Electra / Ilektra

Nota: ★★★½

Cerca de 2.370 anos depois que o grego Eurípedes escreveu Electra, seu conterrâneo Michael Cacoyannis transformou a tragédia em um filme de imagens tão belas, fortes, poderosas, que muito possivelmente elas ainda terão admiradores daqui a outros 2.370 anos – se a humanidade não se destruir antes disso, claro.

Cacoyannis e seu diretor de fotografia, Walter Lassally, conseguem o equilíbrio perfeito entre os planos gerais – tomadas amplas, mostrando a paisagem seca, terra pedregosa, poucas árvores, do interior da Grécia – e os close-ups dos rostos dos personagens, capazes de uma expressividade incrível, fascinante.

Uma terra seca, pedregosa, inóspita.

Rostos impressionantemente expressivos, fortes, duros, vincados pela dor, pela dureza da vida, pela tragédia.

As palavras – escritas 23 séculos atrás – não são muitas. As frases são fortes, graves, poderosas, como os rostos das pessoas que as pronunciam – mas a maior parte dos 110 minutos de duração do filme é ocupada por imagens sem palavras.

Atrás dos protagonistas movimenta-se o coro, essa impressionante invenção da tragédia grega. Grupos de mulheres completamente vestidas de preto, dos pés à cabeça, a cabeça sempre coberta de véu. Só Electra, a personagem central, aparece sem o véu, cercada pelas mulheres do coro todas de negro.

Há uma coreografia impressionante nos movimentos das mulheres do coro. O coro pontua, realça cada fato, cada fala, cada desenrolar da trama trágica. Às vezes o coro faz advertências aos personagens centrais.

A câmara focaliza ora o coro inteiro, em plano de conjunto, ora o rosto de cada uma das mulheres, ou dos homens que também assistem aos fatos. Dezenas e dezenas de rostos belos, duros, secos, trágicos.

A trilha sonora – composta por Mikis Theodorakis, um dos dois gigantes da música grega no século XX, ao lado de Manos Hadjidakis – é seca e dura como a paisagem. Acordes lancinantes seguem-se às falas, ou preparam o espectador para um fato novo, chocante, apavorante.

Os enquadramentos da câmara parecem ter sido minuciosamente estudados. A beleza, a plasticidade das tomadas faz lembrar os filmes da maturidade do mestre Akira Kurosawa – e também o Pier Paolo Pasolini de O Evangelho Segundo São Mateus (ou Segundo Mateus, como diz o título original).

Como O Evangelho de Pasolini, Electra é um filme que não poderia jamais ter sido feito em cores. Boa parte da extraordinária beleza de cada uma das imagens captadas pela câmara de Cacoyannis e Lassally vem do fato de a fotografia ser preto-e-branca.

O show, o cerne, a razão do filme é Irene Papas, numa atuação chocantemente extraordinária

Num filme que passa a mil anos-luz de distância do naturalismo, do realismo, em que a atuação dos atores é completamente estilizada, rigorosamente teatral, sobressaem as atuações de Aleka Katselli e Irene Papas.

Aleka Katselli faz uma Clitemnestra apavorante. É a a presunção em pessoa, a maldade escarrada. Os trajes estampados e a maquiagem fortíssima a diferenciam completamente de todos os demais personagens – a sensação que se tem é de que todos os demais atores foram maquiados de tal forma a parecer que não estavam absolutamente maquiados. Seus rostos aparecem crus, reais. A Clitemnestra de Aleka Katselli parece um ser de outro mundo, no meio das demais personagens.

Mas o show, o cerne, a razão do filme é Irene Papas. Meu Deus do céu e também da terra, que interpretação, que mulher, que atriz soberba!

Os olhos de Electra-Irene Papas brilham de ódio. Soltam faíscas de ódio. E ensombrecem-se de amargura na tomada seguinte.

É uma interpretação chocantemente extraordinária.

Cacoyannis filmou três tragédias gregas. Electra foi o primeiro dos três

Electra foi o sétimo filme dirigido por Michael Cacoyannis (1922-2011), e a primeira vez que o realizador se aventurou pela tragédia clássica grega. Seu filme seguinte foi o de maior sucesso da carreira, Zorba, o Grego (1964), de novo com Irene Papas. Zorba ganhou três Oscars, inclusive o de fotografia, realização também de Walter Lassally.

Cacoyannis voltaria à tragédia em 1971, com As Troianas, mais uma vez baseada em Eurípedes. E, em 1977, fecharia seu ciclo com Efigênia, também de Eurípedes, também com Irene Papas, também com música de Theodorakis.

Interessante que o realizador tenha feito Efigênia 15 anos após este Electra, pois os acontecimentos de Efigênia se dão bem antes dos narrados em Electra. Ao partir para a guerra contra Tróia, o rei Agamenon acaba sendo forçado pelos deuses a sacrificar sua filha Efigênia – esta é a trama da tragédia.

Já a ação de Electra se passa bem depois: ao final da longa guerra contra Tróia, Agamenon retorna triunfalmente a Argos – onde será assassinado pela esposa, Clitmnestra, e pelo amante dela, Egisto (Phoebus Rhazis). Este é o início de Electra.

(Um texto de Jorge Teles explica as origens e fala dos grandes mestres da tragédia grega.)

“O texto reencontra sua pureza original, num ambiente despojado, queimado pelo sol”

O filme foi um dos cinco indicados ao Oscar de melhor filme estrangeiro de 1962, ao lado – que coisa – de O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte. Não me lembrava de que O Pagador, o único filme brasileiro que levou a Palma de Ouro em Cannes, tinha tido indicação ao Oscar. Cacoyannis e Anselmo Duarte foram vencidos por Sempre aos Domingos/Les Dimanches de Ville d’Avray, de Serge Bourguignon.

Em Cannes, no ano da premiação de O Pagador de Promessas, Electra recebeu um prêmio técnico especial e outro como “melhor transposição cinematográfica”.

Vejo nos alfarrábios que, ao contrário do que eu imaginava, o filme não teve absoluta consagração da crítica. O historiador Georges Sadoul diz, em seu Dicionário de Filmes: “Embora seja exagero falar de ‘obra-prima’, essa condensação de Eurípedes tem o mérito de colocar a tragédia grega novamente em seu solo, após 2 mil anos. Interpretação notável de Irene Papas”.

O Guide des Films de Jean Tulard realça o fato de o filme ter sido feito em cenário natural grego, entre monumentos antigos e vilarejos nas colinas: “Longe do teatro filmado, o texto reencontra assim sua pureza original, num ambiente despojado, queimado pelo sol. É servido por uma magnífica fotografia em preto-e-branco contrastada, por uma música à base de instrumentos antigos e por uma interpretação de Irene Papas, que é uma grande atriz de tragédia. Apesar disso, o filme tem um tom fabricado e se derrama muitas vezes num esteticismo gratuito, sem tentar traduzir a universalidade e o modernismo do texto.”

E eis o que diz Pauline Kael: “O diretor grego Michael Cacoyannis filmou sua própria adaptação da tragédia de Eurípedes ao ar livre, com um grandeur autêntico, solene, e com a bela jovem Irene Papas como sua heroína. Entretanto, tentando mostrar quão vivamente moderno este clássico é, ele produz desconforto: não ficamos nem muito aqui nem muito lá atrás.”

Bem. Cada cabeça, uma sentença. Eu, de minha parte, me rendi à esplendorosa beleza das imagens, à magnífica interpretação de Irene Papas e à aterradora tragédia dos dois filhos que passam a vida em busca da vingança contra a mãe assassina do pai.

Anotação em maio de 2012

Electra/Ilektra

De Michael Cacoyannis, Grécia, 1962

Com Irene Papas (Electra),

Giannis Fertis (Orestes), Aleka Katselli (Clitemnestra), Manos Katrakis (o tutor), Notis Peryalis (o camponês marido de Electra), Phoebus Rhazis (Egisto), Takis Emmanuel (Pylades), Theano Ioannidou (a líder do coro),

Elsie Pittas (Electra jovem), Petros Ampelas (Orestes menino)

Roteiro Michael Cacoyannis

Baseado na tragédia de Eurípedes

Fotografia Walter Lassally

Música Mikis Theodorakis

Produção Michael Cacoyannis, Finos Flm. DVD CultClassic.

P&B, 110 min

***1/2

6 Comentários para “Electra / Ilektra”

  1. Tem só um pequeno erro: é o primeiro dos três filmes sobre mulheres troianas. Antes de Electra, o diretor fez Antígona.

  2. Prezado, mil desculpas, fui eu quem errei. É que tem uma cópia de Antígona (1961), dirigido por Yorgos Javellas, disponível no youtube. Como também é com a Irene Papas e em preto e branco, achei que era dirigido por Michael Cacoyannis.

  3. Maravilha, Maurício. Extrema gentileza a sua em dar essa explicação. Coisa de gente muito, mas muito educada.
    Muito obrigado, e um abraço!
    Sérgio

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