Spitfire Grill – O Recomeço / The Spitfire Grill


3.0 out of 5.0 stars

Anotação em 1997: Um belo filme, extremamente sensível e extremamente bem feito, apesar do custo baixo (U$$ 6 milhões) e de ser, parece, o primeiro do diretor. O cara esbanja talento. Os atores todos são muitíssimo bem dirigidos. De Ellen Burstyn, que faz Hanna, a dona da lanchonete do título, se podia mesmo, é claro, esperar uma grande interpretação. Mas a moça Alison Elliot, que faz o personagem central, Percy, é uma novata, vem de carreira como modelo, e está muito, muito bem, numa rica mistura de um pouco de cinismo (adquirido na dureza da prisão), muita pureza e muita coragem. Marcia Gay Harden também está muito bem como Shelby, a mãe de família simples, desprezada como boba pelo marido que a trata como empregada. Zlotoff optou pelo estilo simples, quase acadêmico, de narrativa; nenhuma pirotecnia, nenhum criativol. Tudo simples, direto, honesto, despretencioso – e bom, muito bom.

É um filme emocional, que pretende atingir mesmo o coração, com vários momentos feitos para neguinho chorar ou engasgar. Lembra, sim, em algumas coisas, a sinceridade e a sensibilidade de Tomates Verdes Fritos. E tem, sim, uma “mensagem”, um “sermão”. (No Estadão saiu entrevista com essa Alison Elliot, em que ela diz: “Nosso filme não tem crucifixo, Bíblia, padre, nem faz sermão”. Ela diz isso porque o filme foi financiado pela Liga do Sagrado Coração, uma organização católica do Mississipi.) Mas ele tem, sim, mensagem e sermão. E não tem problema nenhum ter mensagem e sermão.

O argumento, aparentemente, é do próprio Zlotoff. Não há menção a baseado em uma história de; o letreiro diz “escrito e dirigido por David Lee Zlotoff”. E o Estadão diz que ele poderá ser indicado para o Oscar de roteiro original.

Se for isso mesmo, e deve ser, mais palmas para o cara, porque a história é muito boa. Muito boa mesmo.

Uma sinopse que não estragasse o prazer do espectador com o desenrolar da história seria mais ou menos assim, usando o velho chavão: jovem mulher sai de penitenciária depois de cumprir sua pena e escolhe para recomeçar a vida uma cidade muito pequena do Maine, onde o xerife local arranja trabalho para ela numa lanchonete de uma mulher que esconde um segredo. O passado de presidiária deixa a população da cidadezinha curiosa, temerosa e às vezes apavorada. A chegada da estranha vai mudar as vidas de várias pessoas.

Bem, a sinopse poderia ser por aí. Mas a história é realmente rica. O espectador não sabe o crime que a moça cometeu – só saberá exatamente a verdade muito perto do fim, embora a própria Percy diga que foi assassinato não premeditado. Mas desde o início se percebe que o autor está falando do velho e fundamental tema da segunda chance – e, na cidadezinha (acho que é Galead), como em tudo na vida, há os que se propõem a permitir a segunda chance, e os que se opõem a ela. Hanna, a dona da lanchonete, está no primeiro grupo, embora não receba a estranha com propriamente entusiasmo. Mas vai sendo conquistada por ela aos poucos. O sobrinho dela, dono da imobiliária do lugar, Nahum (Will Patton) lidera o grupo dos que se opõem à segunda chance. A mulher dele, Shelby, ao contrário, fica amiga de Percy, e encontra nela um conforto para a sua vidinha pacata e sem sentido.

Shelby conta a Percy a história de Hanna: seu filho Eli, um excelente desportista, se alistou para a guerra do Vietnã, seguindo o exemplo do pai, herói da Segunda Guerra. Mas nunca mais voltou. O pai morreu de desgosto. Desde então, Hanna tenta vender o Spitfire Grill – mas quem iria querer comprar uma lanchonete perdida num fim de mundo?

Percy sugere algo de que ouvira falar na prisão (onde ela trabalhava como atendente telefônica de um órgão estatal de turismo): um concurso de ensaios. Quem mandasse US$ 100, mais um texto, participaria de um concurso; quem vencesse o concurso levaria a lanchonete. Percy conta a história para uma amiga que continuava na prisão, a amiga sopra a informação para jornalistas, e de repente se despejam sobre o posto de correio da cidadezinha centenas, milhares de cartas, US$ 200 mil.

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 O segredo de Hanna é que ela alimenta uma pessoa que mora no meio do mato, nas imediações da cidade, de cuja existência só ela sabe. No finalzinho do filme, o espectador fica sabendo que é Eli, o filho, que voltou pirado do Vietnã; com o dinheiro da venda eventual da lanchonete, Hanna pretendia pagar um tratamento para o filho.

Os dropouts, os desajustados, os fora da normalidade, Percy e o eremita, se aproximam aos poucos. Quando Hanna percebe isso, tem um ataque – por medo de que o segredo seja descoberto, por medo de que, tendo já se aproximado de alguém, ele nunca se aproxime da própria mãe.

O cenário está armado para a tragédia. Nahum tira o dinheiro do cofre e o coloca num saco, o que é usado para dar comida para o eremita (cuja identidade a essa altura o espectador ainda não sabe exatamente); mais tarde ele explicaria que fez isso para evitar que Percy roubasse o dinheiro. Percy pega o saco sem saber que o dinheiro está nele, e o deixa do lado de fora da casa para que o eremita venha pegar.

Na manhã seguinte Hanna procura o dinheiro no cofre e não acha, assim como não acha Percy. Quem localiza Percy é Shelby, que ensinou a ela a calma da igreja hoje não mais usada, por falta de pastor. A polícia sai atrás do eremita; Percy vai atrás dele para avisá-lo para fugir, e morre levada pelas águas de um rio.

O sermão sobre a necessidade, o dever, a obrigação moral de dar aos ex-convictos a segunda chance é claro, forte, e bom. E, antes de chegar a ele, o diretor joga com diversas coisas sensíveis – o tênue despertar da consciência de Shelby, por exemplo; a doçura que vai aos poucos se revelando por trás da carcaça fria de Hanna; o entendimento final de Nahum de que ele fez o julgamento errado de Percy e em suma foi responsável pela morte dela. E o difícil, complicado, mas real recomeço de Percy – cujo crime, na verdade, era defensável. Ela matou o padrasto que durante anos abusou sexualmente dela.

Na cena final, a cidade está recolhendo dinheiro para o presídio-centro de reabilitação.

O filme ganhou o prêmio do público do Festival Sundance de 1996; um braço da Columbia, a Castle Rock, pagou US$ 10 milhões pelos direitos de distribuição. O filme teve boas críticas e poderá concorrer ao Oscar.

É isso aí. Os independentes vão salvar o cinema americano. Enquanto Hollywood gasta fortunas cada vez mais inacreditáveis para fazer aventuras imbecis, cheias de violência, perseguições, tiros, toda aquela parafernália imbecilizante, os independentes falam de sentimentos, de seres humanos.

Spitfire Grill – O Recomeço/The Spitfire Grill

De Lee David Zlotoff, EUA, 1996.

Com Alison Elliott, Ellen Burstyn, Marcia Gay Harden, Will Patton

Roteiro Lee David Zlotoff

Cor, 117 min

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