair minha ficha aqui, quando li sua resenha. Que relação perturbada a dela com o marido… um verdadeiro tormento , inclusive pra quem assiste, rs.

    Essa sua frase disse e resume tudo, independente de quem tenha sido a culpa: “Mas o fato é que os pais são, sim, capazes de ferir para sempre o espírito dos filhos”.

    Desculpe o comentário enorme,me empolguei :D.

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