Má Fé / Mauvaise Foi

3.0 out of 5.0 stars

Estreou muito bem na direção o francês descendente de marroquinos Roschdy Zem, ator tarimbado com mais de 70 filmes no currículo. Escolheu um assunto espinhoso: o casamento de uma judia com um descendente de muçulmanos na Paris de hoje, e todos os problemas que o casal é obrigado a enfrentar.

Um dos autores do roteiro e também o intérprete de um dos dois personagens centrais, Ismaël, Roschdy Zem optou por um tom suavemente cômico – e não trágico – para mostrar as muitíssimas dificuldades que se colocam diante do casal. O tom de comédia – é verdade que de comédia dramática – não esconde os problemas, de forma alguma. O filme escancara todos os pequenos preconceitos que Ismaël e Clara Breitmann (mais uma bela interpretação da gracinha de Cécile De France) têm que enfrentar. Mas faz isso de forma leve, suave. Não é um chute no estômago – é uma série de agulhadas.

Ismaël não é religioso, nem apegado às tradições muçulmanas. É um francês, bem adaptado à vida no país em que vive; é músico, dá aulas de piano, apresenta-se ocasionalmente em bares e clubes. Da mesma forma, Clara não é religiosa nem apegada às tradições judaicas. É uma francesa, moderna, inteligente, livre; é fisioterapeuta, trata de pessoas com necessidades especiais, trabalha numa tese para a universidade.

Quando a ação começa, Ismaël e Clara namoram há quatro anos. Cada um tem sua casa; Ismaël divide um apartamento com um grande amigo, Milou (Pascal Elbé, também co-autor do roteiro), produtor de shows de música e dono de uma loja de discos. Milou é judeu, sem que sua origem interfira em nada na amizade com o filho de muçulmanos.

O filme mostra, com clareza, que Ismaël e Clara nunca se preocuparam muito com o fato de descenderem de famílias de etnias que, no Oriente Médio, estão eternamente em luta. São pessoas modernas, inteligentes, de mente aberta, pós-racismo.

Os problemas surgem a partir do momento em que Clara percebe que está grávida.

No primeiro momento, ficam felizes com a idéia de que vão ser pais. Decidem morar juntos – o amigo Milou terá que encontrar outro lugar para viver, porque Clara se muda para o apartamento de Ismaël, maior que o dela.

Percebem que é hora de serem apresentados aos pais de um e de outro.

Aí a porca começa a torcer o rabo.

Adivinhe quem vem para jantar: um sujeito que parece entregador de flores!

Os cinéfilos um pouco mais velhas certamente vão se lembrar de Adivinhe Quem Vem Para Jantar, o filme de Stanley Kramer de 1967. A mocinha, interpretada por Katharine Houghton, leva o namorado para os pais conhecerem. Os pais, interpretados por Katharine Hepburn e Spencer Tracy (no seu último papel) não são sulistas racista, simpatizantes do Klan; muito ao contrário, são liberais, progressistas, da fina e cosmopolita San Francisco. O namorado é culto, educado, doutor, e ainda por cima belo como uma estátua grega – mas sua pele (o papel é de Sidney Poitier) é negra. E o casal liberal, progressista, vai perceber que não é tão liberal e progressista assim.

No filme de Roschdy Zem, os pais de Clara são bons burgueses parisienses. Victor e Lucie Breitmann (Jean-Pierre Cassel e Martine Chevallier) vivem confortavelmente em uma bela casa. São educados, instruídos. Preparam um jantar para conhecer o namorado da filha, única e adorada. Quando Ismaël bate à porta da casa rica com um buquê de flores, Victor atende, pega o buquê e pergunta para aquele sujeito de pele escura, evidentemente descendente de árabes, logo evidentemente um entregador de flores, se há algum recibo a ser assinado.

E a porca só está começando a torcer o rabo.

Despreparados para enfrentar tanto preconceito, Ismaël e Clara vão cometendo erro após erro

O roteiro criado por Roschdy Zem, Pascal Elbé e Agnès de Sacy deixa evidente que Ismaël e Clara cometem erros. São boas pessoas, estão apaixonados um pelo outro, mas são humanos, e portanto cometem erros. Diversos erros. Clara não conta com antecedência aos pais que seu namorado é árabe. Ismaël vai adiando o quanto pode a conversa com sua mãe, Habiba (Naïma Elmcherqui), o momento de dar a informação de que sua namorada é judia.

Os erros vão se sucedendo. Algumas coisas pequenas, mas simbólicas, importantes. Clara coloca na porta do apartamento em que agora vivem os dois um enfeite usado pelos judeus (eu não conhecia esse costume, e não gravei o nome que se dá a essa pequena peça). Ismaël quer que o filho – se for homem, é claro, e ele espera que seja homem – tenha o nome de seu pai, um nome grande, feio e gritantemente árabe. Ora, raios, por que não um Jean, um François, um Jacques, um Pierre?

A narrativa, bem feita, criada com talento e sensibilidade, vai mostrando com suavidade e clareza que Clara e Ismaël, justamente por não seguirem com rigor a religião dos pais, as tradições familiares, por se considerarem, os dois, franceses, apenas, não estavam preparados para o amontoado de pequenos problemas que vão surgindo. E, despreparados, e humanos, vão cometendo erros após erros.

Não estamos fatalmente condenados à idiotice

O filme de Roschdy Zem, seu primeiro como diretor, é uma pequena pérola. Não é panfleto irritado, nervoso, tonitroante, contra o racismo, as convenções, as tradições que separam as pessoas, mesmo numa sociedade moderna, numa cidade cosmopolita, uma das maiores metrópoles do mundo. É, sim, um panfleto contra essas coisas abjetas, mas um panfleto suave, amoroso, carinhoso. Mais que um berro contra o racismo, é um suave hino à capacidade que as pessoas têm, sim, de vencer o racismo e conviver em paz, em harmonia.

Não estamos fadados, condenados à idiotice. É possível avançar. Mesmo cometendo erros.

Um belo filme.

Anotação em fevereiro de 2012

Má Fé/Mauvaise Foi

De Roschdy Zem, França-Bélgica, 2006

Com Cécile De France (Clara Breitmann), Roschdy Zem (Ismaël), Pascal Elbé (Milou), Jean-Pierre Cassel (Victor Breitmann), Martine Chevallier (Lucie Breitmann), Bérangère Bonvoisin (Martha), Leïla Bekhti (Mounia),

Naïma Elmcherqui (Habiba)

Argumento e roteiro Roschdy Zem, Pascal Elbé, Agnès de Sacy

Fotografia Jérôme Alméras

Música Souad Massi

Produção Pan Européenne Production, Studio Canal, France 2 Cinémam Toto and Company. DVD Universal.

Cor, 88 min

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Título em inglês: Bad Faith

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