Número 24 / Nr. 24

3.5 out of 5.0 stars

(Disponível na Netflix em 1/2025.)

Número 24, caprichadíssima produção norueguesa de 2024, reconstitui a atuação de Gunnar Sønsteby na resistência aos invasores nazistas em seu país durante a Segunda Guerra Mundial. Gunnar Sønsteby (1918-2012), como mostram os letreiros ao final do filme, e também uma rápida pesquisa na internet, é o homem que mais recebeu condecorações na História da Noruega, e o único a merecer a mais alta honraria militar do país, a Cruz de Guerra com três espadas.

Só por oferecer aos espectadores de todo mundo o relato sobre esse personagem ao mesmo tempo tão importante para a Noruega durante a Segunda Guerra e seguramente tão pouco conhecido fora de lá, este Nr. 24 (na grafia original) já seria importante. Mas, além de ser importante, é um belo filme.

Um belo filme em todos, absolutamente todos os quesitos técnicos e artísticos. É uma produção extremamente bem cuidada; todo o elenco está excelente, e a direção, de John Andreas Andersen, cineasta da classe de 1971, 6 títulos como diretor, 7 prêmios, é segura, firme, madura. Mas, na minha opinião, a maior de todas as qualidades do filme é o roteiro, assinado por Erlend Loe, com base em roteiro de Espen Lauritzen von Ibenfeldt.

Foi maravilhosa, inteligente e sensível a idéia, a sacada de, ao longo de todos os 111 minutos do filme, alternar sequências da época da guerra com cenas passadas mais de meio século depois do fim do conflito, já nos anos 2000 e tanto.

O espectador vai vendo as ações do então extremamente jovem Gunnar Sønsteby e, simultaneamente, o Gunnar Sønsteby já bem idoso, relatando sua história para dezenas de adolescentes reunidos no que parece ser o ginásio de esportes de um colégio. A história que vai sendo mostrada para quem está vendo o filme.

A escola em que o velho Gunnar está apresentando sua palestra é a mesma em que ele havia estudado, um monte de décadas antes, na sua cidade natal de Rjukan, na região central da Noruega, 180 km a Oeste de Oslo.

O Gunnar dos anos 1940 é interpretado por Sjur Vatne Brean. O Gunnar dos anos 2000, talvez 2010 (não se explicita o ano), por Erik Hivju. Os dois atores nos presenteiam com excelentes atuações.

E o fantástico, o grande brilho do roteiro e do filme, na minha opinião, é que o que se passa ali no colégio, o velho Gunnar dando uma de suas muitas palestras Noruega afora, é tão importante, dramaticamente, na estrutura do filme, quando as ações do jovem Gunnar como um dos líderes da resistência aos invasores nazistas.

Temos ali um velho ex-guerreiro da resistência contando para aqueles jovens – que, assim como seus pais, sempre viveram em paz, em uma democracia consolidada, segura, em uma sociedade acostumada à perseguição da justiça social – como era lutar contra os invasores durante a guerra. E como era, na luta, matar não apenas os brutais nazistas, mas também os compatriotas que traíam o país e aderiam ao regime opressor, que torturava e matava os que se opunham a ele.

No meio das centenas de estudantes, uma jovem é destacada

O filme abre com frases escritas em branco sobre o fundo negro:

“Tenho cinco gavetas na minha mente. As três primeiras, eu abro sempre. A quarta, com menos frequência. Fechei a última gaveta em 8 de maio de 1945 e nunca mais a abri.” E, abaixo, o nome do autor – Gunnar Sønsteby.

A mesma frase será dita pelo velho Gunnar Sønsteby-Erik Hivju, quando o filme está pertinho do fim. A data, claro, é a da assinatura da rendição incondicional das Forças Armadas da Alemanha, que marcou o fim da guerra na Europa. (A Segunda Guerra só terminaria completamente com a rendição do Japão, em 14 de agosto, poucos dias depois de os Estados Unidos lançarem as bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki.)

As primeiras imagens que vemos são de um senhor bem idoso se concentrando para o que virá em seguida: sua entrada no ginásio de esportes da escola, cheia de estudantes do secundário, e sua palestra sobre o que foi a resistência aos invasores nazistas.

Um letreiro informa ao espectador que estamos em Rjukan. Entre as diversas tomadas que mostram os adolescentes chegando ao lugar e se sentando para ouvir o veterano de guerra, destaca-se uma garota aí de uns 17 anos, de cabelinho encaracolado, uma blusa rolê listrada sob um agasalho leve, uma malha. Uma tomada mostra que ela está segurando um livro com óbvios sinais de que foi bastante manuseado, e entre suas páginas há alguns papéis, provavelmente anotações. Se o espectador notar com muita atenção – ou se apertar a pausa naquele exato momento –, verá que o livro se chama Rapport fra “Nr. 24”.

As primeiras palavras que o idoso senhor dirige aos jovens são: “Vamos falar sobre valores”.

Corta, e vemos uma tomada geral de uma região montanhosa inteiramente coberta de neve. Pequeninhos lá no meio do quadro amplo estão dois homens – dois rapazes, veremos logo em seguida. São o jovem Gunnar e seu maior amigo, vizinho e colega desde sempre, Erling Solheim (Jakob Maanum Trulsen), carregando seus esquis no topo de uma das montanhas da região de Rjukan. A palavra Rjukan aparece em um letreiro, junto com o quando – 1937.

Os dois rapazes se sentam, preparam uma fogueira com material que carregavam, e que incluía um jornal. Só quando tira o jornal da mochila é que Gunnar lê a manchete, embaixo de lima grande foto de livros sendo queimados – “Queima de livros por nazistas causa preocupação”.

Gunnar começa a falar sobre a Alemanha, o regime nazista prendendo opositores e mandando para campos de trabalho forçado. Erling diz a seguinte frase: – “Eu até entendo a necessidade de controlar os comunistas. Aqui é igual”.

Gunnar se espanta: – “Acho que você não está se ouvindo, Erling. (…) Não tem nada a ver com comunistas. Ninguém deveria ser preso por suas opiniões.”

Vemos novas tomadas de Gunnar e Erling na montanha nevada, enquanto entra a voz do velho Gunnar: – “Estudei na mesma escola de vocês há mais de 70 anos. Vivíamos em uma democracia. (Corta, e vemos o rosto do velho Gunnar em close-up.) Mas aí sentimos as paredes se fechando ao nosso redor. Vocês se sentem seguros?”

Vários estudantes balançam a cabeça em sinal afirmativo, inclusive a jovem de cabelos encaracoladinhos – que o espectador já sente, já sabe que terá importância especial na trama.

– “Que bom. Eu também me sentia seguro. E meus amigos também se sentiam seguros, até que isso mudou. Pensávamos que estávamos no pós-guerra. Mas, de repente, percebemos que vivíamos no período entre as guerras. E os alemães invadiram no dia 9 de abril de 1940. Só precisaram de 800 soldados para tomar Oslo. Vocês aqui são metade disso.”

Corta, e o jovem Gunnar está vendo os tanques alemães nas ruas de Oslo. Logo ele vai entrar para a resistência – e, lá, ganhará o codinome de “Número 24”.

Houve um documentário de três episódios sobre o herói

A garota de cabelos encaracolados se chama Anne Solheim, e a atriz que a interpreta, Flo Fagerli, parece de fato ter aí uns 17 anos. Tem um lindo rostinho de adolescente bem jovem – mas é de 2003, e portanto já estava com 21 anos em 2024, quando o filme foi lançado. Sua filmografia tem já 10 títulos, e inclui curtas e séries de TV. A moça demonstra muito talento.

O livro que Anne Solheim segura enquanto assiste à palestra no ginásio de esportes de seu colégio, Rapport fra “Nr. 24”, relatório do número 24, é de autoria do próprio Gunnar Sønsteby. Foi traduzido para várias línguas, e está disponível em inglês em sites como o Amazon.

Em 1994, foi lançado um documentário feito pela televisão norueguesa, em três episódios, com o nome do livro autobiográfico, Rapport fra Nr. 24. Incluía, é claro, entrevistas com Gunnar Sønsteby, e com vários outros membros da resistência, como Sven Nordin, Reidun Engebretsen e Max Manus.

Dois pesquisadores noruegueses, Petter Ringen Johannesen e Arnfinn Moland, escreveram uma biografia do herói, Nr. 24 Gunnar «Kjakan» Sønsteby. Esse livro é citado nos créditos finais do filme como sendo a base para o roteiro assinado por Erlend Loe.

Neste filme aqui, aparecem, em algumas sequências passadas em Londres, o rei Haakon VII e seu filho, o príncipe Olav (interpretados por Kristian Halken e Petter Width Kristiansen), que se exilaram no Reino Unido durante a maior parte da Segunda Guerra Mundial.

A invasão da Noruega pelos nazistas, e o exílio do rei Haakon VII, do príncipe Olav e sua mulher Märtha, foram mostrados em uma excelente série de 2020, Atlantic Crossing, suntuosa co-produção Noruega-Alemanha-EUA-Suécia-Dinamarca-Reino Unido. A série e este filme aqui se complementam muito bem.

Teria aquele velho senhor algum arrependimento?

Não costumo relatar o que se passa depois da metade de um filme – em geral, não avanço além dos fatos que acontecem na primeira terça parte.

Mas vou abrir uma exceção aqui, e transcrever uma passagem que rola quando o filme já está com 70 dos seus 111 minutos de duração. Faço isso porque é ali que se expõe, com clareza cristalina, o cerne da obra, a questão central que os realizadores quiseram realçar, na minha opinião. O que pensaria aquele homem homenageado, reverenciado como herói, agora, meio século depois, sobre os atos de violência que ele e seus camaradas cometeram?

Teria ele algum arrependimento?

Aqui vão as palavras de Gunnar Sønsteby aos jovens estudantes – e os questionamentos que são feitos a ele por dois dos jovens, uma delas, é claro, a garota de cabelos encaracolados, Anne Solheim.

Naturalmente, se o eventual leitor considerar que é um spoiler, deveria parar de ler aqui.

O rapaz se levanta e faz a pergunta: “O senhor matou?”

“Nenhum de nós sabe como reagiria se fosse torturado”, diz Gunnar Sønsteby. “Vocês cederiam e trairiam todos à sua volta? Ninguém quer passar por isso, se puder evitar. E, às vezes, podemos evitar.”

Um rapaz de cabelos longos pede a palavra: – “Ouvi dizer que o movimento de resistência às vezes precisava matar noruegueses.”

– “Sim.”

– “O senhor matou?”

– “Você já viveu uma guerra?”

Plano geral, dezenas de adolescentes sentados em suas cadeiras no grande salão, o rapaz que fez a pergunta de pé, segurando um microfone sem fio: – “Não, eu não vivi, mas meus pais, sim.”

– “Então tenho a certeza de que seus pais entenderiam o que estou falando. E, a todos vocês, quero dizer que espero que não precisem entender, durante toda a sua vida. Porque, na guerra, não há meio termo. É sempre oito ou oitenta. E, de repente, temos regras diferentes. (A câmara mostra em close-up o perfil do rosto de Anne Solheim-Flo Fagerli.) Durante a guerra, perdi oito dos meus amigos mais próximos por causa dos alemães. Mas como você reagiria se seus amigos fossem denunciados?”

– “Eu não teria gostado”, diz o rapaz com o microfone na mão. E, depois de uma pausa: – “Mas o senhor matou?”

Close-up do idoso Gunnar. Close-up de Anne. Novo close-up de Gunnar: – “Alguma outra pergunta?”

Corta, e o jovem Gunnar está recebendo do principal líder da resistência um dossiê dos piores entre os noruegueses colaboradores do Exército nazista e da Gestapo. O líder destaca um deles, que deve ser o primeiro a ser e executado – e acrescenta que aquele assunto deverá ficar apenas entre eles – “agora e para sempre”. – “Quem matou quem, onde, quando… Levaremos isso para o túmulo. Certo?”

Segue-se longa sequência no passado, o jovem Gunnar e um companheiro fazendo tocaia para a execução do compatriota que colaborava com a Gestapo e matara diversos noruegueses.

Corta, voltamos para o ginásio de esportes. Anne está com o microfone na mão: – “Coisas que aconteceram na guerra o atormentaram depois?”

– “Não. Durante a guerra eu vivi uma vida muito extrema. Meus pensamentos nunca paravam, e pouquíssimas coisas me abalavam. Se me abalasse facilmente, eu não aguentaria.”

– “Eu estava pensando mais em como vocês, da resistência, mataram noruegueses.”

– “Sim. Já falamos disso.”

– “É, mas o senhor não respondeu. Parece que aconteceu (ela pega o livro que traz a seu lado) 82 vezes durante a guerra.”

– “Eu não contei, mas deve estar certo.”  E, depois de uma longa pausa: – “Nós só matamos nazistas dedicados. E os que estavam planejando fazer algo que impediria que a Noruega fosse livre.”

– “Então não tiveram misericórdia?”

– “Não.”

É, de fato, uma beleza de filme.

Anotação em janeiro de 2025

Número 24/Nr. 24

De John Andreas Andersen, Noruega, 2024

Com Erik Hivju (Gunnar Sønsteby velho),

Sjur Vatne Brean (Gunnar Sønsteby jovem)

e (na resistência), Jacob Jensen (Jens Christian Hauge), Lisa Loven Kongsli (Gudrun Collett), Ines Høysæter Asserson (Reidun Andersen), Magnus Dugdale (Andreas Aubert), Ulrik William Græsli (Gregers Gram), Philip Helgar (Edvard Tallaksen), Benjamin Myhre (Max Manus)

e Flo Fagerli (Anne Solheim, a estudante de cabelos encaracolados), Jakob Maanum Trulsen (Karl Erling Øhrn Solheim, o amigo de Gunnar na juventude), Mads Henning Jørgensen (Gustav Sønsteby, o pai de Gunnar), Petter Width Kristiansen (príncipe Olav), Kristian Halken (rei Haakon VII), Per Kjerstad (Karl A. Marthinsen, o assassino colaborador dos nazistas)

Roteiro Erlend Loe, baseado no roteiro de Espen Lauritzen von Ibenfeldt.

Baseado no livro “Nr. 24 Gunnar ‘Kjakan’ Sønsteby”, de Petter Ringen Johannesen e Arnfinn Moland

Fotografia Pål Ulvik Rokseth

Música Kristoffer Lo

Montagem Kalle Doniselli Gulbrandsen, Trude Lirhus  

Casting Ellen Michelsen, Donatas Simukauskas   

Desenho de produção Pål Petersen-Bergvik, Jurgita Gerdvilaite        

Figurinos Anne Isene

Produção Espen Horn, John M. Jacobsen, Kristian Strand Sinkerud, Terje Strømstad, SF Norge A/S, Motion Blur Films

Cor, 111 min (1h51)

***1/2

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