2.0 out of 5.0 stars
Anotação em 1997: A caixinha do filme diz que o filme ganhou o Urso de Ouro em Berlim, 1995. No Festival de Gramado, ganhou melhor atriz e melhor montagem. Acho muito incenso, desproporcional ao que o filme é – mais um filme francês mostrando as barreiras sociais e como os jovens da classe média e média-alta são amorais, ambiciosos, egoístas, sem qualquer tipo de valor moral. (Assim, sem fazer esforço, dá pra lembrar Um Estranho na minha Casa, com Belmondo e Cristiana Reali, Viver e Amar, que vi no final de 1996 no cabo e Loulou, aquela bobagem; isso sem falar em Os Ladrões, do Téchiné, em tudo superior a este da Tavernier.)
Não que o filme seja uma merda. Não é. Os atores são bons, inclusive os três jovens principais; a violência é mostrada de forma crua e forte que incomoda o espectador, dá engulho; Tavernier usa muita câmara de mão e planos longos, bem feitos; há uma óbvia denúncia da desestruturadora influência da cultura americana, especialmente os filmes que exaltam a violência. Mas é tudo muito sem qualquer emoção ou brilho especial.
Nathalie tem 18 anos, é classe média média, trabalha numa loja de roupa, mora em apartamento que ganhou da mãe e sonha vagamente com a possibilidade de virar manequim ou cantora ou atriz – e Tavernier parece dizer que esse é o sonho de toda menina parisiense. Fez colegial, e não tentou faculdade. É tida como burrinha; não é capaz de entender piadas, por exemplo. É despreocupadamente amoral; frequenta um bar elegante, usa o maître para marcar encontros com homens ricos ou influentes que possam eventualmente ajudá-la na vida; nos encontros, nunca chega às vias de fato, mas usa todas as armas para seduzi-los com a implícita possibilidade de um novo encontro no futuro. Numa agenda, guarda os cartões dessas pessoas ricas, com anotações sobre os contatos e os bens materiais que elas possuem.
Nathalie mora com o namorado, Eric, filho de judeus ricos que querem que ele arranje trabalho, e por isso vão diminuindo a mesada, cortando a conta bancária. Eric (como tantos outros jovens da classe média e da média alta mostrada nos filmes franceses) não acredita em hard work. Assiste sem parar a filmes americanos (diz que os filmes franceses são chatos), em geral thrillers cheios de violência, e quer ficar rico rapidamente, e ir para os Estados Unidos, onde será dono de uma rede de lojas, não importa bem de quê. Eric tem uma relação não bem explicada com Bruno, um rapaz pobre, humilde, um excluído, que resolveu acolher – na casa de Nathalie, bem entendido. (À casa dos pais ele não leva Bruno; sequer leva Nathalie – o que a deixa grilada.)
Pois bem: Eric e Bruno resolvem juntar capital pra vencer na América roubando. E usam para isso a agenda de Nathalie. A idéia é que ela marque encontro com algum desses homens em sua casa, e dê um jeito de deixar as portas abertas para que os dois entrem e roubem. Depois de algumas tentativas frustradas, entram na casa de um advogado; quando não encontram dinheiro nem cofre com fortunas, começam a espancar o pobre homem; para não dar na vista que Nathalie era a isca, a amarram também, e a levam para outro cômodo; para amedrontá-lo, dizem que mataram Nathalie; como ele não diz onde guarda sua fortuna (seguramente porque não tem fortuna alguma em casa), e ele suspeitaria da armação se visse Nathalie viva, resolvem matá-lo. O serviço é executado por Bruno, enquanto Nathalie põe fone de ouvido e ouve música alto no cômodo ao lado.
Não há remorso, não há crise de consciência, não há absolutamente nada parecido com isso. Para os jovens parisienses de hoje, parece dizer o Tavernier, a vida humana é como mostram os filmes americanos: vale tanto quanto a vida de uma barata, ou uma pulga. Nathalie faz muxoxo de criança enquanto ouve música para não ouvir os gemidos de dor do homem que ela atraiu para o assalto e primeiro está sendo espancado e depois assassinado. Não tem qualquer consciência de absolutamente nada. É o produto de uma sociedade insana, apenas.
Há um segundo assassinato, que cabe, pela regra da alternância lembrada por Bruno, a Eric. A vítima (interpreta pelo lelouchiano Richard Berry) tenta amolecer Eric, dizendo que é judeu como ele, que tem um filho de cinco anos; Eric não consegue matar com revólver, e pede a Bruno que vende os olhos e a boca da vítima; executa o serviço com 30 golpes de estilete.
Se você não viu o filme, não leia a partir de agora
Nathalie começa a dar sinais de enfado, não por qualquer razão moral, mas porque o cheiro deles depois dos assaltos e assassinatos não é bom, e incomoda muito a ela o fato de eles usarem seu bidê para lavar as roupas manchadas de sangue. Conta o que aconteceu para uma amiga, Karine, sem qualquer preocupação de que ela possa contar à polícia. E em seguida é presa na loja em que trabalha. Depois de tentar negar autoria durante algum tempo, conta tudo, assegurando que não fez nada, que os dois é que fizeram tudo.
A cena final é muito boa e forte. Close no rosto dela (é uma atriz bonitinha, nada esplendoroso, mas bonitinha, de uma beleza bem comum, bem gostosinha, tipo mignon). Depois de assinar a confissão, ela se vira para cima, para o policial que está de pé, e diz: “Bem, agora que já acabou tudo eu posso ir embora, não é? Vou passar o Natal com meu pai”.
A Isca/L’Appat
De Bertrand Tavernier, França, 1995.
Com Marie Gillain, Olivier Sitruk, Bruno Putzulu, Philippe Duclos, Richard Berry
Roteiro Bertrand Tavernier e Colo Tavernier
Baseado em novela de Morgan Sportes
Cor, 115 min.
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