Califado, série sueca lançada em 2020, é extremamente bem realizada, em todos os quesitos – e chocantemente perturbadora, apavorante. O ponto de partida é a ameaça de um atentado terrorista que está sendo preparado pelo Exército Islâmico na Suécia em 2015, mas a série é muito mais ampla do que isso. Seus principais personagens são três mulheres, algo um tanto inesperado para uma série sobre terrorismo – o que em si já é uma bela qualidade.
A primeira das três que vemos é Pervin (Gizem Erdogan, na foto abaixo), uma pobre moça de origem árabe criada na Suécia que fez a besteira de se casar com um apoiador do E.I., o Exército Islâmico, e foi parar em Raqqa, na Síria.
Fatima (Aliette Opheim) é uma policial sueca, também descendente de árabes. Trabalhadora, esforçada, dedicada, ela fica sabendo, através de Pervin, que o Exército Islâmico prepara um ataque terrorista na Suécia, e faz todo o possível para obter mais informações que possam evitar o atentado.
A terceira protagonista da história, Sulle (Nora Rios) é uma adolescente sueca de origem árabe que vai sendo fisgada pelo radicalismo.
É uma história atraente, extremamente bem construída, com personagens interessantes, sobre tema atual, importante, e tem muitas vezes um bom ritmo de thriller, de filme de ação. Mas o que a série – oito episódios de 45 minutos – tem de mais fascinante, mais brilhante, e também de mais apavorante, passa muito ao largo de thriller, de filme de ação.
Na minha opinião, Califado é sobretudo uma série sobre a capacidade fantástica, extraordinária, de ideologias radicais, insanas, criminosas, atraírem jovens.
E sobre como é duro, difícil, dificílimo, praticamente impossível, os pais, por mais bem intencionados que sejam, impedirem que seus filhos caiam na tentação do radicalismo.
A moça Pervin quer voltar para a Suécia
A narrativa começa em Raqqa, a cidade síria que estava, em 2015, dominada pelo Exército Islâmico, essa que é uma das mais radicais, mais violentas, mais sanguinárias de todas as organizações radicais, violentas, sanguinárias que dizem defender os princípios do islamismo, do Corão.
Pervin, jovem mãe de um bebê de menos de um ano, já está absolutamente consciente de que fez uma imensa, gigantesca besteira ao se casar com Husam (Amed Bozan) e aceitar a decisão dele de deixar a Suécia para se unir aos terroristas do E.I. na Síria.
Não é que ela não ame mais Husam. Ainda o ama, sim – mas caiu a ficha na cabeça dela de que aquilo ali tudo é uma absoluta insanidade, e tudo que ela quer na vida é uma chance de sair da Síria e voltar para a Suécia. Para sorte dela – ou por terrível azar, o espectador que decida –, ao ser presa pela polícia do E.I. uma grande amiga de Parvan acaba deixando com ela algo que ninguém ali, a não ser as chefias, é autorizado a ter: um telefone celular. Ainda que muito temerosa, apavorada diante da perspectiva de ser descoberta, Pervin liga para um número que a amiga usava – e fala com Dolores (Monica Albornoz), uma senhora radicada na Suécia que ela havia conhecido bem. E pede ajuda a ela para escapar daquele inferno.
Dolores trabalha numa escola em Estocolmo destinada a jovens refugiados ou descendentes de refugiados. Essa escola é um dos pontos centrais de Califado. É nela que estudam a belíssima adolescente Sulle, sua irmã mais nova Lisha (Yussra El Abdouni) e sua grande amiga Kerima (Amanda Sohrabi), que serão importantes na série.
E é lá que trabalha o rapaz Ibbe (Lancelot Ncube), o personagem mais importante de Califado depois das três mulheres – Pervin, Sulle e a policial Fatima. Falo de Ibbe logo em seguida, mas antes é preciso apresentar Fatima.
Assim que recebe o pedido de socorro de Pervin, Dolores fala sobre a garota para sua grande amiga Fatima. E a partir dali Fatima passa a atender aos telefonemas de Pervin.
Fatima trabalha na Divisão do Serviço de Segurança do Oriente Médio. É uma agente – repito – trabalhadora, esforçada, dedicada. Mas cometeu, no passado, uma asneira, um erro. Os realizadores da série fazem absoluta questão de não explicitarem coisa alguma sobre que asneira, que erro foi. Apenas deixam claro que houve uma asneira, um erro – que levou o chefe da unidade em que ela trabalha, Nadir (Arvin Kananian), a não gostar dela, não confiar nela.
A relação de Fatima com sua superior imediata, Sara (Camilla Larsson), também não é das melhores.
Ao longo dos oito episódios, vamos vendo que Fatima é daquele tipo de policial um tanto rebelde, que não gosta de seguir ordens, de respeitar direitinho a hierarquia. Ela acha que os chefes são ruins, ou um tanto lerdos, ou impedidos de agir por causa da burocracia, e, segura demais de si, quer agir por conta própria, com a certeza de que conseguirá bons resultados antes dos companheiros.
Vamos vendo também que a única pessoa do departamento que tem plena confiança em Fatima, e a apóia em tudo, é Calle (Albin Grenholm), ele também um bom policial, correto – que acontece de ser o namorado da moça. Calle é casado. (Na foto abaixo, Aliette Opheim, que faz Fatima.)
Pervin sofre demais – e acontece uma tragédia
Pervin não tem detalhes, mas vai percebendo, por coisas que vai captando das conversas do marido Husam com seus companheiros de uma das células do E.I., que a organização prepara de fato um ataque terrorista na Suécia.
Fatima passa para a chefe imediata, Sara, as informações que recebe de Pervin. E, paralelamente, vai insistindo para que Pervin consiga mais detalhes.
A situação de Pervin é desesperadora. Husam – vamos vendo isso claramente – é um rapaz inseguro, imaturo, absolutamente instável emocionalmente. Participou de um trabalho de campo, em que teve que matar crianças, e isso o deixou inteiramente frágil. Não consegue dormir; quando dorme, sonha com crianças ensanguentadas.
No terceiro dos oito episódios, acontece uma tragédia com Pervin. Creio que relatar o evento seria um absoluto spoiler, mas é necessário dizer isso: é uma tragédia horrorosa, e a situação da pobre moça fica mais desesperadora do que já era até então.
“Como sofre essa pobre moça!”, eu me peguei dizendo, ao longo da série. Prova de que é tudo muito bem feito, de tal maneira que deixa o espectador envolvido emocionalmente com os personagens.
Sofre muito, também, essa Fatima competente, trabalhadora, mas que conquistou a antipatia de seus chefes. Vai se sentindo cada vez mais angustiada entre uma Pervin que suplica por sua ajuda para sair da Síria e seus superiores que não dão atenção às informações que ela recebe.
Os realizadores vão levando as situações a tal extremo que, lá pelas tantas, o espectador fica achando que o tal Nadir, o chefe do setor em que Fatima trabalha, está mancomunado com os terroristas do E.I.
Vai sofrer muito também a bela jovem Sulle – e o espectador vai sofrer com ela.
O terrorista vai conquistando a moça Sulle
O rapaz Ibbe (na foto acima, o ator Lancelot Ncube), que trabalha na escola para refugiados e filhos deles, é de uma competência exemplar.
Vemos que ele tem a confiança dos administradores da escola. Como é egípcio de nascimento, tem bom trânsito com os alunos descendentes de árabes.
Mas vemos também, desde o início, desde sempre, que ele pertence ao E.I. É um terrorista, é o cara que o grupo de que participa Husam chama de O Viajante, o sujeito que será o coordenador do ataque.
E isso é uma das muitas qualidades do roteiro da série, um roteiro extraordinariamente bem construído: nós, espectadores, sabemos o tempo todo que Ibbe, o simpático, inteligente, boa figura funcionário da escola é terrorista do E.I. – algo que, naturalmente, a bondosa, competente, abnegada Dolores não sabe. E muitíssimo menos a agente Fatima.
Essa coisa de nós, espectadores, sabermos informações que os personagens do lado da Lei não sabem é uma belíssima sacada que Alfred Hitchcock gostava muito de usar. É o contrário do jeito Agatha Christie de contar histórias – a velhinha preferia manter o leitor sem saber de coisa alguma, para ser surpreendido nas páginas finais.
Ibbe é um terrorista de muitas faces – e competente em todas.
Conquistou para sua causa, sua Jihad, um rapaz sueco desajustado, instável, alcoólatra, Jakob (Marcus Vögeli). Durante o tempo em que esteve preso – provavelmente por um crime menor –, Jakob, influenciado seguramente por presos muçulmanos, descobriu o Alá dos loucos e virou fanático como eles. Ao sair da cadeia, carregou seu irmão Emil (Nils Wetterholm) para o fanatismo cego.
Vamos vendo, em detalhes, como Jakob e Emil, treinados por Ibbe, vão aprender a atirar, a usar granadas.
O mesmo Ibbe que treina suecos louros convertidos ao radicalismo islâmico é capaz de se aproximar, da forma mais simpática, doce, suave, dos alunos do colégio. Aproxima-se de Sulle, da grande amiga dela, Kerima.
E é exatamente aí que está o cerne da série Califado, na minha opinião.
Com grande facilidade, Ibbe vai passando para a jovem Sulle as noções – falsas, erradas, mentirosas, infames – que a levarão a acreditar piamente no credo do islamismo mais radical, mais anti-Maomé, mais anti-Alá que pode haver:
Nós, muçulmanos, somos odiados por todas as pessoas que não são muçulmanas. O mundo odeia os muçulmanos, o mundo quer acabar com os muçulmanos. O mundo não aceita o que o Profeta diz. Não adianta acreditar nos governos do Ocidente – eles são todos contra nós, eles querem nos destruir. É mentira que os governos de países como a Suécia aceitem imigrantes árabes. Os árabes jamais serão bem-vindos nos países do Ocidente. Por mais que você estude, por mais que você saiba falar a língua deles, você jamais terá uma profissão importante em país de gente cristã. Não terá oportunidade nenhuma, nunca. O único jeito é combater sempre, é lutar contra eles.
Depois de algumas conversas com Ibbe, e de ganhar de presente dele um hiyab, Sulle chega para o café da manhã em casa com o véu.
O pai, Suleiman (Simon Mezher), fica em choque. É um árabe sequer religioso, e profundamente contrário ao radicalismo dos grupos guerrilheiros, terroristas, que usam o Islamismo como bandeira.
À medida em que Suleiman reage com atitudes rígidas, radicais, ao absurdo da filha, mais Sulle se afasta dele, da família, de tudo o que o pai sempre defendeu, e mais se encaminha para o radicalismo, o fanatismo.
É o mais absoluto horror.
Uma inquietação toma conta do espectador
Você consegue imaginar sua filha sendo tragada pelo radicalismo?
Repito a pergunta retórica ao eventual leitor: você consegue imaginar sua filha sendo roubada de você por uma ideologia radical, terrorista, assassina?
Um pai pode ter seu filho roubado pelo vício, pelo crime, pelo radicalismo. Não sei o que é pior. Não existe régua para medir o absurdo que é isso.
Tive medo de que minha filha caísse em drogas, durante a adolescência. Acho legítimo qualquer pai ter esse medo, embora eu, especificamente, não tivesse motivo real algum para duvidar de que conseguia dialogar com minha filha. Mas jamais me ocorreu temer que ela pudesse virar uma criminosa, fosse por qualquer motivo que pudesse haver.
Perder um filho para o crime do radicalismo ideológico deve, muito provavelmente, ser uma das dores mais absurdas a que um pai, uma mãe, podem ser submetidos.
Porque é horroroso em todos os diversos aspectos. Pela coisa em si, em primeiro lugar, é óbvio: como assim, meu filho virou um nazista, um racista, um terrorista? Pela sensação de absoluta falha, erro, incompetência: cacete, meu Deus do céu e também da Terra, mas então eu fui absolutamente incapaz de passar os mais básicos valores para ele?
Quando Suleiman vê Sulle de hiyab, e nas sequências que vêm depois, em que ela vai ficando cada vez mais apaixonada pela Jihad, a guerra santa, qualquer espectador que tenha tido um filho sente uma inquietação apavorante.
Mais de 500 mulheres do Ocidente foram atraidas pelo E.I.
A Wikepedia cita que eventos reais serviram de inspiração, talvez de ponto de partida para Wilhelm Behrman, o criador da série: “A história é baseada no caso real do Bethnal Green Trio, em que três adolescentes de Londres encontraram recrutadores da Jihad na escola em fevereiro de 2015.”
Ficaram conhecidas como Bethnal Green Trio três jovens criadas na Inglaterra – Amira Abase, Shamima Begum e Kadiza Sultana – e que estudaram nessa escola londrina, Bethnal Green Academy, e, em fevereiro de 2015, abandonaram suas famílias e o país para se juntarem ao Exército Islâmico. Segundo o Instituto pelo Diálogo Estratégico, elas estão entre as cerca de 550 mulheres dos países ocidentais que aderiram ao E.I.
Wilhelm Behrman foi o autor do argumento de Califado, e escreveu o roteiro juntamente com Niklas Rockström. Os dois demonstram ter pesquisado bastante sobre a vida de refugiados, famílias de origem árabe que se radicaram na Suécia. Há pouquíssima informação sobre eles tanto na Wikepedia quanto no IMDb. Antes de Califado, Wilhelm Behrman havia assinado o argumento e o roteiro de três dos 18 episódios de uma série policial de 2017, co-produção Suécia-Alemanha-Noruega, Innan vi dör, nos Estados Unidos Before We Die, antes de nós morrermos.
A equipe de casting também fez um trabalho sensacional, ao descobrir tantos bons atores na comunidade de origem árabe na Suécia. Sobre esses atores também não há muitas informações no IMDb, o site que tem tudo sobre filmes e séries. Dá para compreender: são jovens, na maioria, e portanto não têm ainda muitos títulos nas filmografias.
De Gizem Erdogan, a jovem atriz que interpreta Pervin, essa moça que sofre horrores, ao longo de todos os oito episódios, informa-se apenas que é de origem turca, e já tem 13 títulos no currículo, dos quais seis são séries de TV. Seu trabalho neste Califado é impressionante, e ela tem uma presença forte, um rosto marcante.
Aliette Opheim, que faz a agente Fatima, nasceu em Estocolmo, em 1985; trabalhou como modelo da Nujas Stockholm, a maior agência de modelos sueca. Começou a carreira de atriz aos 20 anos, em 2005, e tem 26 títulos na filmografia, a maioria séries de TV.
Posso estar redondamente enganado, é claro, mas creio que há grandes chances de o nome de Nora Rios (na foto acima) vir a ser bem conhecido. A moça, que interpreta Sulle, a garota de 15 anos que se encanta pelo radicalismo do Exército Islâmico, tem uma beleza fulgurante, e demonstra talento.
Lançada em janeiro de 2020 na Suécia e pela Netflix em todo o mundo dois meses depois, a série Califado fez imenso sucesso em seu país de origem, e recebeu elogios na imprensa mundo afora.
O criador Wilhelm Behrman e os demais realizadores deixaram bem aberta a possibilidade de se fazer uma segunda temporada. A trama básica tem fim no oitavo episódio. Pode-se perfeitamente ficar por ali, e pronto. Mas há pontas que podem ser puxadas para mais oito episódios. Até nisso ela é uma série inteligente, bem feita.
Anotação em junho de 2020
Califado/Kalifat
De Wilhelm Behrman, criador, roteirista, Suécia, 2020
Diretor Goran Kapetanovic
Com (na Síria) Gizem Erdogan (Pervin), Amed Bozan (Husam, o marido de Pervin), William Legue (Omar), Jonatan Qahoush (Khalaf), Ahmad Al Zoghbi (Fadi), Ali Jalal (Ali), Marcel Khouri (Ahmed)
(na polícia sueca) Aliette Opheim (Fatima), Albin Grenholm (Calle), Camilla Larsson (Sara, a chefe imediata de Fatima), Arvin Kananian (Nadir, o chefe do departamento),
(na escola e seu entorno) Nora Rios (Sulle), Amanda Sohrabi (Kerima), Lancelot Ncube (Ibbe), Yussra El Abdouni (Lisha, a irmã mais nova de Sulle), Simon Mezher (Suleiman, o pai de Sulle e Lisha), Ala Riani (Tuba, a mãe de Sulle e Lisha), Marcus Vögeli (Jakob, treinado por Ibbe), Nils Wetterholm (Emil, irmão de Jakob), Monica Albornoz (Dolores, a amiga de Fatima), Shada-Helin Sulhav (Miryam, funcionária de loja no aeroporto), Dennis Önder (Abu Jibril , o imã)
Roteiro Wilhelm Behrman e Niklas Rockström
Argumento Wilhelm Behrman
Fotografia Jonas Alarik
Música Sophia Ersson
Montagem Malin Lindström e Håkan Wärn
Casting Mohammed Kloob, Tusse Lande, Maggie Widstrand
Produção Filmlance International AB, Imaginarium Films. Distribuição Netflix.
Cor, cerca de 360 min (6h)
Disponível na Netflix em junho de 2020
***1/2
Título em inglês: Caliphate.