Uma Aventura aos 40

[Rating:4]

Anotação em 1996: Acabo de ver um filme impressionante – brasileiro, feito em 1947, inteligente, bem humorado, sarcástico, bem feito, bem interpretado, sacadas geniais, futurístico, linguagem própria e única, música boa, tudo bom demais.

Estava dando dando uma zapeada na TV, e na Cultura tinha esse filme; parecia brasileiro, mas tive por uns instantes dúvidas; era bom demais para ser tão velho e brasileiro e eu não saber o que era. Foi parecendo bom demais, cada vez melhor, e eu queria me beliscar pra ver se estava acordado. E não vinha intervalo pra eu ver no jornal o que era aquilo, e ao mesmo tempo eu me dizia, cacilda, veja o filme sem saber o que é que é, relaxe e veja o filme. Quando deu o intervalo, finalmente, corri pro jornal, e vi que o Luiz Carlos Merten tinha escolhido o filme, que se chama Uma Aventura aos 40, como destaque do dia. Ah, bom, pensei, então não estou louco nem bêbado. E antes que eu pudesse ler o texto o intervalo terminou, e o filme foi cada vez me surpreendendo mais, e aí eu pensei o seguinte: mas, caralho, como a gente é ignorante.

Claro, pensei também naquelas coisas tão velhas, tão caquéticas, tipo: mas, caralho, como este país não tem memória, como este país não se dá valor, como este país é primeiromundocêntrico, como este país não consegue se enxergar. Tudo isso é verdade, é claro, e tem a ver, sim, mas é verdade mais velha do que andar pra frente. Mais importante era a sensação forte de: mas, caralho, como a gente é ignorante. Porque eu acho que eu conheço um pouco de cinema. E eu estava diante de um filme impressionante do qual jamais tinha ouvido falar. E um filme feito na porra do meu país.

Um filme inteligentíssimo. Nada de Carlota Joaquina, nada de falar linguagem imbecil por achar que o público é imbecil e só entende imbecilidade, nivelar por baixo, pela baixaria Casseta & Planeta. Não. Um filme de 1947, porra, 15 anos antes do cinema novo. Numa época em que, pelo que eu a vida toda aprendi, o que tinha era chanchada e a coisa cheia de sotaque da Vera Cruz. Um filme brasileiro de 1947, futurístico, com a ação se passando no então longínquo futuro, 1975, para nós agora já passado remoto, o ano em que nasceu minha filha que vai fazer 21 anos.

Eu não acreditava no que estava vendo. Teve um momento em que pensei assim: mas esse filme antecipou o Todas as Mulheres do Mundo em duas décadas! Ele, como Todas as Mulheres, foi contra todas as ondas, todos os modismos, foi criativo e lúcido e lúdico e bem humorado, muitíssimo bem humorado, remando contra todas as marés. (Todas as Mulheres, em 1966, foi urbano quando a moda era ser rural, retratava classe média quando o padrão era retratar pobre miserável, foi bem humorado quando era preciso ser baixo astral por causa da ditadura, foi intimista quando o figurino mandava ser geral, genérico, impessoal.) E aí eu pensava: mas ele antecipou em três décadas os Anos Dourados! De repente me peguei pensando: mas esse cara viu Cidadão Kane 200 vezes; esse filme é, sem ser metido a besta, uma espécie de Cidadão Kane brasileiro!

Pra se ter idéia da inteligência do filme: a TV passou a existir do Brasil, como todos sabemos, em 1950. Pois bem. O filme, feito em 1947, é o seguinte: um sujeito vê na TV um programa do tipo “Esta é a Sua Vida” (que de fato existiria, no final dos anos 50 começo dos 60). O sujeito é o retratado no programa. E então ele se vira pro apresentador (“speaker”, ele diz) e contesta o cara, contesta o que o cara está dizendo. O apresentador conta a história oficial, toda bonitinha, de um personagem importante. E o próprio, em carne e osso, diz para o apresentador coisas do tipo: “ô, cara, não foi nada disso. A verdade foi muito mais feia, sórdida, eu dei certo por mero acaso ou descaso. Você está dizendo por exemplo que eu era um aluno brilhante: não era nada, cara, eu colava nas provas, eu não ia à aula, ia beber chope no Lamas”.

O sujeito, o personagem da história oficial, desmistifica a história oficial. Conversando com o apresentador de TV. E com o apresentador ouvindo e interagindo: “o senhor vai deixar que eu continue contando a sua história?” Isso em 1947! Nem existia TV no Brasil!

Tudo é bem humorado, tudo é engraçado. O personagem central conta para o apresentador um caso que envolve telefone com extensão, acontecido logo após o final da Guerra e do fim da ditadura do Getúlio, 1946 ou 1947, portanto, o ano em que o filme foi feito. E pergunta para o apresentador, no ano de 1975: o senhor tem telefone com extensão? E o apresentador responde, em 1975: “Doutor, tem 30 anos que eu estou inscrito na Telefônica pra receber um telefone”.

Um dos pontos mais importantes da história é que o personagem central, casado, e na década de 40, se apaixona por outra mulher, e tem que decidir entre a outra mulher, que ele ama, e a esposa. Há um momento em que ele cita Goethe, contestando Goethe, dizendo que mais tarde aprendeu que Goethe estava errado: “Nas batalhas do amor, vence aquele que foge”. Num discurso aos alunos, paraninfo da turma, já velhinho, ele diz que tem três recomendações a fazer: “Sejam morais. Trabalhem. E amem, amem, amem”.

         Me senti – com assombro enorme e talvez até uma certa alegria – um imbecil, um ignorante, num terreno em que eu achava que eu não era de forma alguma tão ignorante assim. Eu jamais tinha ouvido falar nesse filme. O nome do diretor – Silveira Sampaio – não me diz absolutamente nada.

Assombro enorme e uma certa alegria: não saber não é pecado mortal, e aprender, descobrir, é bom pra caralho, é para isso (além de amar, amar, amar) que existe a vida.

Claro, pensei também nas obviedades todas: se esse filme tivesse sido feito no Primeiro Mundo, seria cult. Todos os cinéfilos ou metidos a o citariam como dever de casa, como citam Bergman, Fellini, agora Tarantino. Como o filme foi feito neste país bárbaro, ninguém conhece. Claro, óbvio. Se Chico, Caetano, Sérgio Godinho, José Afonso, escrevessem canções em idioma de Primeiro Mundo, seriam tão importantes mundialmente quanto Dylan, Lennon, Cohen. O Merten diz no Estadão o seguinte: “Exibido na Sala Cinemateca em 1987, foi descoberto pelos críticos”. Eu não sabia disso. Procurei no História Ilustrada dos Filmes Brasileiros, do Salvyano Cavalcanti de Paiva. “De súbito, um filme criativo”, diz ele. Mas a foto do filme tem uma coluna só. Pouquíssimo destaque. Eu li na vida um monte de livros sobre cinema brasileiro e jamais tinha ouvido falar desse filme surpreendente.

 

Uma Aventura aos 40

De Silveira Sampaio, Brasil, 1947.

Com Silveira Sampaio, Flávio Cordeiro, Nilza Soutin, Ana Lúcia

Argumento e roteiro Silveira Sampaio

Fotografia Antônio Leal e Meldy Mellinger

P&B, 73 min.

4 Comentários para “Uma Aventura aos 40”

  1. Olá Sérgio. Estou fazendo um levantamento sobre os filmes de ficção científica brasileiros e acabei vindo parar aqui no seu comentário sobre este filme Uma Aventura aos 40. Você sabe informar se este filme esta disponível para compra em DVD ou VHS?

  2. haha..esse filme não preveu nada! tudo isso já existia nos outros paises… o filme deve ser otimo, mas nao preveu nada!

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