Fantasmas do Passado / Ghosts of Mississippi


3.5 out of 5.0 stars

Anotação em 1997: Um grande filme. Um grande filme. Desde a apresentação: uma bela voz de negra canta uma bela música, enquanto surge um desenho de um navio negreiro, e depois uma série de filmes de cinejornais, pequenos trechos documentando dois fenômenos ao mesmo templo: negros sendo espancados por policiais e negros participando cada vez mais na vida americana, nos esportes, nas artes, na educação, nas forças armadas. Só a apresentação já é de arrepiar.

Ao final da apresentação, o letreiro avisa: This story is true.

Os letreiros que situam o espectador no tempo e no espaço seguem ao longo de todo o filme. Para lembrar, a todo momento, que esta história é verdadeira.

aghosts1Começa com o letreiro informando: Delta do Mississippi, junho de  1963. Mostra-se, na primeira seqüência do filme, o assassinato de Medgar Evers, o ativista por direitos civis dos negros, cujo nome me é familiar desde os anos 60, por causa de Dylan e Joan Baez. Um branco racista, Byron De La Beckwith, atira com uma espingarda de mira telescópica nas costas de Medgar quando ele está saindo do carro para chegar em casa.

Ainda não é a hora de chorar, diria o jovem Dylan de 1963. A hora de chorar vem logo em seguida, quando um all white jury formado só por homens se forma para julgar o assassino. No momento em que a viúva, Myrlie (Whoopi, grande), está sendo ouvida na cadeira de testemunhas, um ex-governador do great State of Mississippi entra no local reservado à acusação e à defesa, e cumprimenta o assassino. Beckwith sai livre depois de duas tentativas de julgamento nas quais o juiz nem mesmo leva o caso a júri.

Estamos a 15, 20 minutos de filme. Há um corte para outubro de 1989. A viúva Myrlie entra na sala do Distric Attorney, o promotor público de Jacksonville, Ed Peters (Craig T. Nelson), pedindo a reabertura do processo. O DA a recebe com o assistant DA, Bobby DeLaughter (Alec Baldwin). O DA explica as dificuldades de reabrir o caso tantos anos depois do assassinato; a viúva sai furiosa, taxando o DA de racista.

Nas semanas seguintes, o assistente da Promotoria vai à caça de informações para reabrir o caso. Com um detalhe: ele é casado com a filha do juiz racista que libertou o assassino (e agora já está morto).

aghosts3Ele visita o lugar onde Medgar foi assassinado. Ouve fitas gravadas de aparições públicas de Medgar. E lá pelas tantas liga para a viúva e diz que está se esforçando para conseguir reabrir o caso. Ela pergunta por que, e ele diz algo como: Olhe, eu tinha 11 anos quando seu marido foi assassinado. Mas estive agora no lugar onde ele morreu. Tenho a mesma idade hoje que ele tinha quando foi morto. Tenho três filhos, como ele tinha. Ninguém pode matar um homem que está chegando em casa para ver os filhos.

O filme vai mostrando e demonstrando a força brutal do racismo, a profundidade com que ele está enraizado naquela sociedade. E, ao mexer com acontecimentos do começo terrível dos anos 60 e destes tão politicamente corretos anos 90, mostra como tanta coisa mudou, embora tanta coisa tenha permanecido exatamente igual. A vida particular do assistente da Promotoria passa a ser invadida pelos racistas brancos; sua mulher o abandona, claro, mas isso não traz problemas; o casamento era mesmo uma merda; mas pixam seu carro, xingam seus filhos, batem em seu filho mais velho, mais tarde vão ameaçar jogar bomba em sua casa. Quando ele conversa com os filhos sobre o que está acontecendo, e explica que Medgar Evers era um homem que lutava pelo direito de os negros entrarem nos mesmos lugares que os brancos, os meninos – afinal, criados nos anos 90 – se espantam: Mas e qual é o problema? Para as novas gerações, é absolutamente natural o que fazia os negros serem assassinados nos anos 60, e essa é uma das belas coisas mostradas pelo filme.

Mas, no momento mesmo em que seu filho está sendo atendido no hospital depois de levar um soco no nariz, o promotor discute com a mãe, que não esconde que não ficou triste ou chorou uma lágrima quando Evers foi morto, e que agora quer que o filho simplesmente abandone o caso. Numa conversa no churrasco com o pai, ouve dele que muita coisa mudou, que os direitos são iguais, mas que brancos e negros, de fato, são e serão sempre segregados. Mais tarde, diante da ameaça de bomba em sua casa, ele mesmo chega a fraquejar, e a repetir para a nova mulher – ela, sim, uma não-racista por crença e coração – os argumentos do pai.

Rob Reiner, que fez um belíssimo filme de julgamento, Questão de Honra, falando de outra face da parte hipócrita, nojenta e reacionária do Império, o militarismo, a direita babante anticomunista, faz um outro belíssimo filme de julgamento mexendo com a ferida grande do racismo. Há muito vai e vem jurídico e pessoal (quando as investigações do assistente da Promotoria estão avançadas, a viúva desconfia dele, recorre a políticos negros, ele é quase afastado do caso), novas provas, novas revelações;

aghosts2Baldwin e Whoopi estão muito bem (assim como todo o elenco de apoio), mas contidos. O que provoca uma grande discrepância entre eles e James Woods, que está, de propósito, é claro, extremamente caricatural como o assassino racista, supremacionista. Nisso Reiner força a mão: é pro espectador odiar e desprezar aquela figura e tudo o que ela representa.

Há um detalhe bonito bem no final do filme, no momento em que finalmente, depois de mais de um quarto de século, a justiça é feita, e há a tradicional parada nas escadarias externas do tribunal para as entrevistas. A câmara pega, em duas tomadas, rápidas, mas firmes, claras, duas pessoas do povo, duas pessoas comuns, dois negros que foram lá ver o que a Justiça iria resolver, afinal.

Ao final do filme, pelos letreiros finais, saberemos que Myrlie Evers mais tarde foi nomeada para a chefia da NAACP (National Association for the Advancemente of Colored People), a entidade da qual Medgar Evers foi o primeiro secretário de campo no Estado do Mississipi. Saberemos também – e isso é fundamental, é importantíssimo; os Estados Unidos mudaram muito, são hoje oh tão politicamente corretos, mas no fundo o que foi mesmo que mudou? – que o assistente da Promotoria branco que brigou para fazer justiça concorreu para juiz da Corte de Apelação de Mississippi e perdeu; continua no mesmo lugar, o Hinds County D.A. Office.

Dois detalhes interessantes. Um é ter Frank Capra III como co-produtor. O outro, que não aparece em nenhum momento do filme, e do qual só tive conhecimento mais tarde, no material da distribuidora: os três filhos de Medgar Evers estão no filme. Dois deles fazem papel deles mesmos. A terceira escolheu interpretar uma das pessoas do júri de janeiro de 1994. E quem interpreta a terceira filha de Evers é sua amiga Yolanda King, a filha de Martin Luther King Jr.

Hallelluia!

Fantasmas do Passado/Ghosts of Mississippi

De Rob Reiner, 1996, EUA.

Com Alec Baldwin, Whoopi Goldberg, James Woods, Craig T. Nelson, William H. Macy, Diane Ladd, Virginia Madsen, Susanna Thompson, Michael O’Keefe, Bill Smitrovich, Wayne Rogers, Darrell Evers, Van Evers, Reena Evers, Yolanda King.

Roteiro Lewis Colick

Co-produção Frank Capra III

Música Marc Shaiman

Cor, 130 min.

6 Comentários para “Fantasmas do Passado / Ghosts of Mississippi”

  1. O filme possui a frase que considero a melhor de todos os tempos:
    “When you hate, the only one that suffers is you because most of the people you hate don’t know it and the rest don’t care.”

  2. BELÍSSIMA FRASE!!! FICOU MARCADA PARA MIM, DESDE A PRIMEIRA VEZ QUE VI O FILME.
    ABRAÇOS.

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