3.0 out of 5.0 stars
Anotação em 2008: Este filme tem duas características notáveis. É uma produção alemã, dirigida por um alemão – e no entanto é, a rigor, um filme indiano, passado na Índia, em que todos os personagens são indianos, todos os atores são indianos, falando em bengali, vivendo num contexto que é apenas e tão somente indiano. Isso é notável, fascinante – e incompreensível. Por que raios esse alemão Florian Gallenberger resolveu fazer um filme em tudo por tudo indiano, meu Deus do céu e também da terra?
Vou procurar alguma explicação na internet, mas antes quero anotar minhas impressões de espectador que não leu informações sobre o filme.
A segunda característica marcante do filme é que, tendo sido feito na primeira década do século XXI, ele tem um clima, um gosto, um jeito, um estilo narrativo, tudo, tudo, de um dramalhão dos anos 1930, 1940, 1950 no máximo. Na verdade, em muitas coisas, ele parece um dramalhão dos anos 1940 baseado em um romance de Charles Dickens (1812-1870). É, estranhamemente, fascinantemente, um filme anacrônico.
Para começar: é praticamente todo em flashback, aquele longo, imenso flashback óbvio, exatamente como em tantos e tantos dramalhões dos anos 1940. Temos, na abertura, um senhor de idade, de uns 70, talvez 80 anos, que chega, dirigindo um Mercedes (a câmara dá ênfase a isso, a estrela de três pontas do Mercedes em primeiro plano enquanto ao fundo o personagem vai andando) a uma grande edificação abandonada, e vai examinando tudo atentamente. Vemos que o lugar tinha sido no passado uma fábrica têxtil, uma tecelagem. O senhor idoso vai passando a mão nos objetos empoeirados, com a expressão de quem está se recordando do passado – e aí, crau!, temos o flashback. Vemos então um garoto de uns dez anos de idade – está óbvio que é o mesmo personagem dos dias atuais várias décadas atrás – sendo alvo de gozação, pilhéria de um bando de outros garotos, pelo fato de ser baixinho. Mas, mesmo baixinho, ele enfrenta com força e garra o líder dos garotos que o molestam.
E a partir daí temos uma narrativa absolutamente cronológica da vida do personagem, Ravi, desde os seus dez anos de idade, no trabalho quase escravo dentro da fábrica têxtil, depois ele jovem com uns 20 anos mudando-se para Calcutá, e assim sucessivamente ao longo de toda a longa vida, para, é claro, é óbvio, a narrativa voltar ao dia do início da ação, o senhor idoso terminando de rememorar toda a sua longa e trágica vida.
Não quis, com isso, fazer juízo de valor, dizer que isso tudo – a narrativa óbvia, o estilo acadêmico – seja bom ou ruim. Já estou velho demais para achar que um filme só é bom se desafia regras gramaticais; deixo isso para os jovens e as pessoas que não perdem uma sessão da Mostra de Cinema de São Paulo. Estou apenas descrevendo uma característica básica do filme – em seu estilo, sua história, ele é, em tudo por tudo, anacrônico.
É como se Douglas Sirk fosse o diretor, bem no coração dos anos 1950, e estivesse contando a história de um amor fadada a não dar certo, uma espécie assim de Tudo o Que o Céu Permite/All That Heaven Allows, em que a dona de casa viúva classe média alta (Jane Wyman) se envolve com o jardineiro mais pobre e mais jovem (Rock Hudson).
Demorei para chegar ao tema do filme, porque a coisa de ser um filme indiano feito por alemães, e um filme do século XXI em estilo dos anos 1940, 1950, me pareceu mais importante. Mas então é isso. É um grande melodrama, a história de um amor fadada à tragédia, que tem como pano de fundo não um subúrbio rico de país rico, como os melodramas de mestre Sirk, mas a absoluta miséria da Índia, o trabalho infantil quase escravo, a exploração mais abjeta que se possa conceber do ser humano por outros seres humanos, o ambiente de total, onipresente corrupção – mas um ambiente que, paradoxalmente, permite uma mobilidade social como no mais ufanista dos ufanistas hinos ao capitalismo americano.
A coisa da corrupção perpassa o filme inteirinho. Tudo, naqueles lugares descritos no filme, funciona à base do suborno. Tudo, absolutamente tudo se compra, tudo se vende – trabalho, corpos, consciências. E me lembrei agora de Os Galhos da Árvore, um filme do grande Satyajit Ray (1921-1992), o mais importante diretor do cinema indiano, em que o patriarca da família tem como sua missão mais importante na vida a dura, dificílima, quase impossível tarefa de passar aos filhos e netos a noção de que corrupção é pecado, é crime, é errado, não pode ser tolerada nem na dose mais mínima. O dinheiro sujo destrói as pessoas, as famílias, a sociedade, dizia o velho patriarca do filme de Satyajit Ray.
O patriarca do grande Ray passou a vida dando murro em ponta de faca. O personagem indiano do alemão Florian Gallenberger consegue se dar muito bem (em termos materiais) na vida sem ser corrompido – mas tendo que, ainda jovem, corromper, em meio a uma sociedade em que tentar evitar a corrupção é dar murro em ponta de faca.
A possibilidade de se sair da mais absoluta miséria indiana para uma afluência nórdica, britânica, norte-americana, está dada desde os primeiros cinco minutos de filme. O espectador sabe, desde os primeiros cinco minutos de filme, que aquele menino miserável trabalhando praticamente como escravo será depois aquele senhor rico que chega para se lembrar do passado triste num Mercedes reluzente.
Ganhar dinheiro, ascender socialmente, ah, isso é mais fácil que fazer as escolhas certas na vida, se desfazer das erradas e procurar a chance da felicidade – isso é que parece querer dizer, ao fim e ao cabo, este filme estranho e marcante.
Então vamos ver se dá para saber por que o ariano Florian Gallenberger resolveu fazer um filme indiano.
Ah… É jovem. Nasceu em Munique em 1972, tinha 32 anos quando fez este filme, que é de 2004. Gozado: nascido em 1972, foi criado com imagens ao ritmo da MTV e dos blockbusters americanos, tomadas curtíssimas, numa velocidade estonteante – e no entanto gosta de tomadas longas, reflexivas, narrativa acadêmica. Sujeito esquisito.
Nem o IMDB nem o AllMovie têm biografia do diretor e roteirista. O verbete da Wikipedia é curto e grosso e não revela nada.
De qualquer forma, dá para saber que este aqui foi o segundo longa do diretor – antes, em 2001, tinha feito um filme chamado Honolulu, sua estréia em longa-metragem. Antes ainda, em 2000, tinha feito Quiero Ser (I Want to Be…), que ganhou o Oscar de melhor curta e mais oito prêmios.
Sujeito esquisito – e interessante.
Sombras do Passado/Schatten der Zeit
De Florian Gallenberger, Alemanha, 2004.
Com Prashant Narayanan (Ravi), Tannishtha Chatterjee (Masha), Sikandar Agarwal (Ravi menino) Tumpa Das (Masha menina)
Roteiro Florian Gallenberger
Cor, 122 min.
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