Casamento Silencioso / Nunta Muta

Nota: ★★★★

Anotação em 2010: Um absoluto brilho de filme, uma pérola dessa nova safra do cinema romeno, que de repente começou a exibir ao mundo obras surpreendentes, com a força de um vulcão que desperta com vigor insuspeitado. 

Casamento Silencioso é um filme em tudo surpreendente, poderoso, forte. Começa com bom humor, com piadas; depois, embora ainda mantendo o humor, assombra, assusta, vai para o fantástico, o surreal, roça no sobrenatural e transforma-se numa das pauladas mais violentas de que já tive notícia no regime comunista, na opressão, no totalitarismo.

É uma paulada de ferocidade, de virulência impressionantes, acachapantes. Parece o resultado de décadas de muito ódio pelos opressores, um ódio acumulado por um povo inteiro, que jorra com uma força violenta de deixar um murro de Cassius Clay ou de Mike Tyson parecendo um suave tapinha.

         Um diálogo bem humorado: “O que é normal, hoje em dia?”

A ação começa nos dias de hoje, os anos 2000. Dentro de uma van numa pequena estrada em área rural, um grupo de quatro homens conta piadas. A van pára ao lado de um senhor aí de uns 60 anos; sorridente, ele pergunta:

– “Olá! Paramedia?”

Ao que o líder do grupo diz: – “Sr. Gogonea?”

Haviam, percebe o espectador, marcado o encontro. O sr. Gogonea sobe na van; quer saber mais sobre quem são aquelas pessoas:

– “O que é essa Paramedia?”

E o líder do grupo explica: – “A gente faz filmes sobre eventos paranormais, e depois vende para quem pagar mais.”

Apresenta os seus colegas: o motorista, o operador de câmara e fotógrafo, e outro que é, ao mesmo tempo, sonoplasta, editor e médium.

Vale a pena transcrever um pouco mais desse diálogo inicial. O líder do grupo da van pergunta:

– “Mas me diga, prefeito: essas coisas estranhas estão acontecendo faz tempo?”

– Bem, primeiro tinha aquela menina, quando eu era pequeno, a Gogonica…

Ao que o líder do grupo reage: – “Por favor, esqueça essa menina. Fale das coisas estranhas que acontecem agora.”

E o prefeito Gogonea, bem humorado (estão todos bem humorados, dentro da van): – “Nas eleições, todo mundo votou nos liberais, e os comunistas venceram.”

O líder sorri: – “Esqueça isso também. Queremos fatos que não sejam normais.”

E o prefeito Gogonea: – “Mas o que é normal hoje em dia?”

         Sobresssalto: coisas estranhas aconteceram ali

Param a van na beira da estrada, todos mijam ali mesmo, no campo, de costas para o asfalto, fazendo piada. Mas o líder do grupo está agora um tanto sobressaltado; olha em volta, está achando que há algo estranho.

Voltam para a van, prosseguem no rumo indicado pelo prefeito Gogonea, e o líder pergunta o que havia naquele lugar antigamente. A resposta de Gogonea ainda é marota, brincalhona, carregada de forte ironia:

– “Era um vilarejo. Os comunistas demoliram tudo para construir uma fábrica. Agora, os capitalitas estão demolindo a fábrica para construir um vilarejo.”

Uma senhora, toda de preto, anda pela estradinha secundária, de terra; o líder pede para que o fotógrafo faça fotos dela – e aí o espectador vê, do lado de fora da van, no lugar onde estava a velha de preto, uma jovem noiva.

O líder do Paramedia agora está sério, e pergunta ao prefeito Gogonea o que aconteceu ali.

Um corte brilhante, e vemos um trigal resplandecente à luz do sol. Um jovem de uns 18 anos, 20, no máximo, e uma garota de uns 17, estão se comendo alegremente no meio da plantação de trigo.

O rapaz se chama Iancu (Alexandru Potoceanu); a garotinha é Mara (Meda Victor). Estamos no vilarejo que existiu ali naquele lugar do interior da Romênia; Gogonea é então uma criança, um garoto de uns quatro anos de idade; é início dos anos 50 – 1953, para ser exato, o ano da morte de Josef Stálin. O comunismo está chegando ao interior da Romênia. Estamos com menos de dez minutos de filme, e a história vai começar.

         Diversos estilos misturados, compondo um conjunto perfeito

Revelar mais a respeito da trama do que esse intróito, na minha opinião, seria um sério spoiler, um grande estraga-prazer. Naturalmente, não vou fazer isso.

Gostaria de registrar apenas que o diretor Horatiu Malaele revela um imenso talento ao contar sua história. Ele mistura estilos – coisa extremamente difícil de ser feita com competência e maturidade, mantendo uma narrativa coesa, coerente. Abre a história do passado como uma comédia de costumes (e são deliciosas as piadas que os homens do vilarejo trocam no bar). Vai para o pastelão escrachado ao gozar os poucos jovens comunistas tentando conquistar a simpatia dos habitantes do lugar no início dos anos 50 – a seqüência à la Cinema Paradiso, em que os comunistas exibem uma legítima pérola do realismo socialista, é impagável e visualmente brilhante. Avança para um surrealismo à la Fellini botando os atores para atuar em coro como num teatro farsesco.

Na imensa maioria das vezes em que se tenta uma tal mistura de estilos, de tons, tudo desanda. Aqui, não – é tudo surpreendentemente bem feito, e tudo compõe um todo que acaba sendo perfeito.

Horatiu Malaele, vejo no iMDB, tem uma longa carreira como ator. Nascido no interior do Romênia em 1952, atuou em mais de quatro dezenas de filmes. Este Casamento Silencioso, no entanto, é seu primeiro longa-metragem, e ele é também o co-autor do roteiro. É de se tirar o chapéu para esse artista.

         Depois de décadas de realismo socialista, explosões fortes de anti-realismo

Semanas antes de ver o romeno Casamento Silencioso, tinha visto outro filme feito em outro país que, a partir do início da década de 90, se libertou do comunismo, a Geórgia – Os 27 Beijos Perdidos/27 Missing Kisses, feito em 2000. Logo depois de ver aquele belo, estranho, fascinante filme, anotei a seguinte impressão: depois de muitas décadas de realismo socialista, aquela coisa horrorosa imposta pela ditadura comunista para enaltecer a pátria, o patriotismo, o valor do operariado, blábláblá, a diretora  Nana Djordjadze resolveu se vingar, e partiu para o realismo fantástico mais absurdo que se pudesse imaginar.

A observação vale perfeitamente para este filme de Horatiu Malaele.

Além de serem, os dois, desbragadamente anti-realismo socialista, e de se passarem em ambiente rural, longe das grandes cidades, têm, os dois, o mesmo bom humor, o mesmo gosto por uma piada escrachada, a mesma alegria natural ao tratar de sexo.

O filme romeno, no entanto, é muito mais abertamente político, mais profundamente raivoso contra as décadas de ditadura. Uma saudável, maravilhosa raiva contra o totalitarismo, que se solta como a explosão de uma gigantesca panela de pressão, de um vulcão.

Que venham muitas novas pauladas no totalitarismo comunista, em todos os totalitarismos. Mas duvido que venha alguma tão poderosa, tão violenta, tão virulenta, tão arrasadora quanto este filme.

Casamento Silencioso/Nunta Muta

De Horatiu Malaele, Romênia-França-Luxemburgo, 2008

Com Alexandru Potocean (Iancu), Meda Andreea Victor (Mara), Valentin Teodosiu (Grigore Aschie), Alexandru Bindea (Gogonea), Ioana Anastasia Anton (Smaranda), Luminita Gheorghiu (Fira), Serban Pavlu (Coriolan), Simona Stoicescu (Marinela)

Argumento roteiro Horatiu Malaele e Adrian Lustig

Fotografia Vivi Dragan Vasile

Música Alexandru Andries

Produção Castel Film Studio, Agat Films

Cor, 87 min

****

Título em inglês: Silent Wedding; Título na França: Au Diable Staline, Vive les Mariés!

9 Comentários para “Casamento Silencioso / Nunta Muta”

  1. Logo que li seu comentário fui correndo ver o filme, e consegui no You Tube, grazie Dio, que ainda o tenham por lá…Filme ótimo!!!

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *