O Povo Contra Larry Flynt / People vs. Larry Flynt


4.0 out of 5.0 stars

Anotação em 1997: O texto abaixo foi escrito quase um mês antes de eu ver o filme:

Milos Forman. Meu Deus, como eu admiro esse cara. Como ele é brilhante.

Escrevi apaixonadamente sobre o Tieta do Carlos Diegues e depois fui dar uma zapeada. E, no canal americano que transmite íntegras, estava lá o Milos Forman, sendo entrevistado no National Press Club, de Washington (depois eu veria que foi no dia 31 de janeiro deste ano, 1997), sobre People vs. Larry Flynt. Fiquei de olhos e ouvidos grudados, e não conseguia sair de frente da TV nem pra pegar cerveja.

Ele defendia o seu filme, defendia a obra contra as críticas todas da direita raivosa que a consideram uma defesa da pornografia, da sujeira que ameaça os valores americanos e blábláblá.

Quando eu liguei no canal, ele estava falando sobre a autoria e a posse das obras de arte. E ele fala naquele inglês de imigrante, daquele tipo que foi pra Hollywood construir filmes, porque se fosse arquiteto e vivesse no tempo das pirâmides teria ido para o Egito construir pirâmides – para usar uma comparação que ele mesmo usou, há muitos anos. E ele fala com uma calma e uma segurança de fazer inveja a qualquer um, uma coisa brilhante, lúcida, bem falada. Falou coisas tipo assim:

“Se vocês considerarem que Cidadão Kane é de Orson Welles, ou o Hamlet de 1948 de Laurence Olivier, ou o Hamlet de 1996 de Kenneth Branagh, vocês estarão totalmente errados. Quem possui todos esses filmes, quem tem todos os direitos sobre eles, são grandes companhias, grandes corporações, muitas até estrangeiras, e que podem colorizar, mudar, cortar, acrescentar, dar novo cast a esses filmes todos – e isso é algo que os Estados Unidos deveriam repensar.”

Depois falou especificamente do filme:

“Não é um filme pró-pornografia. Não é um filme sobre a revista Hustler. É um filme sobre o direito à expressão de pensamento, sobre a Primeira Emenda da Constituição. Este país é o mais poderoso do mundo não porque seja o mais populoso, ou o mais rico, mas porque é o mais livre.”

(E é impossível não lembrar o Leonard Cohen: a democracia está chegando aos EUA:

Está vindo da tristeza das ruas

dos lugares sagrados onde as raças se encontram

do homicida que aparece em cada cozinha

pra determinar quem vai servir e quem vai comer.

Dos poços do desapontamento

onde as mulheres se ajoelham para rezar

pela graça de Deus no deserto aqui

e no deserto lá longe

A democracia está chegando aos EUA.

 

Está chegando à América primeiro,

o berço dos melhores e dos piores

é aqui que eles têm o espaço

e o maquinário para a mudança

e é aqui que eles têm a sede espiritual

É aqui que a família está destroçada

e é aqui que os solitários dizem

que o coração tem que abrir

de uma maneira fundamental

A democracia está chegando aos EUA.)

E dizia o Milos Forman:

“Se pensarmos que os valores de nossa sociedade” (sim; imigrante naturalizado, ele diz “nossa”, quando se refere à sociedade americana, e isso por várias vezes) “possam ser ameaçados por uma revista pornográfica, ou por um filme, então devemos chegar à conclusão de que os founding fathers que escreveram a nossa Constituição estavam totalmente errados.”

“A pátria de Goethe, Mozart e Freud sobreviveu a Hitler porque combateu Hitler. As pátrias de Tchaikowski, Dostoiéviski, Tolstói, Kafka sobreviveram a Stálin porque combateram Stálin. Foram maiores do que os ditadores, que passam.”

“Toda censura, por menor que seja, sempre, necessariamente, leva a uma censura maior. Começa-se censurando uma coisa específica, amplia-se a censura a outras e outras coisas. Por isso é necessário ser contra todo o tipo de censura.”

“Me acusaram de mostrar um Larry Flynt glorificado. Eu não glorifiquei Larry Flynt. Eu o mostrei como uma coisa ambígua. Eu não saberia dizer se ele usou a Primeira Emenda para defender o direito à livre expressão ou se para defender o direito dele de continuar ganhando dinheiro com a pornografia. Provalmente ele também não saberia dizer. Provavelmente foi por causa das duas coisas ao mesmo tempo. Ora, Oskar Schindler era um benfeitor da humanidade, que salvou centenas de vidas, ou era um nazista que se aproveitou de centenas de vidas de judeus para ganhar dinheiro para si próprio? Eu não sei, provavelmente ele foi as duas coisas ao mesmo tempo, de uma maneira ambígua, porque é assim que são as pessoas, e por isso foi assim que eu tentei mostrá-lo no meu filme.”

Depois que ele terminou sua exposição, vieram as perguntas, feitas pelo presidente do National Press Club, um garoto jovem, em nome dele próprio e também em nome de assistentes. O garoto apresentou a ele uma pergunta de pessoa de fora, a respeito de sua carreira, e ele explicou:

“Pertenci a uma geração de diretores checos que foram favorecidos por um instante de abertura” (não usou a expressão Primavera de Praga), “que fizeram filmes que foram aprovados no Ocidente, e os dirigentes comunistas detestavam aqueles filmes, mas ao mesmo tempo ficavam absolutamente contentes com o fato de aqueles filmes estarem recebendo elogios no Ocidente. E por isso pudemos continuar fazendo filmes, até que os tanques russos invadiram a Checoslováquia, em 1968, e aí eu fugi para cá.”

E depois perguntaram se ele se considerava um corajoso, porque alguém em um jornal disse que o filme People vs. Larry Flynt tinha começado um Watergate do cinema, e ele disse:

“Não, eu me considero sobretudo um covarde, tanto que eu fugi do meu país. Eu poderia ter ficado lá e lutado por mais liberdade. Ou poderia ter colaborado com os comunistas. Mas, não; eu fugi.”

E perguntaram o que ele acha do movimento de pais pedindo mais informações sobre a programação das TVs, de maneira a que possam monitar os filmes a que seus filhos vão assistir, e ele disse:

“Acho que essa é a única forma de censura aceitável: a censura feita pelos pais para os seus filhos. Até porque, se isso puder ser feito, os pais vão ter que parar de culpar os outros pelos problemas que acontecem a seus filhos – a televisão, os jornais, os filmes, a violência, a sociedade, o mundo exterior. Aí eles poderão admitir as suas próprias responsabilidades na educação de seus filhos.”

E perguntaram se, já que ele é contra todo tipo de censura, ele seria também contra a criminização das drogas, e ele disse:

“Não sou um especialista em direitos civis, e não gostaria de ficar falando sobre coisas que não entendo completamente. Mas devo dizer que sou contra as drogas e contra o fato de os jovens terem acesso às drogas e poderem se viciar. Isso colocado, gostaria de questionar: milhões e milhões e milhões de dólares estão sendo gastos há décadas na guerra contra as drogas. E é necessário reconhecer que, até agora, essa guerra só tem um vencedor: os senhores das drogas. Isso é muito triste, mas é necessário reconhecer que essa é a verdade.”

E perguntaram a ele se, como checo de origem, tendo conhecido de perto o comunismo, ele defenderia a liberdade de expressão também para os comunistas. E ele – transmitido na íntegra pro mundo inteiro -, disse o óbvio:

“Pode parecer para alguns estranho eu dizer isso, mas não tenho dúvida alguma: os comunistas têm que ter o direito total de se expressar. Porque, se excluirmos os comunistas desse direito, daqui a pouco excluiremos mais outros, e mais outros. E, por mais estranho que possa parecer, os comunistas têm todo o direito de pregar o que eles quiserem, até mesmo diante da possibilidade de eles obterem o poder pela via democrática e mudarem todas as regras.”

Já perto do fim, o presidente do National Press Club disse que, em nome de estudantes e jovens que querem fazer cinema, gostaria de saber sua opinião sobre de que forma fazer filmes independentes. E ele disse:

“Isso é simples, é muito simples. Tell the truth without being boring.” (Disse e repetiu a frase, pausadamente.) “Digam a verdade sem serem chatos. Basta isso. Mas não que isso seja fácil. Ao contrário. É muito fácil mentir, e é até engraçado; as audiências gostam de ver mentiras, e se divertem com mentiras.”

Meu Deus do céu e também da terra, era preciso que um checo, criado no comunismo e crente no tal do socialismo com a face humana (“Lênin, desperta, Brejnev enloqueceu”, escreviam os checos da Primavera de Praga quando os tanques russos mataram a Primavera de Praga, em 1968) se mudasse pros Estados Unidos pra botar aquele país pra pensar. Era preciso que fosse Milos Forman o homem pra fazer aquele país pensar sobre liberdade de expressão, cerca de 60 anos depois de um imigrante italiano chamar a atenção daquele país para o absurdo degradande e desagregador que é a má distribuição de renda. Credo, não tem mais que 40 anos que aquele país chegou bem perto do nazismo, na paranóia anticomunista que fez vítimas como o Dashiel Hammett e a Lillian Hellman. E foi preciso um Milos Forman pra esbofetear a maioria silenciosa americana que mata negro e imigrante e joga as cinzas embaixo do tapete.

(Credo de novo: em 1985, escrevi na revista Afinal o seguinte, num texto em que já comparava o imigrante Forman com o imigrante Capra: “O Hair de Forman, muito mais que uma historinha sobre os hippies, foi um painel da América dividida pela Guerra do Vietnã; mas ele iria ainda mais fundo no filme seguinte, Ragtime, de 1981, mostrando com que grandes doses de racismo, violência e amoralidade se construiu a maior, mais rica e mais complexa nação da história”. Forman é um fenômeno tão absurdo que, mesmo sendo a coisa mais anticapitalista e mais antiamericana que já existiu desde que Einsenstein tentou filmar A Tragédia Americana e não conseguiu, faturou todos os Oscars importantes em duas ocasiões diferentes, por Um Estranho no Ninho e por Amadeus.)

Detesto misturar a obra de artista com as opiniões do artista. É errado. Mas não consigo deixar de admitir: o Milos Forman me deixa apaixonado com o que ele pensa e faz e diz. E isso me faz gostar ainda mais dos filmes dele.

Grande Milos Forman.

O Povo Contra Larry Flynt/People vs. Larry Flynt

De Milos Forman, EUA, 1996.

Com Woody Harrelson, Courtney Love, Edward Norton, James Cromwell

Roteiro Scott Alexander e Larry Karaszewski

Música Thomas Newman, canções do R.E.M.

Cor, 129 min

8 Comentários para “O Povo Contra Larry Flynt / People vs. Larry Flynt”

  1. Não me lembro se vi o filme quando saiu. Agora está disponível na Netflix e eu tentei ver mas desisti ao fim de 20 minutos. O assunto não me interessa nada, pornografia não é comigo. Embora entenda a boa intenção do realizador – a liberdade de expressão deve ser sempre defendida.

  2. Excelente filme. A argumentação do advogado na Suprema Corte é uma ode à liberdade.

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *