Monstros / Freaks

Nota: ★★★☆

Anotação em 2011: Não adianta a gente achar que conhece um pouco de cinema, que já viu muitos filmes – há sempre muito mais surpresas do que se pode imaginar. Este Monstros/Freaks, que Tod Browning dirigiu em 1932, apenas cinco anos depois que o cinema aprendeu a falar, é muito surpreendente.

O nome de Tod Browning não me era desconhecido. Mas jamais tinha ouvido falar desse filme, até vê-lo agora na programação do TCM. Aliás, sempre é bom repetir: que maravilha que o TCM existe, e traz de volta filmes antigos e menos conhecidos hoje em dia.

Felliniano virou um adjetivo bastante comum para descrever tipos de aparência estranha, esquisita, fora do padrão, fora do “normal”, se é que existe uma “normalidade”. Pois fiquei pensando nisso enquanto via este filme: os tipos esquisitos de Fellini são fichinha perto das figuras que Tod Browning apresentou neste filme de 1932.

Não é à toa que o filme tem o título de Freaks. Freak – termo usado demais nos filmes americanos de hoje em dia, em especial pelos adolescentes, para designar quem é diferente deles – significa aberração. Anomalia, monstruosidade, aleijão. Monstros foi, me parece uma boa tradução.

O universo de Monstros, Freaks, é o do circo – mas não propriamente o dos circos reais, e sim o do circo do imaginário, o circo das lendas antigas. A mulher barbada, com uma imensa barba. Anões, muitos anões, de uma feiúra agressiva nos rostos. E uma grande quantidade de seres que parecem saídos de desenhos animados, de histórias de ficção científica, figuras que parecem deformadas.

Mas – e isso é absolutamente fascinante – não são essas figuras estranhas, feias, grotescas, algumas repelentes, mesmo, que são os monstros. Ao contrário. Esses são seres do bem. Os monstros são duas pessoas de aparência convencional – Cleópatra, a trapezista (Olga Baclanova), e Hércules, o fortão (Henry Victor).

O anão se apaixona perdidadamente pela trapezista

Na trama, um anão, Hans (Harry Earles), apaixona-se perdidamente pela trapezista Cleo. Cleo, amante de Hércules, tem profundo desprezo por Hans. Mas, quando fica sabendo, através de Frieda (Daisy Earles), uma anã que ama Hans, que ele herdou grande fortuna, a bela e mau-caráter Cleo muda de atitude – naturalmente, com segundas intenções. Ela e Hércules pretendem matar Hans e ficar com o butim.

A vingança dos seres feios na aparência mas de bom caráter, de boa moral, será absolutamente pavorosa.

Cleo, a trapezista, é apresentada, descrita como linda. A atriz que a interpreta, essa Olga Baclanova, na verdade, não é linda, de maneira alguma. Talvez fosse tida como bela na época – pode ser. Vejo agora que ela nasceu em 1899, em Moscou; começou a carreira aos 16 anos no Teatro de Arte de Moscou; em 1923 viajou aos Estados Unidos numa companhia teatral soviética e decidiu ficar. Deve ter sido uma das primeiras artistas a desistir do então muito jovem paraíso soviético. Trabalhou no cinema em Hollywood e no teatro na Broadway, e teve um programa de rádio nos anos 30. Morreu em 1974.

Uma estética que deve ter influenciado muita gente

Eu ousaria dizer que Monstros/Freaks, embora para mim tenha sido uma surpresa, uma descoberta, deve ter sido visto por muita gente que veio depois. De alguma maneira, esse filme que para mim era desconhecido deve ter influenciado muita coisa do que viria mais tarde, no trash, no terror. Está nele muito do que há em The Rocky Horror Picture Show, nos filmes iconoclásticos de John Waters, e em dezenas e dezenas de filmes de terror.

Mas é melhor, agora que já anotei minhas sensações, ir aos alfarrábios, que sabem das coisas.

“O Edgar Alan Poe do cinema”

Ted Browning (1882-1962), um dos maiores mestres do cinema fantástico, foi apelidado de o Edgard Alan Poe do cinema, diz Jean Tulard em seu Dicionário. Trabalhou algum tempo em circo. Foi ator e roteirista, trabalhou como assistente de D.W. Griffith em Intolerance. Estreou como diretor em 1917. “Seus primeiros filmes foram comédias ou histórias de gângsteres. Mas é com o estranho e o mórbido que vai construir sua fama. Seus roteiros desafiam a análise.”

Jean Tulard prossegue: “Mas a obra-prima de Tod Browning continua sendo Monstros, que leva às telas os verdadeiros (o grifo é dele) monstros de um circo: um filme insustentável que nos mostra um homem-tronco que rasteja como um verme pelo chão, irmãs siamesas, uma mulher que come com os pés porque não possui braços… Nenhum desdém, nenhum voyeurismo aparecem nessa obra grave e bela, um clássico do cinema do surrealismo e do horror.”

Ahá, eu estava certo quando percebi, de imediato, assim que bati os olhos em uma cena do filme, na altíssima madrugada, que se tratava de algo importante, marcante.

Volta e meio anoto aqui: nunca tinha ouvido falar de tal nome, ou, se tinha, já havia me esquecido, o que dá no mesmo. Será que nos meus cursos e palestras sobre história do cinema quando garoto, ou nas minhas lidas, eu já tinha ouvido falar em Monstros, e havia me esquecido completamente, o que dá no mesmo?

Bem, mas isso não importa nada.

“Um filme único”, “um choque”

Leonard Maltin, que às vezes erra (não dá para falar de 18 mil filmes sem errar), mas em geral acerta, dá 3.5 estrelas num total de 4, e faz uma sinopse breve mas informativa: “Um filme único sobre um sideshow (espetáculo secundário) viajante e a camaradagem entre seus estranhos artistas, que são levados à vingança pela cruel estrela do trapézio Baclanova. O mestre do filme de horror Tod Browning reuniu um incrível elenco de freaks de sideshows da vida real para este bizarro e fascinante filme. Duramente cortado nos Estados Unidos durante seu lançamento e banido no Reino Unido por 30 anos; algumas reedições foram feitas sem o breve epílogo; também conhecido como Nature’s Mistakes”.

Pauline Kael incluiu o filme no seu 5001 Nights at the Movies, e Sérgio Augusto, que traduziu e selecionou os filmes constantes na edição brasileira, 1001 Noites no Cinema, me poupa o trabalho de ver no dicionário os adjetivos ricos e preciosos que ela usa. Transcrevo:

“Os anúncios originais citavam Louella Parsons: ‘Em termos de puro sensacionalismo, Monstros supera qualquer filme já produzido’. Não estava muito longe da verdade, e ainda assim o filme é um choque. Embora esta história de circo, dirigida por Tod Browning, seja superficialmente simpática aos aleijados e retardados que apresenta, usa imagens de deformidade física pelo seu enorme potencial de horror, e no fim, quando os microcéfalos e as criaturas manetas e pernetas correm a vingar-se numa mulher normal (Olga Baclanova), o filme torna-se um verdadeiro pesadelo. Se fosse mudo, poderia ser mais difícil nos livrarmos dele, mas a fala ingênua e sentimental nos ajuda a manter distância.”

Esquisto: vi o contrário do que viu a grande dama da crítica americana. Não concordo absolutamente com ela quando ela diz “correm a vingar-se numa mulher normal”. As criaturas de aparência diferente do “normal” não estão se vingando numa mulher “normal”, estão se vingando dela, contra o mal que ela fez.

Mas posso perfeitamente estar errado. Até porque Freaks é grande clássico, como diz o CineBooks’ Motion Picture Guide Review, e eu sequer sabia da existência do filme.

“Bizarro clássico cult”, “repugnante”, “nauseante”

O CineBooks’ dá 4 estrelas em um total de 5 para o filme. O texto é gigantesco; vou transcrever apenas partes:

“Este bizarro clássico cult, dirigido pelo mestre do macabro, Tod Browning, surgiu depois que Irving Thalberg, (o então chefão) da MGM, deu uma olhada nos surpreendentes lucros da Universal com seus clássicos de horror. Mas esta produção é tão fora do comum, tão estranha, que levou décadas até encontrar uma audiência.”

“Browing se baseou em suas próprias experiências de jovem ao fazer Freaks; ele tinha fugido e trabalhado num circo nos anos 1890, tornando-se amigo de freaks de sideshow e tendo observado como o público reagia a eles com sensações diversas de mórbida curiosidade, repulsa e genuína empatia. Os freaks da vida real que Browning reuniu para esse filme soberbo do grotesco são muito mais simpáticos que a maior parte das pessoas normais da produção, exibindo o tipo de lealdade e de sentimento de grupo raramente encontrado no mundo normal.”

Epa: o Cinebooks’ parece concordar com a minha visão, em contraposição à de Dame Pauline Kael!

“Quando Thalberg e seu patrão Louis B. Mayer viram Freaks, ficaram horrorizados, assim como o público. Tão revoltados e enojados ficaram os críticos e os espectadores que o filme perdeu na época US$ 164 mil e, numa questão de semanas, foi retirado de cartaz pela MGM. O filme foi proibido na Inglaterra por mais de 30 anos e nunca foi mostrado na televisão, embora tenha tido apresentações de sucesso em salas especiais de cinema.”

Freaks, no entanto, não é um estudo sobre a deformidade, e sim uma peça de moral dos velhos tempos, em que os sem defesa e sem esperança triunfam sobre o mal. Quando os críticos rotularam o filme como ‘repugnante’ e ‘nauseante’, a MGM adicionou um prefácio a ele, afirmando que ‘a história e a religião, o folclore e a lenda estão repletos de contos de desajustados que alteraram o curso do mundo. Golias, Calibã, Frankenstein, Gloucester, Tom Thumb e o Kaiser Wilhem são apenas alguns deles’. Não ajudou, mas a MGM continuou tentando colocar o filme de volta ao público, relançando-o sob diferentes títulos.”

Cinderela, Einsten, o Fantasma da Ópera, todos em Desolation Row

Meu, que história sensacional, essa do filme – que eu desconhecia inteiramente, ou, se é que já tinha conhecido alguma vez, tinha me esquecido dela, o que dá na mesma.

Que história!

Depois que terminei de ver o filme, antes de fazer esta anotação aqui, antes, portanto, de ler essas informações todas sobre ele, fiquei pensando naqueles seres humanos de aparência muitas vezes, de fato, repelentes, e me lembrei de “Desolation Row”, a gigantesca, imensa, louca, surreal, felliniana canção que Bob Dylan gravou em seu disco Highway 61 Revisited, de 1965, o disco da passagem do folk para o rock. É desse mesmo disco a absurda e estranhissimamente bela “Just Like Tom Thumb’s Blues” – que fala de Edgard Alan Poe e Tom Thumb, que a MGM citou na tentativa de tornar palatável para o público americano, muito mais de meio século atrás, este filme impalatável.

Me ocorre então agora, enquanto releio esta anotação: será que Dylan viu Freaks, antes de compor “Desolation Row”, a canção de mais de 11 minutos que fala de um bando de personagens freaks? É bem pouco provável. Mas Dylan é a improbabilidade em si mesmo. Como talvez ele seja um MIB, ou melhor, vários MIBs, seres de outras galáxias, colocadas dentro de um único corpo humano, pode ser que ele tenha trazido dos laboratórios extra-terrestres a informação sobre o filme de Tod Browning.

***

Como? Se tomei um ácido? Claro que não. Jamais tomei um ácido na vida.

Monstros/Freaks

De Tod Browning, EUA, 1932

Com Olga Baclanova (Cleopatra), Harry Earles (Hans), Henry Victor (Hercules), Daisy Earles (Frieda), Wallace Ford (Phroso), Leila Hyams (Venus), Roscoe Ates (Roscoe)

Roteiro Willis Goldbeck, Leon Gordon, Edgar Allan Woolf, Al Boasberg

Baseado no conto “Spurs”, de Ted Robbins

Fotografia Merritt Gerstad

Produção Tod Browning, Metro-Goldwyn-Mayer.

P&B, 64 min

***

8 Comentários para “Monstros / Freaks”

  1. Compartilho com escritor a mesma impressão sobre Freaks, é uma obra impressionante e eternamente incômoda, pois, retrata a verdade sob a ótica dos que olham de baixo para cima.

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