A Professora do Jardim de Infância/The Kindengarten Teacher abre de uma forma que não pode ser mais tipicamente cinema independente americano. E suas primeiras sequências, os primeiros 15 minutos, anunciam um filme instigante, interessante, fascinante.
Não para todas as platéias, mas para quem gosta do bom cinema independente americano – aquele que fala de pessoas comuns, gente como a gente. Ordinary people, para usar a expressão de que Paul McCartney tanto gosta e tanto usa em várias de suas canções. Nada de super-heróis, super-poderes, super-aventuras para adolescentes dos 11 aos 91 anos – mas o simples dia-a-dia de pessoas simples. Filmes sérios, adultos, para audiências maduras sobre, como dizia o título do velho filme de Claude Lelouch, a vida o amor a morte.
É bater o olho na primeira sequência do filme, logo após os nomes das produtoras – diversas produtoras pequenas – para ver que é o mais puro cinema independente americano.
Uma mulher entra no que é obviamente uma sala de jardim de infância, ainda deserta. Deve ser, também obviamente, a professora do título. Ela abre a persiana de uma janela, depois de outra, depois ainda de outra. Senta-se, à espera. Está absolutamente claro que ela chegou bem cedo, antes dos alunos.
A câmara permanece mostrando a mulher sentada durante um meio minuto.
Há o fade out, a tela fica negra e nela aparece o título do filme, The Kindengarten Teacher.
No cinemão comercial de Hollywood – e não só nas aventuras de super-heróis, mas também nos filmes sobre pessoas de carne e osso –, uma das leis gerais é que, nas primeiras sequências, algo inesperado ou estranho ou sensacional aconteça. Algo impactante, forte. Algo que de cara jogue um laço no pescoço do espectador, que o atraia para a história que começa a ser contada.
Aqui, vemos a professora do jardim de infância do título que chega a seu local de trabalho, abre as persianas da sala e senta-se à espera das crianças.
Não poderia ser mais tipicamente cinema independente americano.
A diretora gosta de uma elipse
A professora se chama Lisa Spinelli, e é interpretada por uma Maggie Gyllenhaal que usa parte de seu grande talento para parecer menos bela do que é. Isso me impressionou bastante: na minha opinião, é nítido que houve um esforço da atriz, do pessoal de maquilagem, de figurinos, para fazer Maggie Gyllenhaal uma mulher menos bela do que ela sem dúvida é. Me pareceu até mesmo que ela usa lentes de contato para transformar em castanhos os olhos que são de faiscante verde. Olhos castanhos são mais comuns, mais simples; mulheres não muito belas são mais comuns, mais simples.
Nas sequências seguintes, após o título, vemos Lisa em uma grande barca, um ferry-boat; não temos obrigação de saber, e isso não é dito explicitamente hora alguma, mas Lisa mora em Staten Island, o menos nobre e badalado dos cinco grandes distritos que formam a cidade de Nova York, e dá aula num jardim de infância que fica em outro deles, muito provavelmente o Brooklyn, e por isso tem que diariamente tomar o ferry-boat de ida e volta.
Na barca, Lisa tira da bolsa um grande caderno, e faz uma anotação nele.
Em seguida a vemos numa sala de aula, ela aluna, numa das últimas fileiras. É um curso de redação criativa, para aspirantes a poeta. O professor é um jovem simpático, boa cara, Simon (o papel de Gael García Bernal, essa espécie assim de Selton Mello do cinema mexicano). Ele faz algumas afirmações, e em seguida procura alguém que queira recitar algo. Olha para Lisa – e está claro que é a primeira vez que ele pede a ela que recite algo. Lisa pega seu caderno, prepara-se para ler…
E corta.
Não ouviremos o que Lisa escreveu na barca – pelo menos ainda.
Uma elipse. Uma elipse no momento da montagem, da junção de uma tomada à tomada seguinte.
Uma espécie de drible, à la Garrincha. Ele finge que vai para a direita, o zagueiro vai a direita do atacante, e Garrincha sai pela esquerda, deixa o zagueiro batido e pode chutar em gol ou dar o passe perfeito.
Sara Colangelo, a jovem diretora do filme, é dada a esses dribles, essas elipses. Ela finge que vai nos entregar algo, mas corta no momento exato em que esperávamos que ela nos entregasse aquela informação que havia sido quase prometida.
A elipse. A Professora do Jardim de Infância vai terminar exatamente numa elipse. Vai cortar a última sequência num momento assim, em que o espectador fica esperando algo – e esse algo não vem.
Depois da última sequência, é claro, não vem mais nada – a narrativa acabou. A narrativa deste filme acaba numa elipse. Mas, nesse início, em que o filme promete que a gente vai ouvir o poema que Lisa produziu na barca, o poema vem, sim. Não de imediato – mas vem pouco depois.
Lisa janta sozinha, à meia-luz
Cortou quando Lisa pegou o caderno na sala de aula do curso de escrita criativa e o abriu para ler o poema que escreveu no ferryboat.
Em seguida vemos Lisa jantando em casa, sozinha. A cozinha ou copa em que ela está é muito mal iluminada – mas isso aí não é coisa apenas do cinema independente. Parece uma mania universal de todos os tipos de filmografia essa coisa de as pessoas ficarem dentro de casa em cômodos mal iluminados. Não consigo entender esse fenômeno, mas vamos em frente.
Lisa janta sozinha à meia-luz sem ler nada, sem ouvir música. Revi as sequências iniciais do filme umas duas vezes, para relatar aqui, e então reparei isso. É um tanto estranho: quando fazem refeições sozinhas, as pessoas costumam ter a seu lado um jornal, uma revista, um livro. Lisa, não: janta como se estivesse mastigando a solidão.
Está terminando o prato quando chega o marido – veremos que seu nome é Grant (o papel Michael Chernus), e alguém o chama de doutor, mas não há outras referências ao que ele faz, sua profissão. Grant não dá um beijo na mulher, nem sequer boa noite – mas isso não deve ser tomado como o retrato de um casamento ruim. Ao contrário: veremos que Grant é um marido que gosta da mulher, tem todo respeito por ela. Em vez de boa noite, ele diz, ao se sentar ao lado dela: – “O que você escreveu esta semana?”
Lisa diz que fez algo curto, um haikai. Ele comenta que não viu ela trabalhar no poema, ela conta que escreveu na barca – e estende o caderno para ele.
Finalmente vamos ouvir o poema que Lisa compôs na barca e apresentou para a turma do curso de redação criativa. É Grant que lê. Não peguei o original. Segundo as legendas, é assim:
Um jardim dos sonhos floresce.
Rosas, íris, flox, mas aqui…
Uma flor branca de açafrão fura o concreto.
Uma excelente, maravilhosa professora de crianças
Nas sequências seguintes, vemos que Lisa é uma maravilhosa professora. Tem talento para a coisa. Gosta muito do que faz – é o que vemos na tela.
Ela ensina à sua classe como escrever o S, e depois o T, e depois, ao perceber que as crianças estão cansadas, deixa as lições de lado e canta junto com os pequenos. Faz isso, cada uma dessas coisas, de uma maneira tão gostosa, tão envolvente, tão brincalhona, tão sedutora, que qualquer pai ou mãe gostaria de matricular seu filho no jardim daquela moça.
Quando o filme está chegando aos 10 minutos, vemos que o período de tempo da escola já terminou; todas as crianças já foram pegas pelos pais ou babás – com a exceção de Jimmy (Parker Sevak). Lisa está de pé junto da porta da sala de aula, vendo o corredor, talvez para checar se não estaria chegando a pessoa que pegaria o último aluno ainda ali, quando ouve Jimmy falar alguma coisa, enquanto caminha pela classe.
Lisa apura o ouvido.
Corre para anotar o que ouviu.
Está certa de que tem, em sua classe do jardim de infância, uma criança de 5 anos e meio que é um poeta genial. Chegará mesmo a fazer, diante do pai do garoto, uma comparação entre Jimmy e Mozart.
Uau!
Que maravilha! Um filme sobre uma competente, dedicada, excelente professora de jardim de infância de imensa sensibilidade que percebe que tem em sua classe um Mozart!
Um filme sensível, delicado, sobre uma pessoa simples, comum, mas que tem uma finíssima sensibilidade!
Quando está bem no comecinho, A Professora do Jardim de Infância nos dá a esperança de que virá um filme especial como Paterson (2016), a obra-prima de Jim Jarmusch sobre um motorista de ônibus que escreve poesia, e boa poesia – um filme que mostra como pode ser bela e poética a vida das pessoas simples, comuns.
A classe de adultos se delicia com o que disse o garoto
Pois é.
Não é nada disso.
Bem rapidamente, o filme vai mostrando que não é nada disso.
Na aula de escrita criativa, instada, novamente, pelo professor Simon a recitar algo de sua lavra, Lisa lê as palavras que o garoto Jimmy havia pronunciado.
Quando Lisa leu o poema de sua autoria, “Um jardim de sonhos floresce…”, não houve reação positiva alguma. Colegas dela consideraram que eram imagens gastas, clichês. Mas quando Lisa lê o que o garoto Jimmy havia dito na sala de aula, a classe pára para prestar atenção.
Nesse momento do filme, Mary fez um comentário: tinha ficado surpresa por ver a professora roubar o poema da criança, assumir a autoria do poema do garoto. Eu já havia visto aquele início de filme, dias antes, ao zapear de madrugada, antes de desligar a TV e deitar para dormir. Tinha achado interessante, e quis ver direito, e estávamos vendo quando Mary disse isso de ter ficado surpresa com o roubo da autoria. Eu tinha visto o filme até um pouquinho à frente disso, e sabia que não era esse o caso.
Quando, na madrugada dias antes, parei de ver o filme, ele estava com uns 25 minutos. Lisa já havia lido um segundo poema de Jimmy em sua aula de texto criativo, com sucesso semelhante ao do primeiro.
Parei de ver porque estava tarde demais, mesmo para os meus padrões – mas fiquei com a sensação de que estava de fato diante de um filme interessante.
Estaria aquela professora de jardim de infância pretendendo talvez questionar a seriedade e a competência do professor Simon, a capacidade de julgamento de seus colegas no curso de escrita criativa, ao apresentar como seus os versos de um garoto de 5 anos e meio?
Não. Também não é nada disso.
Lisa de fato acha que aqueles poemas que Jimmy recita são geniais. Para ela, na opinião dela, são obras como as do garoto Mozart, que começou a compor antes dos 10 anos de idade.
Se os poemas de Jimmy têm de fato valor, ou não, parece que a rigor não importa, para o filme, para o desenrolar da história, da trama.
Mas faço questão de transcrever aqui os dois primeiros, os dois que Lisa recita na aula de escrita criativa como se fossem seus.
Anna is beautiful,
Beautiful enough for me.
The sun hits her yellow house,
It’s almost like a sign from God.
The bull stood alone in the backyard.
So dark.
I opened the door and stepped out.
Wind in the branches. He watched me, Blue eyes.
He kept breathing to stay alive.
I didn’t want him. I was just a boy.
Say yes, Say yes, anyway.
Seria um estudo sobre o que é arte, o que é falso?
Este é um tema sério, seriíssimo, profundo, difícil, controverso, polêmico: o que, exatamente, é arte, e o que é bobagem que engana os trouxas que são tão absolutamente fascinados por arte que não percebem quando estão sendo enganados?
Orson Welles fez um belo filme sobre isso, belo já a começar pelo título, F for Fake, ou F de Falso, no Brasil Verdades e Mentiras (1973). Bem mais brincalhão, mas também discutindo a coisa a sério, William Wyler fez Como Roubar um Milhão de Dólares (1966).
Cá pra nós, que somos pessoas simples, não geniais: qual a diferença entre um quadro abstrato de Jackson Pollock, Manabu Mabe, Pablo Picasso, e as garatujas de uma criança de 5 anos e meio, ou 6, ou 7?
Qual é, exatamente, a beleza maravilhosa deste
Anna is beautiful,
Beautiful enough for me.
The sun hits her yellow house,
It’s almost like a sign from God.
?
Tem isso alguma beleza poética? Podemos pôr isso no mesmo patamar de um poema de Robert Frost, Emily Dickinson, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Pessoa?
Esses são temas importantérrimos. Sérios, seriíssimos, profundos, difíceis, controversos, polêmicos.
Mas não é nada disso que trata A Professora do Jardim de Infância.
Depois dos primeiros 20 minutos promissores – instigantes, para usar de novo a palavra que meu amigo Sandro Vaia proibia a gente de usar, por ser desgastada demais, óbvia demais, clichê demais –, o filme começa a nos mostrar que Lisa é uma pessoa estranha… Esquisita…
E ela vai ficando cada vez mais estranha, esquisita.
Ali pela metade, o filme se perde feio
Depois que o filme termina com mais uma elipse – Jimmy fala “Eu tenho um poema, eu tenho um poema”, e corta, e a narrativa simplesmente acabou, adiante só há os créditos finais –, fui atrás de informações sobre ele. Como faço sempre.
E dei com um belo texto no site que preserva a memória de Roger Ebert, o grande, maravilhoso crítico. O texto, assinado por Tomris Laffly e publicado em outubro de 2018, faz uma descrição terrível dessa Lisa Spinelli como pessoa que morre de tédio, que é profundamente frustrada “por ter muito o que expressar, e ainda assim ter sido amaldiçoada com habilidades criativas inadequadas (ou moderadas, na melhor hipótese) para entregar através da arte”.
O crítico do site de Roger Ebert seguramente está certo – e o filme, nas sequências finais, de fato demonstra isso. Lisa é uma pessoa profundamente frustrada por não ter o talento artístico que achava que tinha. E é de fato uma pessoa infeliz, frustrada em todos os sentidos – e cega até o ponto de não reconhecer que o marido é uma pessoa dedicada, amável, amante. E que ela tem um bom emprego, em que ela desempenha muitíssimo bem suas funções. E tem uma vida com todos os confortos materiais possíveis, e deveria ser grata por tudo isso.
O grande problema do filme, creio eu, é que, no início, ele nos apresenta uma Lisa, e depois mostra que Lisa era completamente diferente daquela que havia nos apresentado.
A Lisa do início do filme é uma excelente, maravilhosa, professora do jardim de infância, feliz com o que faz.
De repente, vemos que Lisa é uma pessoa profundamente frustrada, amargurada – e estranha, esquisita. Cada vez mais estranha, esquisita.
O filme que me pareceu de início sério, seriíssimo, profundo, difícil, controverso, polêmico ali pela metade se perde feio – e vira quase uma bobagem.
É a refilmagem de uma obra israelense de 2014
A diretora Sara Colangelo, também autora do roteiro, parece ser uma daquelas que não gostam que informações pessoais sejam divulgadas. O IMDb não tem onde ela nasceu, nem quando – e a Wikipedia ainda não havia se dado ao trabalho de ter uma página sobre ela, ao menos até abril de 2020, quando vi o filme.
O IMDb mostra que este é o quinto filme que ela assina como diretora, e apenas o segundo longa-metragem – os três primeiros foram curtas.
Nos créditos finais, mostra-se que o roteiro da moça Sara Colangelo se baseia no filme de mesmo nome em inglês, The Kindengarten Teacher, lançado em 2014 pelo realizador israelense Nadav Lapid.
O que é uma nova ironia.
O filme que começava como o mais tipicamente cinema independente americano não é, na verdade, o mais tipicamente cinema independente americano. A protagonista que parece gente como a gente, uma pessoa simples, comum, apaixonada por poesia, mostra que não é bem assim – que não é nada disso. E aí, depois que o filme acaba, ficamos sabendo que é uma cópia, uma refilmagem. Nada, nada, nada original. Mais uma idéia estrangeira que os americanos – sejam eles independentes ou de grandes estúdios – resolvem refilmar.
Então tá.
Mas, sendo assim, por que raios perdi tanto tempo, escrevi tantos zilhões de linhas sobre este filme?
Minha resposta mais sincera é: Não tenho a mínima idéia.
Anotação em abril de 2020
A Professora do Jardim de Infância/The Kindengarten Teacher
De Sara Colangelo, EUA, 2018
Com Maggie Gyllenhaal (Lisa Spinelli)
e Gael García Bernal (Simon, o professor de redação criativa), Parker Sevak (Jimmy Roy, o garoto prodígio), Ato Blankson-Wood (Justin), Michael Chernus (Grant Spinelli, o marido de Lisa), Carter Kojima (Derek Bishop), Anna Baryshnikov (Meghan, a professora assistente), Rosa Salazar (Becca, a babá de Jimmy), Daisy Tahan (Lainie, a filha de Lisa), Sam Jules (Josh Spinelli, o filho de Lisa), Carson Grant (Michael), Jillian Panlilio (Jillian), Haley Murphy (Brittany), Noah Rhodes (Steven), Libya Pugh (Marianne), Samrat Chakrabarti (Sanjay Roy, o tio de Jimmy), Ajay Naidu (Nikhil Roy, o pai de Jimmy)
Roteiro Sara Colangelo
Baseado no filme A Professora do Jardim de Infância/Haganenet, Israel, 2014, escrito e dirigido por Nadav Lapid
Fotografia Pepe Avila del Pino
Música Asher Goldschmidt
Montagem Lee Percy, Marc Vives
Casting Henry Russell Bergstein, Stephanie Holbrook
Na TV a cabo (Now). Produção Pie Films, Farcaster Films, Imagination Park Entertainment, Liner Films, Manhattan Productions, Maven Pictures
Cor, 96 min (1h36)
16/4/2020, com Marynha.
**1/2
Excelente filme